Ararinha-azul se prepara para voar de novo na natureza.Sucesso de reprodução no exterior deve acelerar meta que previa solturas apenas em 2021
Herton Escobar
31 Outubro 2015 | 15h 27
CATAR - Pedro Develey é um daqueles aficionados por
aves que enxerga com os ouvidos. Mal colocamos os pés para fora da van e
ele já exclama: “Olha aí as ararinhas!”. À nossa frente, do outro lado
de uma cerca, no meio do deserto do Catar, dois prédios retangulares cor
de areia servem de condomínio para a maior população remanescente de
ararinhas-azuis do planeta. Não vemos as aves, mas podemos escutá-las.
São 6h30, hora do café da manhã, e a passarinhada não nega as raízes
brasileiras, fazendo uma algazarra danada. “Essa é a música que eu sonho
ouvir um dia na caatinga”, diz Develey, ansioso para ver as lendárias
ararinhas com os próprios olhos.
A
última vez que o canto de uma ararinha-azul foi ouvido na caatinga
brasileira foi 15 anos atrás, em outubro de 2000, quando o último macho
conhecido da espécie desapareceu das matas de ipê-amarelo do interior de
Curaçá, no extremo norte da Bahia. Atualmente, elas existem apenas em
cativeiro, e quase todas fora do Brasil. Vítima do tráfico internacional
de animais silvestres, a espécie é considerada extinta na natureza.
“Foram roubadas de nós, literalmente, uma a uma”, lamenta Develey,
biólogo e diretor científico da Sociedade para a Conservação das Aves do
Brasil (SAVE Brasil).
Veja fotos de animais em criadouro no Catar
Herton Escobar/ESTADAO
Das
110 ararinhas-azuis registradas no programa internacional de reprodução
em cativeiro, liderado pelo Brasil, 86 estão no Al Wabra Wildlife
Preseration (AWWP), um criadouro particular no deserto do Catar, a 35
quilômetros da capital Doha
O momento, porém, é de alegria. Avanços recentes nos esforços
de reprodução em cativeiro permitiram ampliar significativamente a
população global de ararinhas, e o sonho de reintroduzir a espécie na
natureza começa a se tornar verdadeiramente factível.
A meta oficial do
Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ararinha-azul, criado em
2012, é fazer as primeiras solturas em 2021, quando se estimava que o
número de animais em cativeiro chegaria a 150; mas é provável que essa
contagem seja atingida já nos próximos dois anos, permitindo acelerar o
processo de soltura.
Essa, pelo menos, é a esperança que emana da sinfonia de
araras à nossa frente. Das 110 ararinhas-azuis registradas no programa
internacional de reprodução em cativeiro, apoiado pelo Brasil, 86 estão
aqui, no Al Wabra Wildlife Preservation (AWWP), um criadouro particular
no deserto do Catar, a 35 quilômetros da capital Doha - bem no centro do
país, próximo de uma enorme pista de corrida de camelos. As outras
estão divididas entre um criadouro na Alemanha e outro, no Brasil - 12
para cada lado.
Criado pelo sheik Saud Bin Mohammed Bin Ali Al-Thani, um
excêntrico colecionador de obras de arte (morto em 2014, por problemas
de saúde), o local servia originalmente como uma fazenda de passeio da
família, gradativamente transformado em centro de excelência em
conservação e reprodução de bichos ameaçados de extinção, principalmente
aves e mamíferos. São 2 mil animais ao todo, de 90 espécies.
A ararinha-azul é a espécie ícone da instituição. O plantel
inicial da espécie, de 47 aves, foi comprado de outros criadores na
Suíça e nas Filipinas, entre 2002 e 2003. Segundo o atual diretor da
AWWP, o biólogo sul-africano Cromwell Purchase, as ararinhas estavam em
péssimo estado de saúde, muitas delas extremamente doentes. “O sheik
ficou sabendo da situação e adquiriu as aves para cuidar delas”, conta o
pesquisador. Depois disso, a população quase que dobrou, graças em
parte ao desenvolvimento de técnicas de inseminação artificial - algo
que apenas a equipe do Al Wabra conseguiu fazer até agora. Só este ano,
juntando os criadouros dos três países (Catar, Alemanha e Brasil), já
nasceram 20 ararinhas, 5 delas por reprodução assistida.
“Essa foi a grande virada de página”, diz a pesquisadora
Cristina Miyaki, do Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo, responsável pelos estudos de DNA das aves do programa. “Me sinto
muito mais tranquila agora.”
Só com reprodução natural, diz ela, seria difícil garantir um
crescimento estável da população. As poucas ararinhas que deram origem a
essas populações de cativeiro eram todas muito próximas geneticamente -
como irmãs ou primas -, e por isso as taxas de fertilidade da espécie
hoje são muito baixas. Dentre as 110 ararinhas, apenas quatro casais já
se reproduziram naturalmente com sucesso.
A solução, dizem os cientistas, é aumentar a variabilidade
genética da população. Esse foi um dos temas da última reunião do Grupo
Assessor do Plano de Ação (PAN), realizada semana retrasada no Catar,
que a reportagem do Estado acompanhou com exclusividade. Foi assinado um
termo oficial de cooperação entre a Al Wabra e o governo brasileiro,
permitindo pela primeira vez um intercâmbio de ararinhas entre os dois
países. A parceria já existe há alguns anos, mas faltava confiança dos
árabes para a transferência de aves para o Brasil, e vice-versa.
“Havia desconfiança com relação ao programa e sua real
viabilidade”, disse a veterinária Camile Lugarini, do Centro Nacional de
Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave-ICMBio), órgão ligado
ao Ministério do Meio Ambiente, que coordena os esforços de
reintrodução da espécie na natureza. “Só agora que criamos essa
confiança mútua podemos transferir os animais, o que é muito importante
para a continuidade do trabalho.”
Duas fêmeas mais velhas do Nest - o criadouro paulista
responsável por cuidar das ararinhas brasileiras -, chamadas Mela e
Yara, foram enviadas para o Catar em 20 de outubro, para serem cruzadas
com machos do Al Wabra via inseminação artificial.
Em troca, a
instituição árabe enviou ao Brasil um casal de ararinhas jovens, com um
ano e meio de idade, que vão conviver com outros dois casais: um nascido
no Nest (Andrea e Saoud) em outubro de 2014, e outro emprestado da
Alemanha (Carla e Tiago), em março deste ano.
Cada par representa uma linhagem genética diferente. A
expectativa é que eles formem casais, se reproduzam (naturalmente, ou
com uma ajudinha da ciência) e assim injetem mais diversidade genética
na população.
Se tudo correr bem, é possível que Develey um dia escute os
descendentes desses jovens casais cantando sobre um ipê-amarelo no
sertão nordestino. “Saio daqui contente, convencido de que esses caras
estão salvando a espécie”, conclui o biólogo brasileiro, impressionado
com o trabalho do centro árabe. “Só não digo que já salvaram porque a
espécie só é válida na natureza. Quando elas estiverem voando de novo na
caatinga, aí sim, estarão salvas.”
Centro de soltura precisa ser criado na caatinga
Processo de adaptação vai incluir uso de maracanãs; último macho visto na natureza fez par com uma fêmea da espécie por ano
Herton Escobar
31 Outubro 2015 | 15h 27
CATAR
- O calor seco do deserto catariano não deixa nada a dever para o do
sertão nordestino; mas está longe de ser uma Caatinga. Para maximizar as
chances de sobrevivência da ararinha-azul na natureza, dizem os
especialistas, é importante que as aves selecionadas para a reintrodução
sejam nascidas e criadas no hábitat original da espécie, adaptadas
desde o início às condições locais de temperatura, umidade, iluminação,
alimentação, etc.
Para isso será necessário construir um centro de
reprodução e soltura de ararinhas-azuis na própria Caatinga; de
preferência em Curaçá, município onde viveram os últimos exemplares
conhecidos da espécie na natureza, e que tem grande parte desse hábitat
original ainda preservado. Essa foi uma das prioridades identificadas na
reunião do Catar para a continuidade do Plano de Ação Nacional (PAN) da
Ararinha-azul no Brasil - até como uma exigência dos criadores para
enviar mais aves ao País no futuro.
“Precisamos ter ararinhas se reproduzindo na Caatinga o quanto
antes; isso é crucial”, esbravejou Martin Guth, presidente da
Associação para Conservação de Papagaios Ameaçados (ACTP), na Alemanha,
dono de um plantel de 12 ararinhas-azuis.
Ele propôs que o centro seja construído em 2016 e os
experimentos de reintrodução comecem o mais rápido possível depois
disso. Ideia acatada pelo grupo que soou como música aos ouvidos do
biólogo Pedro Develey: “Tá na hora de soltar; não dá para esperar mais”,
diz. “O único jeito de aprender é fazendo.”
Segundo ele, é inevitável que algumas ararinhas serão
perdidas: “Não existe projeto de reintrodução de fauna que não tenha
perdas, faz parte do processo”. Mas é um custo que já pode ser assumido,
uma vez que a população de cativeiro vem crescendo de maneira estável.
A estratégia traçada pelo grupo seria fazer um primeiro
experimento com araras de uma outra espécie local, chamada maracanã (que
não está ameaçada), para ver como as aves criadas em cativeiro se
adaptam ao ambiente inóspito da Caatinga. Por exemplo, se conseguem
achar alimento, construir ninhos e evitar ataques de predadores
naturais, como corujas e gaviões.
O segundo passo - se esse primeiro teste der certo - seria
soltar algumas ararinhas-azuis misturadas com maracanãs. Os cientistas
sabem que as espécies convivem bem e se ajudam na natureza, pois o
último macho livre de ararinha-azul passou anos “casado” com uma
maracanã, quando já não havia mais fêmeas da sua própria espécie para
lhe fazer companhia.
Ninguém sabe ao certo o que aconteceu com esse último macho.
Um vaqueiro disse tê-lo visto morto debaixo de um fio de alta tensão;
mas a história que circula entre os traficantes da região, segundo Kilma
Manso, ambientalista que trabalhou muitos anos na Polícia Federal, é
que ele foi capturado e vendido por meio milhão de dólares.
O risco de as ararinhas voltarem a ser alvo dos traficantes é
uma preocupação constante do projeto. Segundo Develey, é preciso
trabalhar em parceria com os comunidades locais, para que elas sejam as
guardiãs das aves na natureza. “A população de Curaçá está muito
engajada e aguarda ansiosamente o retorno das ararinhas”, diz.
Outra expectativa é com relação à criação de uma área
protegida na região. “Não basta reproduzir em cativeiro; temos de
proteger o seu hábitat, e isso é responsabilidade do Brasil”, diz
Develey. Uma proposta para criação de uma Área de Relevante Interesse
Ecológico, de 44 mil hectares, que cobriria a maior parte desse hábitat,
está em análise desde 2013 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio). “Se criarem a área protegida, mandamos mais
ararinhas”, diz Guth.
Casal doado seguirá para Minas
Todas
as ararinhas brasileiras, que hoje vivem no criadouro Nest, no interior
de SP, serão transferidos para outro centro até o fim do ano
Herton Escobar
31 Outubro 2015 | 15h 27
CATAR
- Rory e Amber, as duas novas ararinhas-azuis do Brasil, doadas pelo Al
Wabra, desembarcaram no aeroporto de Cumbica na noite de 26 de outubro,
empoleiradas numa grande caixa de acrílico transparente. Pareciam
cansadas, como qualquer viajante de longa distância, mas tranquilas,
observando as pessoas ao redor.
De
lá seguiram de carro para um centro de quarentena do Ministério da
Agricultura em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, onde deverão
passar 15 dias em observação, para depois serem levadas a um criadouro
particular, credenciado pelo ICMBio.
Todas as ararinhas brasileiras hoje vivem no criadouro Nest,
no interior de São Paulo. Até o fim do ano, porém, todo o plantel deverá
ser transferido para um outro centro especializado em criação e
reprodução de aves ameaçadas, a Fazenda Cachoeira, em Minas Gerais - a
localização das instituições é mantida em sigilo, na medida do possível.
A ideia original era manter a população dividida em dois locais, por
questão de segurança, mas o Nest optou por sair do projeto.
Em Minas, as ararinhas ficarão sob os cuidados do jovem
veterinário Marcus Romero Marques, que sonha com essa oportunidade desde
2000, quando ouviu falar da extinção da espécie. “Vamos dedicar nossas
vidas a ajudar as ararinhas-azuis voltarem à natureza no Brasil”,
promete ele, emocionado. Em março, enquanto fazia um estágio na ACTP, na
Alemanha, ele ajudou uma ararinha-azul a nascer e o filhote foi
batizado de Marcus, em sua homenagem. “Espero que ele seja um bom
reprodutor”, brinca o “pai”.
Contato humano é 'privilégio' no Catar
Instalações
do centro Al Wabra, onde ficam as ararinhas, não são projetadas para
visitação nem são um zoológico de extravagâncias
Herton Escobar
31 Outubro 2015 | 15h 27
CATAR
- “Hello babies”, é a primeira frase que as jovens ararinhas-azuis
costumam ouvir todos os dias no Catar. É o que dizem todos os cuidadores
ao entrar nos aviários, como forma de sinalizar para as aves que quem
está chegando é uma pessoa amiga.
O diretor do centro Al Wabra, Cromwell Purchase, dá o
sinal antes mesmo de abrir a porta que dá acesso à sala onde são
mantidas as sete ararinhas nascidas neste ano na instituição. É uma
oportunidade única de interagir com essas aves, pois a partir deste mês
elas serão misturadas com um grupo de ararinhas mais velhas e o contato
delas com seres humanos passará a ser extremamente limitado.
Araras e periquitos são pássaros muito inteligentes e podem
estabelecer relações afetivas profundas com pessoas. O que é ótimo para
produzir aves de estimação, mas péssimo no caso das ararinhas-azuis, já
que o objetivo é devolvê-las à natureza e torná-las selvagens de novo.
Quanto mais elas evitarem os seres humanos e souberem se virar sozinhas,
melhor.
As instalações do Al Wabra não são projetadas para visitação
nem são um zoológico de extravagâncias do sheik. Engana-se quem imagina
um oásis de jardins floridos e gaiolas de ouro. Os prédios são todos
quadrados e sem graça, despidos de qualquer ostentação. Ainda que
algumas espécies estejam lá de fato por um interesse particular do
sheik, o objetivo que move a instituição é o da conservação.
Purchase está entusiasmado com o acordo de cooperação e a
perspectiva de construir um criadouro na Caatinga. Mas sabe que não é
fácil implementar ideias no Brasil. O Al Wabra já possui uma propriedade
de 2 mil hectares em Curaçá, a Fazenda Concórdia, mas pouco conseguiu
desenvolver ali.
O primeiro desafio será obter
recursos para o novo centro. O Projeto Ararinha da Natureza não recebe
dinheiro do governo federal - depende exclusivamente de um apoio
financeiro da mineradora Vale (de R$ 3,6 milhões), que está próximo do
fim e não há garantia de renovação do patrocínio.
Comentário Será que o interesse em trazer para o Brasil tem a ver com a sobrevivência das ararinhas ou com o fato de que cada uma vale meio milhão de dólares? Se não conseguimos evitar que fossem capturadas e vendidas antes porque conseguiríamos agora?Muito estranho esse súbito interesse. Anonimo
Nenhum comentário:
Postar um comentário