FOLHA DE SP - 13/01
Há alguns anos, 2008 ou 2009, não me lembro bem, estive na Argentina com um amigo para visitar autoridades e economistas locais. Na ocasião, no jantar com um desses economistas, meu amigo perguntou sua opinião sobre o então presidente do BCRA (banco central), Martín Redrado. Ele suspirou, olhou para nós e, caprichando no insuperável sotaque portenho, confidenciou: "Martiiiin... ¡Martin es un pusilánime!".
Não pude deixar de me lembrar disso ao ler a Carta Aberta do presidente do nosso BC ao ministro da Fazenda, explicando as razões pelo estouro espetacular da meta de inflação (10,7%, ante 4,5%, muito além dos dois pontos percentuais de tolerância). Aqueles com paciência para encarar 5 páginas e 38 parágrafos do que, em meu tempo de escola, era conhecido como "encher linguiça" podem até ficar com pena da atual diretoria do BC, que se coloca como impotente e surpresa diante do choque inflacionário, mas, se for o caso, terão sido devidamente enrolados.
A narrativa do BC é a mesma desde 2014: a inflação refletiria dois processos de mudança de preços relativos, isto é, o ajuste dos preços administrados (como energia ou combustíveis) vis-à-vis preços livres, assim como a elevação dos preços de bens afetados pelo dólar (normalmente exportados e importados) em comparação àqueles cujo preço depende essencialmente das condições domésticas (tipicamente, mas não apenas, serviços).
Diante desses choques, caberia ao BC apenas evitar sua propagação aos demais preços, por exemplo, reduzindo a demanda para que empresas não repassassem integralmente o aumento das tarifas de energia sobre o preço dos seus produtos, ou o custo das matérias-primas importadas.
Ao atribuir a culpa pela inflação de 2015 aos preços administrados, porém, o BC deixa de lado algumas informações importantes. Em primeiro lugar, deveria reconhecer que tanto em 2013 como em 2014 a inflação só se manteve dentro dos limites de tolerância graças à prática (irresponsável) de contenção artificial dos preços públicos. Sua negligência inicial no trato com a inflação se encontra, portanto, na raiz da política de controle de preços entre 2012 e 2014 e, por consequência, da necessidade do ajuste em 2015.
Já no que se refere ao efeito do dólar, vale praticamente o mesmo ponto. O BC, por meio de suas intervenções, represou o ajuste da moeda e é, ao menos em parte, responsável pela forte desvalorização do real no ano passado.
É verdade, reconheço, que o dólar saltou de patamar após o infeliz anúncio do Orçamento para 2016 e dos sinais cada vez mais claros da incapacidade do governo no que se refere ao controle de seus gastos.
No entanto, enquanto agora o BC culpa o desempenho fiscal, em todas as suas manifestações oficiais anteriores afirmara que, "no horizonte relevante para a política monetária, o balanço do setor público tende a se deslocar para a zona de neutralidade e não [se] descarta a hipótese de migração para a zona de contenção", ou seja, sem maiores críticas à política fiscal, muito ao contrário. Hipocrisia pode ser a homenagem que o vício presta à virtude, mas um pouco mais de sutileza não faria falta.
Trata-se, enfim, de um documento pusilânime, em que o BC foge da responsabilidade pelo problema que criou. Que use de mais coragem na Carta do ano que vem.
Há alguns anos, 2008 ou 2009, não me lembro bem, estive na Argentina com um amigo para visitar autoridades e economistas locais. Na ocasião, no jantar com um desses economistas, meu amigo perguntou sua opinião sobre o então presidente do BCRA (banco central), Martín Redrado. Ele suspirou, olhou para nós e, caprichando no insuperável sotaque portenho, confidenciou: "Martiiiin... ¡Martin es un pusilánime!".
Não pude deixar de me lembrar disso ao ler a Carta Aberta do presidente do nosso BC ao ministro da Fazenda, explicando as razões pelo estouro espetacular da meta de inflação (10,7%, ante 4,5%, muito além dos dois pontos percentuais de tolerância). Aqueles com paciência para encarar 5 páginas e 38 parágrafos do que, em meu tempo de escola, era conhecido como "encher linguiça" podem até ficar com pena da atual diretoria do BC, que se coloca como impotente e surpresa diante do choque inflacionário, mas, se for o caso, terão sido devidamente enrolados.
A narrativa do BC é a mesma desde 2014: a inflação refletiria dois processos de mudança de preços relativos, isto é, o ajuste dos preços administrados (como energia ou combustíveis) vis-à-vis preços livres, assim como a elevação dos preços de bens afetados pelo dólar (normalmente exportados e importados) em comparação àqueles cujo preço depende essencialmente das condições domésticas (tipicamente, mas não apenas, serviços).
Diante desses choques, caberia ao BC apenas evitar sua propagação aos demais preços, por exemplo, reduzindo a demanda para que empresas não repassassem integralmente o aumento das tarifas de energia sobre o preço dos seus produtos, ou o custo das matérias-primas importadas.
Ao atribuir a culpa pela inflação de 2015 aos preços administrados, porém, o BC deixa de lado algumas informações importantes. Em primeiro lugar, deveria reconhecer que tanto em 2013 como em 2014 a inflação só se manteve dentro dos limites de tolerância graças à prática (irresponsável) de contenção artificial dos preços públicos. Sua negligência inicial no trato com a inflação se encontra, portanto, na raiz da política de controle de preços entre 2012 e 2014 e, por consequência, da necessidade do ajuste em 2015.
Já no que se refere ao efeito do dólar, vale praticamente o mesmo ponto. O BC, por meio de suas intervenções, represou o ajuste da moeda e é, ao menos em parte, responsável pela forte desvalorização do real no ano passado.
É verdade, reconheço, que o dólar saltou de patamar após o infeliz anúncio do Orçamento para 2016 e dos sinais cada vez mais claros da incapacidade do governo no que se refere ao controle de seus gastos.
No entanto, enquanto agora o BC culpa o desempenho fiscal, em todas as suas manifestações oficiais anteriores afirmara que, "no horizonte relevante para a política monetária, o balanço do setor público tende a se deslocar para a zona de neutralidade e não [se] descarta a hipótese de migração para a zona de contenção", ou seja, sem maiores críticas à política fiscal, muito ao contrário. Hipocrisia pode ser a homenagem que o vício presta à virtude, mas um pouco mais de sutileza não faria falta.
Trata-se, enfim, de um documento pusilânime, em que o BC foge da responsabilidade pelo problema que criou. Que use de mais coragem na Carta do ano que vem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário