- terça-feira, 12 janeiro 2016 16:14
A primeira das lições que a lama nos deu é sobre o licenciamento ambiental. Esse processo, fragilizado e negligenciado ao longo dos últimos anos, é o cerne do desastre de Mariana. Ali, o licenciamento ambiental foi, mais uma vez, desrespeitado e as condicionantes que deveriam ser cumpridas, como o estabelecimento de um plano de emergência, foram deixadas de lado. Apenas uma amostra do que vem acontecendo pelo país afora. Como se isso fosse pouco, há iniciativas tramitando no Congresso Nacional que fragilizam ainda mais o licenciamento ambiental, como o projeto de lei do Senado (PLS) nº 654/2015, que cria um procedimento acelerado e simplificado para o licenciamento de grandes obras, como hidrelétricas, estradas, ferrovias, portos e instalações de telecomunicações.
A segunda lição da lama versa sobre o descumprimento histórico dos códigos florestais, tanto o que estava em vigor até 2012 como o novo código. A região da Bacia do Rio Doce estava, já antes da passagem da lama, muito degradada: Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais não vinham sendo respeitadas há anos, como tem sido a regra em diversas partes do Brasil. O resultado se traduzia em muitas áreas desmatadas, o comprometimento da recarga dos aquíferos da região e o assoreamento dos rios, elementos que dificultam a regeneração dos danos ambientais produzidos pelo rompimento da barragem.
A terceira lição é uma derivação da segunda: o descumprimento da lei florestal se reflete também sobre a integridade das Unidades de Conservação que estão na Bacia do Rio Doce. Seus entornos, e em muitos casos também suas áreas, têm sido alvo de desmatamento e de especulação imobiliária. Tudo isso acontecendo no Cerrado e na Mata Atlântica, biomas que, mesmo sem as lições da professora lama, sabemos que estão bastante ameaçados.
A quarta lição pode ser resumida como o binômio “forte reação e fraca ação”. Está relacionada com as duas anteriores, mas é, talvez, uma lição ainda mais amarga. O Rio Doce já não chegava mais em sua foz, em Linhares, no Espírito Santo. Ou seja, não conduzia mais água até a foz, por causa do comprometimento de sua vegetação e da devastação da bacia. Quando essa situação se deu, em julho do ano passado, houve uma grita geral: reportagens, protestos e indignação. Apesar disso, pouco ou nada foi feito para resolver a situação. Esse binômio, refletido nessa lição, pode ser visto em diversos casos onde o meio ambiente é o foco. Um resumo possível dessas últimas três lições é que as questões ambientais não são prioritárias, sempre perdem para outros interesses como os da mineração, da especulação imobiliária, do agronegócio e da siderurgia.
A quinta lição que a lama nos deu ao passar pelos diversos municípios é que a existência de saneamento básico não é a regra e sim a exceção. Diversas cidades, como Governador Valadares, jogam esgoto ‘in natura’ no Rio Doce. Vale dizer que as projeções recentes dão conta de que mantido o ritmo atual, os serviços de saneamento básico serão universalizados, no país, só em 2053...
Caminha junto com essa lição, a sexta, que trata da poluição da bacia. Todo tipo de rejeitos eram jogados historicamente no Rio Doce e em outros rios da bacia. A fiscalização era e ainda é deficitária; ainda assim, alguns poluidores foram multados, mas em agosto do ano passado, o Estado de Minas Gerais aprovou uma lei anistiando as multas ambientais. Essa lição não precisa nem de mais explicações, nem de resumo: trata-se de um convite ao descaso com o meio ambiente.
A sétima lição se relaciona com a forma pela qual o Estado brasileiro trata as populações que vivem diretamente dos recursos naturais, como os pescadores que foram prejudicados pela passagem da lama. Calcula-se que a quantidade de peixes mortos superou 10 toneladas. Mas vale perguntar: será que, mesmo antes da lama, numa bacia tão degradada, os pescadores conseguiam tirar seu sustento das águas e viver bem? E os índios Krenak, cuja terra indígena é banhada pelo Rio ex-Doce? Rio sagrado para esse povo que afirma que “morre o rio, morremos todos”? Como viverão? Fala-se em pelo menos 10 anos para o rio começar a se recuperar... ainda assim, em condições favoráveis...
A oitava é uma lição de complacência. Ou seja, de como o Brasil lida com esse tipo de situação. Uma amostra disso está nas campanhas para que o resto do país enviasse água potável para a região do desastre. Ora, é, certamente, ótimo que as pessoas se engajem e colaborem, mas quem tinha que obrigatoriamente garantir a água para as populações afetadas pelo desastre é a empresa responsável pela catástrofe, a Samarco, sendo que ao estado caberia obrigá-la a fazê-lo. O mesmo vale para as medidas técnicas que deveriam ter sido adotadas para evitar, ou pelo menos para mitigar, suas graves consequências. Infelizmente, parece que o Estado brasileiro não quer se indispor com as empresas mesmo diante de um desastre de tais proporções.
A nona lição é sobre nossa ignorância: pouco sabemos sobre nossa biodiversidade marinha e pouco sabemos sobre quais serão os impactos das partículas de lama, diluídas na água do mar, sobre corais, crustáceos, moluscos, peixes e mamíferos. Como a pluma (termo usado para designar as partículas de lama diluídas no mar) não é tão facilmente visível como a lama concentrada, as pessoas continuam nadando nas praias e comendo frutos do mar, um mar cheio de lama e talvez de metais pesados.
Quem sabe quais serão as consequências... Essa ignorância, para piorar, guarda uma arrogância: não sabemos o que fazer? Por que não procuramos especialistas, pesquisadores, estudiosos, gente de qualquer lugar do planeta que poderia nos ajudar a conter a lama ou pelo menos seus impactos?
Por fim, a décima lição é sobre a inconsequência. Não estão claros, nem são divulgados, quais são os reais impactos dessa lama e seus elementos sobre as populações humanas. É conveniente esquecer que a lama ainda está vazando da barragem para o falecido Rio Doce e que a previsão é que isso ainda aconteça por mais dois meses.
Nos últimos dias, apesar das constantes negações do governo, a lama, ou a pluma, parece ter chegado ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos e certamente vai causar grandes impactos por lá... No país em que não há consequências para autoridades que dão declarações inverídicas, a ministra do Meio Ambiente afirmou que isso não aconteceria. E se aconteceu?
*Nurit Bensusan é assessora do Instituto Socioambiental (ISA) e especialista em biodiversidade.
Este artigo foi publicado originalmente no site do Instituto Sociambiental (ISA) e republicado em O Eco.
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