A mudança de vida de pescadores como Neves ilustra o pecado original das
hidrelétricas: mudar a natureza do rio, interrompendo seu fluxo para
gerar energia.
Porto Velho, Rondônia, 3/10/2016 – “Antes eu pescava 200 quilos por
semana, agora consigo 40 quando tenho sorte”, queixou-se Raimundo Neves
culpando as duas centrais hidrelétricas construídas no rio Madeira, uma
acima e outra abaixo de Jaci Paraná, o povoado onde vive, no Estado
brasileiro de Roraima.
“A uma tonelada só chegam os que pescam ao pé da represa de Jirau”, acrescentou Neves. É que os peixes tentam subir o rio, mas são bloqueados pelo paredão da represa e se concentram ali “dando voltas”, à mercê de pescadores ilegais, explicou à IPS. Os barcos pesqueiros invadem a área proibida por razões de segurança, para evitar o controle.
É proibido aproximar-se a menos de 2,8 quilômetros da represa, limite
imposto pela Marinha diante dos riscos de turbulências provocadas pela
operação do vertedouro e das turbinas, explicou a concessionária da
hidrelétrica de Jirau, a empresa Energia Sustentável do Brasil (ESBR).
A mudança de vida de pescadores como Neves ilustra o pecado original das
hidrelétricas: mudar a natureza do rio, interrompendo seu fluxo para
gerar energia. No caso de Jirau e Santo Antônio, a outra central, foi
represado o rio Madeira, o afluente mais caudaloso do rio Amazonas, que
recebe águas da pendente oriental da Cordilheira dos Antes e de grandes
bacias da Bolívia e do Peru.
Essas usinas, perto de Porto Velho, capital de Rondônia, inauguraram uma
nova geração de grandes hidrelétricas no Brasil, com novas tecnologias e
uma legislação acumulada durante as últimas três décadas, destinada a
reduzir danos ambientais e sociais e a compensar a população afetada.
Aproveitando o forte caudal – superior à pequena queda do rio, de
aproximada 20 metros em cada caso – foram usadas pela primeira vez as
horizontais turbinas bulbo em grande escala, 50 em cada uma, com
capacidade total de 6.900 megawatts (MW). Dessa forma limitou-se a
superfície conjunta das duas represas a 710 quilômetros quadrados, pouco
mais do que a do rio nas cheias e uma das menores proporções de área
inundada por energia gerada, segundo as concessionárias das centrais.
Mas isso não impediu as críticas por deslocamento forçado de comunidades ribeirinhas tradicionais, desmatamento e submersão de florestas, danos à reprodução dos peixes e caos social pela criminalidade, prostituição e falência de serviços públicos diante da chegada de milhares de pessoas atraídas pelos empregos nas obras. O Movimento de Afetados por Represas (MAB) e um crescente número de pesquisadores condenam os impactos que consideram subestimados nos dados das empresas que construíram e têm a concessão das hidrelétricas por 35 anos.
“A cada ano aumentam os afetados não reconhecidos por Santo Antônio e, por fim, as queixas na justiça. Os reassentados receberam terras inférteis e sem a reserva florestal legal que deve ser 80% de cada propriedade na Amazônia”, disse à IPS João Dutra, um dos coordenadores do MAB em Rondônia. Os deslocados não foram indenizados por “renda cessante”, como os pescadores e outros ribeirinhos, inclusive porque, “em geral, exercem várias atividades”, muitas não reconhecidas, acrescentou.
Parte das famílias desistiu do reassentamento e muitas outras continuam
dependentes de uma “ajuda mensal”, cinco anos depois de deslocadas,
contou Dutra.A Santo Antônio Energia (SAE), concessionária da
hidrelétrica águas abaixo, assegura ter investido US$ 620 milhões no
câmbio atual em 28 programas “socioambientais”. Equivale a 10% do custo
de construção da central.
A implantação de várias unidades de saúde, inclusive dois hospitais,
mais a contratação e capacitação de profissionais, permitiu à rede local
de saúde ampliar em mil consultas seu trabalho diário e elevar para 74 o
número de postos de saúde familiar, o dobro de alguns anos antes,
informou a empresa.
A construção e as reformas de escolas aumentaram a capacidade para seis
mil novos alunos e foram doados equipamentos modernos aos bombeiros e à
polícia, incluindo seu ramo ambiental, acrescentou a SAE. O mais caro
foi construir 548 moradias em sete reassentamentos.
“A ESBR apoia o desenvolvimento de pequenos produtores, por intermédio
de cooperativas, com a de Jirau, que tem 160 sócios, impulsionando o
cultivo e a extração de frutas amazônicas, como açaí (Euterpe oleracea) e
cupuaçu (Theobromagrandiflorum), e agroindústrias de farinha de
mandioca e polpas de frutas”, disse à IPS o gerente ambiental da
companhia, Veríssimo Alves.
Entre seus 34 programas, incluem-se piscicultura; pesca com manejo do
pirarucu (Arapaima gigas), peixe amazônico que pode chegar a 200 quilos,
um barco-hospital para atender populações ribeirinhas, e assistência às
aldeias indígenas que “em um caso está a 800 quilômetros de Jirau”, por
exigência das autoridades ambientais, acrescentou.
As duas empresas também celebram a contribuição de suas maciças
campanhas para controle da malária, antes um grave problema sanitário.
Além disso, aportaram muitos conhecimentos sobre o passado e a fauna do
Madeira. Milhares de objetos arqueológicos enriquecerão museus e a
universidade de Porto Velho.
“A SAE impulsionou a pesquisa da ictiofauna, com uma coleção de quase
mil espécies que confirma o rio Madeira como o de maior diversidade de
peixes na Amazônia”, afirmou à IPS o reitor da Universidade Federal de
Rondônia, Ari Ott.Depois de muitos conflitos, incluindo ações judiciais
buscando suspender as obras, greves selvagens e protestos com invasão
dos canteiros de obra, as tensões pareciam superadas pelo fato consumado
de as centrais operarem desde 2012 e 2013.
Uma cheia sem precedentes do Madeira desalojou temporariamente cerca de
30 mil pessoas em Porto Velho e arredores. O caudal do rio em alguns
dias de março superou em 70% a média histórica do mês. Povoados, bairros
inteiros e vários quilômetros de estrada ficaram debaixo da água.
As duas centrais foram acusadas de, pelo menos, agravarem as inundações
ao longo do Madeira no Brasil e no lado boliviano. As concessionárias se
defenderam apontando os fenômenos climáticos coincidentes que
provocaram chuvas excepcionais em toda a bacia e recordando cheias
semelhantes, como a de 1982. A intensidade de 2014 só se repete a cada
350 anos, segundo especialistas.
De todo modo, o desastre ampliou a área inundável pelas duas represas,
segundo a Agência Nacional de Águas, obrigando as companhias a
reassentar ou indenizar novas famílias ameaçadas por inundações. E
acentuou incertezas para o futuro com a mudança climática.
Novas batalhas surgiram com a expansão da central de Santo Antônio, que
acrescentou seis novas turbinas às 44 já operacionais, para gerar mais
417 MW e alcançar um total de 3.568. Isso elevaria a represa em 80
centímetros, deslocando mais ribeirinhos, mas ainda depende de
autorização ambiental.
A ESBR espera operar Jirau com a “cota 90 constante”. A represa sempre a
90 metros de altitude, como naturalmente ocorre nas cheias, permitiria
gerar 420 MW a mais durante a estiagem, entre junho e dezembro, sem
novas turbinas ou custos. “Todos ganhariam, nós, o governo, a Bolívia e a
população ribeirinha”, pontuou Isaac Teixeira, diretor de Operações da
ESBR.
Depende de um acordo com a Bolívia, que seria compensada com energia adicional, ao aceitar o trecho fronteiriço do Madeira sempre no nível de cheias. E deve reativar protestos de ambientalistas e ribeirinhos.
Fonte: Envolverde
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