terça-feira, 14 de março de 2017

Unesco inicia resgate do gelo da Terra

Por Claudio Angelo, do Observatório do Clima
Geleira do Monte Illimani, na Bolívia, que será amostrada por brasileiros em junho. Foto: Patrick Ginot/IRD.
Geleira do Monte Illimani, na Bolívia, que será amostrada por brasileiros em junho. 
Foto: Patrick Ginot/IRD.


Um grupo internacional de cientistas, sob os auspícios da Unesco, lançou nesta semana em Paris um projeto ousado para salvar a memória das geleiras de montanhas do mundo inteiro. Eles percorrerão os glaciares mais vulneráveis ao aquecimento global, como os dos Alpes e dos Andes tropicais, coletando amostras de gelo que preservam informações sobre o clima da Terra no passado. Essas amostras serão estocadas numa caverna artificial na Antártida, e preservadas para as gerações futuras.



A próxima expedição do projeto, batizado Ice Memory, já tem data e local para acontecer: será em junho, no monte Illimani, nos arredores de La Paz, Bolívia. E terá envolvimento de cientistas brasileiros.


Eles farão uma penosa subida até o glaciar do pico andino, a 6.000 metros de altitude, carregando nas costas as partes de uma broca elétrica, que será usada para perfurar os 140 metros de espessura do gelo e coletar dois cilindros de 10 centímetros de diâmetro. Um deles será mandado para a Antártida, para ser conservado a -54oC, na estação polar ítalo-francesa Concordia. O outro será analisado quimicamente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e outras instituições da França, da Rússia e dos EUA.


O trabalho é arriscado, tanto pelas dificuldades da ascensão com o equipamento – é impossível chegar ao alto do Illimani de helicóptero – quanto pelas condições de trabalho em alta montanha, onde cientistas já passaram mal devido à altitude em uma expedição da UFRGS em 1999.



O sacrifício é compensado pelo baú de tesouros de informações que o gelo glacial traz em si: os cilindros, conhecidos como testemunhos de gelo, guardam o registro preciso de como era o clima da Terra no passado.


Estudando-os, é possível saber exatamente qual era a composição da atmosfera séculos e milênios atrás, com precisão anual: afinal, uma geleira é formada pela lenta deposição e compactação de camadas de neve do inverno.


As geleiras de montanha guardam, ainda, dados preciosos sobre a variação do clima local. No caso das montanhas da Bolívia, por exemplo, todo o histórico de grandes queimadas na Amazônia nos últimos 18 mil anos está preservado no gelo.


Só que o aquecimento global está erodindo essa memória.
“Embora o Donald Trump não acredite, essas geleiras estão sofrendo grande derretimento no verão”, disse ao OC o glaciologista Jefferson Simões, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, um dos líderes do projeto. O derretimento causa amnésia nas geleiras: a água da superfície penetra até camadas de gelo mais no fundo, bagunçando a ordem cronológica perfeita de camadas de neve, eliminando as bolhas de ar que aprisionam a atmosfera do passado tornando o gelo imprestável para análises.


“Estamos perdendo esses registros”, afirmou Simões.
Algumas geleiras estão ficando inutilizadas para a ciência. Essas são as sortudas. As azaradas estão simplesmente desaparecendo ou já desapareceram, como a do monte Kilimanjaro, na Tanzânia, e a do monte Chacaltaya, vizinho do Illimani.


Os cientistas estimam que ao longo deste século não reste mais nenhuma geleira abaixo de 3.500 metros de altitude nos Alpes e abaixo de 5.000 m nos Andes, caso o aquecimento da Terra siga o curso que o atual presidente americano e seu gabinete de lobistas do petróleo desejam que siga.



O Ice Memory já coletou, no ano passado, testemunhos da geleira Col du Dôme, no Mont Blanc, ponto culminante da Europa. Em 2020, será construída a caverna artificial para abrigar as amostras de todo o projeto, que conta com equipes de 11 países (França, Suíça, Itália, Brasil, Suécia, Japão, Bolívia, EUA, Rússia, Alemanha e China). Será o primeiro santuário de amostras de gelo do mundo, numa região, o leste antártico, que por enquanto está a salvo dos impactos da mudança do clima.

Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. logo-observatorio-clima

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