Inédita conferência da ONU realizou uma “chamada para ação” de parceiros
e voluntários para promover a conservação dos oceanos; um dos desafios
do Brasil é passar de 1,5% para 10% de áreas marinhas protegidas
O que inundações no Sul do Brasil, o aumento da frota de automóveis e a
crescente produção de lixo têm em comum? Para os oceanos, tudo! É na
porção aquática do planeta que os efeitos das ações cotidianas dos seres
humanos são sentidos e também causam reações. Engana-se quem pensa que
um papel jogado pela janela, o uso excessivo de produtos descartáveis e
combustíveis fósseis não influenciam nos mares do planeta – e,
consequentemente, no clima e na qualidade de vida de onde mora.
O grande problema é que estamos matando de forma silenciosa a maior
parte de nosso planeta, já que 71% da Terra é coberta de água em estado
líquido. Segundo a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
e vice-presidente da Associação Mar Brasil, Camila Domit, os oceanos
são a base para a sobrevivência da humanidade. “São eles que garantem a
produção do oxigênio e recursos para nossa alimentação e desenvolvimento
econômico, como produção de óleo e gás. A biodiversidade aquática é
imensa e grande parte ainda desconhecida. É por via marítima que fazemos
conexão entre diferentes continentes, comércio e integração, além de
proporcionar uma excelente fonte de lazer, esportes e, acima de tudo,
paz e tranquilidade”, analisa a bióloga que também é membro da Rede de
Especialistas em Conservação da Natureza.
Os mares e os oceanos são considerados os verdadeiros pulmões do mundo,
pois abrigam espécies de algas marinhas e cianobactérias responsáveis
pela maior parte da produção de oxigênio disponível na atmosfera. Também
atuam no equilíbrio climático do planeta, absorvendo grande parte do
calor que tem sido gerado com a intensificação do efeito estufa, como
explica o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) e membro da Rede de Especialistas em
Conservação da Natureza, Luiz Faraco. “Os oceanos têm uma relação ‘de
mão dupla’ com o clima: influenciam fortemente na temperatura do
planeta, e ao mesmo tempo são afetados pela mudança climática. Estudos
recentes demonstram que os oceanos estão se aquecendo a uma taxa 13%
mais rápida do que imaginávamos e em regiões cada vez mais profundas”,
explica.
A consequência do aumento do calor armazenado nos oceanos afeta a
temperatura da superfície da água, as correntes marítimas e também o
nível do mar, além de a mudança climática estar entre as principais
causas de perda de biodiversidade no mundo, juntamente com a degradação
de habitats e a invasão biológica por espécies exóticas, explica André
Ferretti, gerente de estratégias de conservação da Fundação Grupo
Boticário de Proteção à Natureza. O aquecimento provoca mudanças nas
correntes marítimas e massas de ar, o que aumenta a frequência e
intensidade de grandes tempestades, furações e tufões, além de
influenciar o maior derretimento de geleiras, aumento do nível do mar e
extinção de muitas espécies vegetais e animais. Mesmo que fosse possível
parar todas as causas de mudança climática hoje, ainda assim teríamos
que lidar com todo o impacto que já causamos e que nos afeta
diretamente”, analisa Ferretti.
Interesses econômicos e hábitos de vida
Referência internacional em bodysurf, Henrique Pistilli, surfou ao longo
de sua carreira as cinco maiores e mais perigosas ondas do mundo. O
atleta, conhecido como Homem Peixe, também tem notado alterações
ambientais em diversos lugares, entre eles nas correntes de ar em
Florianópolis (SC), na vegetação em Fernando de Noronha (PE), e ainda na
vida marinha da Bahia de Guanabara (RJ), da Indonésia, e do Havaí. “Os
ciclos estão mudando. Já notamos chuva em época de seca em Noronha, por
exemplo, e fases em que não deveria haver ondas, como de junho a
novembro, e vemos um mar bem movimentado nessa época”, descreve.
Essas mudanças observadas por Pistilli são agravadas por problemas como a
poluição, que prejudica a qualidade da água e afeta a existência de
diversas espécies. Camila Domit alerta que hoje vivemos o processo
inverso, de tentar remediar uma situação que poderia ser evitada. “O
lixo que está nos oceanos, levando várias espécies a óbito, direta ou
indiretamente, não chegou lá sozinho e é o efeito de cada um de nós, que
somado, leva a um efeito gigantesco”, reforça. Ela explica que grande
parte do dinheiro e do tempo gasto poderia ser evitado ou corrigido com
mudanças de comportamento, como consumo consciente e responsável. “Não
podemos mais remediar. Temos que evoluir e andar para frente. Já passou
da hora de investirmos em um sistema de energia limpa e levar o
pensamento sustentável para a indústria, universidades, cidades,
comércio”, afirma ela.
Henrique Pistilli soma forças com os especialistas ao afirmar: “estamos
assassinando o mar. O oceano não tem fronteiras. Encontrei lixo de
outros continentes na praia em Fernando de Noronha e esse lixo remoto é
que traz o alerta de que está tudo conectado e que a gente precisa tomar
as rédeas dos nossos comportamentos. O problema está debaixo do nosso
nariz e meu receio é termos um oceano vazio, um cemitério de águas”,
aponta.
Henrique Pistili soma vozes à Ferretti e fala sobre o papel das
instituições no processo de combate à mudança climática. “A indústria e a
economia acham que crescer é igual a se desenvolver, mas estão
consumindo o mundo natural. Uma pesquisa do Projeto Tamar aponta que até
2050 vai haver mais lixo do que peixe nas águas”, fala. Para ele, a
sociedade é agente central na busca por uma vida mais sustentável e
precisa estar atenta aos seus hábitos. “As pessoas estão míopes só vendo
o mar como abastecimento de água.
A natureza é muito sábia, cria embalagens no tempo que precisam durar, como uma casca de fruta que se reintegra rapidamente ao ambiente. Por que usamos um copo ou garrafa plástica que vai levar mil anos para se decompor? O consumo do ser humano moderno é mimado, aperta um botão e acende a luz, abre a torneira e sai água, vivendo dentro de uma caixa fechada na cidade achando que tudo isso é infinito. É preciso trabalhar a visão de mundo”, conclui.
A natureza é muito sábia, cria embalagens no tempo que precisam durar, como uma casca de fruta que se reintegra rapidamente ao ambiente. Por que usamos um copo ou garrafa plástica que vai levar mil anos para se decompor? O consumo do ser humano moderno é mimado, aperta um botão e acende a luz, abre a torneira e sai água, vivendo dentro de uma caixa fechada na cidade achando que tudo isso é infinito. É preciso trabalhar a visão de mundo”, conclui.
Futuro sustentável
Em junho deste ano, a ONU realizou pela primeira vez a Ocean Conference.
O evento, que aproveitou a data do Dia Mundial dos Oceanos, foi
realizado em Nova Iorque (EUA), para discutir o 14º item dos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – uma agenda estabelecida pela
Organização das Nações Unidas (ONU), composta por 17 objetivos e que
deve ser implementada por todos os países até 2030. Entre os temas
abordados, estão a erradicação da fome, igualdade de gênero, crescimento
econômico ordenado e a conservação e uso sustentável da natureza. O 14º
objetivo diz respeito à “Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos
mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.
Mais do que apenas teoria, a conferência realizou uma “chamada para
ação” de parceiros e voluntários para apoiar a implementação do Objetivo
14, por meio de compromissos voluntários. Entre as mais de 1.300
iniciativas cadastradas por organizações de todo o mundo, a brasileira
Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza apresentou quatro
estratégias para proteger a área marinha brasileira, que conta com
apenas 1,5% de área legalmente protegida – enquanto os compromissos
assumidos pelo país no âmbito das Metas de Aichi da Convenção das Nações
Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB) determinam que pelo menos 10%
de áreas marinhas e costeiras deverão ser conservadas por meio de
sistemas de áreas protegidas até 2020.
Os quatro compromissos assumidos pela Fundação Grupo Boticário são: o
apoio à criação e implementação de Unidades de Conservação Marinhas por
meio de políticas públicas, apoio à projetos de conservação marinha e
geração de informação científica de qualidade; realização de um simpósio
dedicado ao tema de Unidades de Conservação Marinhas e a mobilização da
sociedade por meio de estratégias de conservação.
Na opinião de Malu Nunes, diretora executiva da Fundação Grupo
Boticário, esse é um caminho para mobilizar os diferentes setores da
sociedade em prol da proteção dos oceanos. “A conservação da natureza
não passa apenas pelas florestas e a Conferência dos Oceanos é a
materialização disso. Apoiar e viabilizar iniciativas que promovam a
proteção e conservação da biodiversidade é vital para a sobrevivência da
nossa sociedade e do bem-estar de todo o planeta”, finaliza.
*André Ferretti, Camila Domit, Luiz Faraco e Malu Nunes fazem parte da
Rede de Especialistas de Conservação da Natureza, uma reunião de
profissionais, de referência nacional e internacional, que atuam em
áreas relacionadas à proteção da biodiversidade e assuntos correlatos,
com o objetivo de estimular a divulgação de posicionamentos em defesa da
conservação da natureza brasileira. A Rede foi constituída em 2014, por
iniciativa da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
Fonte: EcoDebate
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