Como os
passarinhos estão se tornando seres urbanos
Mapeamento
de espécies em Estado americano conclui que, ao longo do século 20, cidades se
tornaram mais favoráveis às aves, enquanto condições em habitats rurais foram
afetadas por uso de pesticidas e desmatamento.
Por BBC
06/08/2018 09h04 Atualizado 06/08/2018 09h04
Pesquisadores
dizem que, ao longo do século 20, 'hábitats urbanos se tornaram mais favoráveis
aos pássaros' (Foto: UNIVERSIDADE DE ILLINOIS URBANA-CHAMPAIGN)
Atire o
primeiro grão de milho quem nunca deu comida aos passarinhos, seja num parque,
numa praça ou no quintal de casa. Pois essa prática – muitas vezes condenada,
principalmente no caso de pombos que podem se tornar vetores de doenças –, de
acordo com cientistas, é um fator preponderante para que as aves estejam se
tornando cada vez mais animais urbanos.
Faz todo o
sentido. Enquanto no meio rural a alimentação de muitos passarinhos é cada vez
mais nociva a eles - por conta dos agrotóxicos aplicados às plantações - e o
desmatamento deixa o ambiente inóspito para descansos e o próprio processo de
construção de ninhos, as cidades são convidativas: comida farta - cortesia dos
humanos - e áreas verdes como parques e praças, geralmente bem-providas de
árvores.
Este
cenário é apresentado em estudo recém-publicado pelo periódico especializado
The Condor: Ornithological Applications. Cientistas da Universidade de Illinois
Urbana-Champaign refizeram um levantamento realizado inicialmente entre 1906 e
1909 para compreender as mudanças de habitat das aves do Estado americano de
Illinois.
Com base em
modelos matemáticos, concluíram que a ocupação territorial dos pássaros mudou -
e muito. E, apostam os cientistas, essa amostragem pode ser replicada em
qualquer lugar urbanizado do mundo com um enorme grau de semelhança.
Pássaros
encontram ampla oferta de comida nas grandes cidades (Foto: MARIANA VEIGA)
No total,
foram catalogadas 66 espécies diferentes de aves. E, conforme apontam os
resultados, as 40 que se adaptaram aos meios urbanos aumentaram a população -
enquanto as outras 26 viram seu tamanho diminuir.
De acordo
com o ornitólogo Michael Ward, professor do Departamento de Recursos Naturais e
Ciências Ambientais da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, isso
aconteceu porque, ao longo do século 20, "os habitats urbanos tornaram-se
mais favoráveis aos pássaros, à medida que a agricultura se desenvolveu e o
gesto de dar comida às aves se tornou mais popular".
As pequenas
e diversificadas plantações, antes um prato cheio para passarinhos, se
transformaram em vastas monoculturas de milho e soja com manejo industrial, ou
seja, uso intensivo de herbicidas e pesticidas. Um tempero nada agradável,
praticamente um recado de que aquilo não era para o seu bico.
"É
necessário entender como é que as espécies usam e respondem a mudanças não
apenas em seu habitat primário, mas também em habitats só utilizados
ocasionalmente", comenta o ornitólogo. "O que entendemos é que aquelas
espécies que podem tirar proveito de habitats alternativos, estas conseguem
expandir suas populações."
Uso
intensivo de herbicidas e pesticidas se tornou um 'tempero' nada agradável aos
pássaros na zona rural (Foto: M.K. RUBEY)
O professor
diz que o passo seguinte do trabalho agora é compreender justamente quais
espécies são capazes dessa adaptação. E quais não são. "Isto nos permitirá
prever melhor quais precisam de esforços de conservação. Habitats urbanos são
os em que muitas espécies têm conseguido procriar mais. A população em geral,
ao fornecer alimentação e um certo abrigo em seus quintais, tem a oportunidade
de ajudar uma variedade enorme de espécies."
Novos
olhares
A
comunidade acadêmica entende que esse estudo abre um novo leque de possibilidades
para a compreensão das populações animais. Isto porque ele quebra um paradigma:
o de que necessariamente a transformação de um habitat interfere no tamanho de
suas populações. Pode haver uma adaptação - e a consequente troca de um habitat
por outro.
"Ao
tentar explicar as mudanças no tamanho e na distribuição da população, os
biólogos geralmente olham primeiro para as mudanças nos habitats que estão mais
intimamente associados com uma espécie. Este estudo, por sua vez, mostra que
esses habitats primários, como denominados pelos autores, não necessariamente
representam mudanças na população", comenta a bióloga, zoóloga e
ecologista Amanda Rodewald, do Cornell Lab of Ornithology, da Universidade de
Cornell, nos Estados Unidos.
"Anteriormente",
prossegue a pesquisadora, "a extensão em que uma espécie usa habitats
novos ou alternativos, como áreas urbanas, poderia explicar melhor os padrões.
Uma implicação importante para a conservação é que rastrear espécies dentro de
habitats alternativos pode ajudar os biólogos a entender, antecipar e
potencialmente mitigar mudanças populacionais".
O canto
do sabiá
No Brasil,
um notório caso de ave silvestre que se adaptou muito bem ao meio urbano é o
sabiá-laranjeira. Não à toa, aliás, o pássaro é a ave símbolo do Brasil -
oficialmente reconhecido assim desde 2002.
Na capital
paulista, o sabiá está entre as mais carismáticas das 285 espécies que vivem na
cidade - ao lado de bem-te-vis, maritacas, quero-queros, juritis, sanhaços e
pica-paus. É uma ave que prefere os parques, mas mesmo assim pode ser flagrada,
vez por outra, descansando nos fios elétricos, ao lado de pardais e pombas.
Em 1966, o
ornitólogo Johan Dalgas Frisch, hoje com 88 anos e presidente da Associação de
Preservação da Vida Selvagem, encabeçou uma campanha pela preservação dos
sabiás pedindo para que as pessoas plantassem árvores frutíferas em seus
quintais. "Porque os passarinhos precisam de restaurantes",
argumentava ele.
Sabiá-laranjeira
é um exemplo de ave silvestre que se adaptou muito bem ao meio urbano no Brasil
(Foto: INSTITUTO PASSARINHAR/ DIVULGAÇÃO)
A campanha
deu certo. As aves voltaram a se espalhar pelas cidades.
O que
ninguém contava é que essa adaptação ao meio urbano ainda faria da ave um bicho
com sintomas similares ao do homem contemporâneo que vive nas grandes cidades:
um ser estressado com o trânsito, fazendo hora extra e namorando pouco.
A partir de
uma queixa comum da população das grandes cidades, a de que os sabiás estavam
cantando durante a madrugada e atrapalhando, assim, o sono dos justos e dos
injustos, o Instituto Passarinhar resolveu promover uma pesquisa. E comprovar
se isso realmente está acontecendo.
Desde 2013,
os pesquisadores colocaram no ar um site colaborativo em que as pessoas podem
informar o horário em que ouviram o canto de um sabiá, e a localidade. O
balanço mais recente, divulgado há pouco mais de um ano e com dados
consolidados de 10 mil registros, mostra que o sabiá paulistano sofre de
insônia: começa a cantar cinco horas antes do que seus primos do interior - e
essa orquestra só para quatro horas mais tarde do que o fim do expediente. O
site está em www.horadosabia.com.
Segundo os
biólogos responsáveis pelo estudo, nada mais antinatural. Porque na vida rural,
digamos assim, o pássaro começa a cantar com o nascer do sol. E interrompe a
cantoria ao fim do dia.
Na capital
paulista, entretanto, o pico de atividade do sabiá é às 3h da madrugada. Para
desespero dos humanos.
Hábito de
dar comida aos pássaros é muitas vezes condenado, principalmente no caso de
pombos, vetores de doenças (Foto: MARIANA VEIGA/BBC)
A explicação
estaria na adaptação. Mas a um problema ao qual muitas pessoas jamais se
adaptam: ao trânsito infernal. Na realidade, o barulho causado pelos carros tem
feito o sabiá procurar horários alternativos.
O ruído
causado pelos carros nas ruas de São Paulo, atualmente, oscila entre 70 e 100
decibéis. Um sabiá-laranjeira consegue cantar, no máximo, a até 70 decibéis. O
pássaro canta para conseguir conquistar a fêmea e, assim, acasalar, mas,
segundo biólogos, o sabiá paulistano só está encontrando condições para se
comunicar, para ouvir e para ser ouvido no silêncio da madrugada.
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