Por Daniela Chiaretti | De Acandí, Colômbia
No humilde aeroporto de Acandí, no noroeste colombiano, há uma escultura grande de uma tartaruga-de-couro cinzenta. Do lado esquerdo, menos visível, está a ruína de um pequeno avião que foi usado pelo narcotráfico e alguém incendiou. Tartaruga e avião são metáforas concretas da aposta no futuro e do esforço para superar o passado que confrontam os habitantes da região mais pobre da Colômbia. É aqui que comunidades quilombolas se organizaram, monitoram matas e tartarugas, e protagonizam a primeira venda comunitária de créditos de carbono pela proteção de florestas do país.
São os afrodescendentes que vivem no corredor de biodiversidade Chocó-Darién, que começa no Panamá e avança pela costa do Pacífico da Colômbia. É conhecido como um polo de alta biodiversidade, por onde transitam onças e antas de Baird, além de espécies ameaçadas de fauna e flora. É um dos lugares onde mais chove no mundo.
As comunidades afrodescendentes colombianas, como se denominam, tem trajetória similar aos quilombolas brasileiros. São originárias dos processos de cimarronaje, a fuga de escravos de fazendas de cacau e outros cultivos, para espaços escondidos nas florestas. Em Acandí, nove comunidades afrodescendentes se organizaram no Cocomasur, a sigla para Consejo Comunitario de las Comunidades Negras de la Cuenca del Río Tolo y Zona Costera Sur.
Os turistas que desembarcam em Acandí são seduzidos pelo mar de sete cores do Caribe, pela natureza exuberante da região, pela possibilidade de ajudar tartaruguinhas recém-nascidas, e ameaçadas, a avançar na areia e sumir nas ondas. O turismo ecológico e social é a aposta do município que vive o cotidiano desigual dos pequenos agricultores e de grandes fazendas de gado.
Relâmpago é o nome do velho cavalo que puxa a carroça onde acomodam malas e turistas. No seu passo a sede do município fica a 15 minutos. São 3,5 quilômetros em estrada de terra. Na paisagem, pequenas pontes de madeira, ferros-velhos, mecânicas de motos e extensas pastagens. Ao lado de algumas "bodeguitas" fica a sede do Cocomasur.
O Estado colombiano regularizou há alguns anos a posse da terra aos coletivos quilombolas e terras indígenas. No caso de Cocomasur, a titulação aconteceu em 2005 e contemplou 13.500 hectares de floresta tropical. A pecuária é forte na região. Estima-se um rebanho de 47 mil cabeças.
O processo de derrubar floresta e abrir pastagens ameaça os bosques do Chocó e é ponto de conflito com as comunidades afrodescendentes, que dizem que o seu território original tinha uma área de 150 mil hectares. O processo corre na Justiça. "No GPS marcaram 13.500 hectares, mas nós sabemos que o nosso território é de 150 mil hectares. Por isso, tomamos conta de tudo, monitoramos tudo", diz Everildys Córdoba, coordenadora do Cocomasur.
Da sede, em Acandí, até a comunidade de Peñaloza, às margens do rio Tolo, leva-se quase uma hora, no pau-de-arara local. Há pastagens nos dois lados da estrada. Os quilombolas dizem que aquilo tudo pertence a duas pessoas e é 1/4 da área do município. Não mencionam os proprietários.
Em Peñaloza vivem cerca de 400 pessoas. As casas coloridas, de madeira, ficam ao redor de um gramado e ladeando o rio Tolo. No centro está a escola, um galpão para festas e reuniões, a igreja. Os visitantes são recebidos com som de tambores e marimba. Servem majajú de plátano, uma espécie de ensopado de banana, ovo, queijo, cebola e alho. Entre a comunidade e o bosque há alguns quilômetros de pastagens.
Em 2010, Cocomasur começou o primeiro projeto de uma comunidade na Colômbia a vender créditos de carbono e receber para proteger a floresta. O mecanismo, definido nas reuniões climáticas internacionais das Nações Unidas é conhecido pela sigla Redd+, Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação. Basicamente, trata-se de uma forma de remunerar quem preserva florestas em pé e não permite que se transformem em fonte de emissão de gases-estufa.
Foi o antropólogo Brodie Ferguson quem iniciou o processo com os quilombolas de Cocomasur. "Foi a primeira vez que ouvimos falar de Redd", diz Everildys Córdoba. Ferguson fundou uma empresa, a Anthrotect, e com ela iniciou o processo. Técnicos do Jardim Botânico de Medellín treinaram os quilombolas a identificar e reconhecer as espécies florestais do bosque.
No site da Anthrotect, que foi parceira dos quilombolas na empreitada, lê-se que o projeto, que tem 30 anos de prazo, conseguiu reduzir 90 mil toneladas de CO2 nos primeiros 18 meses. Seria o equivalente a retirar 25 mil carros das ruas. O coletivo vendeu, na primeira leva, 104.700 créditos a dez compradores. Eles não revelam a soma que receberam na operação. "Nosso primeiro benefício foi fortalecer a governança que temos sobre o território", diz Aureliano Cordoba, liderança de Cocomasur.
O primeiro passo foi capacitar a comunidade a entender do que se tratava Redd. Era preciso desfazer ideias equivocadas, de que "iam vender o oxigênio das pessoas, ou desmontar o discurso dos 'cowboys do carbono', de que iriam ganhar milhões de dólares", diz Adriana Lagos, coordenadora da Estratégia Integral de Controle do Desmatamento e da Gestão das Florestas, do Ministério de Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. "Era um tema muito polêmico no país. Os movimentos sociais o estigmatizavam, alguns satanizavam Redd por falta de informação", continua. "A ideia é pagar quem preserva pelo seu trabalho e assim evitar o desmatamento."
Seis jovens afrodescendentes monitoram a floresta todos os dias. Caminham 12 horas. Vão recolhendo dados sobre as espécies de fauna e flora que encontram e reportando eventuais focos de desmatamento. "Se antes o desmatamento aqui era de 100 hectares ao ano agora é, no máximo de 10 ou 20 hectares", diz Etiel Enrique Cordoba Murillo, coordenador do monitoramento das florestas de Cocomasur. "Conseguimos evitar a fragmentação da floresta", diz Ferney Cancedo, também de Peñaloza, e da equipe que realizou o inventário florestal da região, medindo e identificando mais de 3.000 árvores para estimar o estoque de carbono da floresta. O projeto estima quanto há de carbono em áreas [desmatadas] de pasto. Assim se contabilizam as reduções de emissão de gases-estufa que foram evitadas.
Cocomasur agora prepara nova venda, de 300 mil créditos. Neste esforço tem o apoio do programa ONU-Redd, formado há 10 anos para ajudar países em desenvolvimento a se capacitar para proteger as matas. O programa é um consórcio entre técnicos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da ONU Meio Ambiente (conhecida formalmente pela sigla Pnuma).
"Nossa estratégia é atuar junto ao setor privado e o financeiro. Muito do desmatamento é provocado pelo setor privado", diz Juan José Fernando, do Programa ONU-Redd para a América Latina. O programa atua em 64 países procurando reduzir a emissão por desmatamento, aumentar as reservas florestais de carbono e promover a gestão sustentável dos bosques.
"É algo muito complexo que inicia com a capacitação e inclusão das comunidades, com o estabelecimento dos níveis de referência, com monitorar os hectares de floresta", continua. "E entender que os bosques não são só carbono, que há muito além em termos de recursos naturais e benefícios", diz Fernando.
A Colômbia tem uma estratégia nacional de Redd+ desde 2017. A meta climática nacional, apresentada durante as negociações do Acordo de Paris, em 2015, é de cortar em 20% as emissões de gases-estufa em relação aos níveis de 2010.
Em Peñaloza, os quilombolas discutem o futuro enquanto comem arroz preparado com leite de coco e frango e bebem água com canela. Alguém atira um pedaço de comida a Mocha, a cadela magra que apareceu por ali, foi adotada por todos, e acompanha os jovens nas caminhadas para monitorar a floresta.
Os benefícios - ou não - do ecoturismo é ponto em debate. "Nossa grande ameaça é o modelo turístico que está sendo criado no país", diz Everildys Córdoba. "O modelo coloca em risco a liderança comunitária. Se não estamos de acordo com algo, nos olham como opositores do desenvolvimento. Mas desenvolvimento para quem?" questiona ela. "Os pacotes turísticos não nos deixam nada, só lixo", emenda Aureliano Cordoba.
À noite, na praia perto da sede do município de Acandí, um grupo de afrodescendentes monitora o nascimento de tartaruguinhas-de-couro. Na Páscoa são tantos os turistas na cidade que é preciso fazer controle de visitantes na praia. "Não podemos impedir que as pessoas venham e visitem os atrativos da região", diz Everildys Córdoba. "Mas vivemos em um santuário de fauna e flora e temos que ter cuidado", continua. "A ideia é que esta visita de turistas traga benefícios, e não que cause danos à nossa cultura", segue a líder.
A jornalista viajou à Colômbia a convite da ONU-Redd
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