segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O colapso (in)evitável e o Antropoceno

O colapso (in)evitável e o Antropoceno

O sis­tema pro­du­tivo ca­pi­ta­lista ex­pe­ri­mentou nas úl­timas dé­cadas enormes trans­for­ma­ções, que co­lo­caram o pla­neta sob in­tensa pressão no que diz res­peito às fontes de ma­té­rias-primas e de energia. A China virou um enorme galpão de fá­brica, a ser ali­men­tado por carvão e gás para suas ter­me­lé­tricas, mi­nério de ferro, cobre e me­tais raros para ele­tro­e­le­trô­nicos, plás­tico e quí­micos di­versos.

Por todo o globo, a frota au­to­mo­bi­lís­tica e também a frota aérea não pa­raram de crescer, de­man­dando ma­te­riais me­tá­licos e não-me­tá­licos para sua fa­bri­cação e, so­bre­tudo, de­ri­vados de pe­tróleo para mo­vi­mentá-las. In­ter­co­nec­tado glo­bal­mente, o sis­tema ca­pi­ta­lista pro­por­ci­onou um fluxo ex­tre­ma­mente in­ten­sivo não apenas de ca­pital es­pe­cu­la­tivo, mas desses ma­te­riais e dos pro­dutos a partir deles fa­bri­cados. As redes longas desse sis­tema econô­mico li­garam, via ex­tração, pro­dução e con­sumo, pra­ti­ca­mente todos os in­di­ví­duos em pra­ti­ca­mente todos os cantos do pla­neta. Por terra, pelo ar e pelos mares, mi­lhões de to­ne­ladas de ma­te­rial de bau­xita a ce­lu­lares vi­ajam todo ano, numa es­piral cres­cente.


En­ten­dendo a nova era

O re­sul­tado dessa ex­pansão não apenas em vo­lume do que é pro­du­zido e con­su­mido, mas no au­mento da ve­lo­ci­dade do trans­porte e do des­carte es­ta­be­leceu um con­flito que faz a luta de classes pa­recer um diá­logo ami­gável: a con­tra­dição in­so­lúvel entre um sis­tema in­trin­se­ca­mente ex­pan­si­o­nista e um mundo li­mi­tado. Os cha­mados li­mites pla­ne­tá­rios estão sendo um a um ul­tra­pas­sados. As curvas de di­versos pa­râ­me­tros as­su­miram a forma ex­po­nen­cial, con­fi­gu­rando o que se con­ven­ci­onou chamar de "a grande ace­le­ração", par­ti­cu­lar­mente ní­tida a partir da se­gunda me­tade do sé­culo pas­sado e início deste.

Da po­pu­lação ur­bana ao con­sumo de fer­ti­li­zantes, da pro­dução de papel às con­cen­tra­ções de gases de efeito es­tufa, do uso de água doce à de­gra­dação am­bi­ental, tudo cresceu ex­po­nen­ci­al­mente em es­pe­cial a partir da se­gunda me­tade do sé­culo 20.

A con­ta­mi­nação quí­mica do ecos­sis­tema ter­restre é global. São exem­plos o plás­tico nos oce­anos; os me­tais pe­sados no solo, rios, a pe­ne­trar por toda a biota via ca­deia ali­mentar; o ozônio (de­se­jável em ca­madas ele­vadas da at­mos­fera, mas ex­tre­ma­mente pre­ju­di­cial pró­ximo à su­per­fície) pro­du­zido por re­a­ções fo­toquí­micas que se ori­ginam em mo­tores e cal­deiras de com­bustão e que gera smog (como o que li­te­ral­mente obs­trui a visão em Bei­jing e ou­tras grandes ci­dades da China e ou­tros países)...
A mu­dança na com­po­sição quí­mica da at­mos­fera se dá de forma múl­tipla: a quan­ti­dade de ae­ros­sóis (par­ti­cu­lado lí­quido e só­lido em sus­pensão) se mul­ti­plicou bru­tal­mente com os pro­cessos in­dus­triais, com­bustão de com­bus­tí­veis fós­seis e quei­madas; gases que não existem na­tu­ral­mente agora fazem parte do ar que res­pi­ramos, par­ti­cu­lar­mente os ha­lo­car­bo­netos (que in­cluem os CFCs res­pon­sá­veis pela de­gra­dação da ca­mada de ozônio es­tra­tos­fé­rico e que, em seu con­junto, são gases de efeito es­tufa) e as con­cen­tra­ções de gases como óxido ni­troso (re­sul­tante da de­com­po­sição de fer­ti­li­zantes e ou­tros agroquí­micos ni­tro­ge­nados), me­tano (emi­tido em as­so­ci­ação com ati­vi­dades agro­pe­cuá­rias) e, claro, dió­xido de car­bono, ou CO2.

Além da in­fluência brutal sobre o clima (os três úl­timos ci­tados são gases de efeito es­tufa), o ex­cesso de CO2 na at­mos­fera leva a que este se dis­solva nos oce­anos, aci­di­fi­cando-os (o pH já au­mentou 0,1 desde o pe­ríodo pré-in­dus­trial, o que im­plica em um au­mento no nível de acidez em quase 30%). À con­ta­mi­nação quí­mica, soma-se a con­ta­mi­nação ra­di­o­a­tiva, as­so­ciada aos su­ces­sivos testes nu­cle­ares e, claro, aos aci­dentes e va­za­mentos em re­a­tores, como os casos trá­gicos de Cher­nobyl e Fu­kushima.

O ta­manho do pro­blema

Ao se ter a so­ci­e­dade hu­mana or­ga­ni­zada con­forme a di­nâ­mica do ca­pital, pres­si­o­nando o ecos­sis­tema global como força de es­cala ge­o­ló­gica, in­ter­fe­rindo de­ci­si­va­mente (e em vá­rios casos de forma do­mi­nante) nos ci­clos bi­o­ge­oquí­micos e al­te­rando a pró­pria ter­mo­di­nâ­mica pla­ne­tária, al­guns ci­en­tistas pro­pu­seram que se ca­rac­te­rize o pre­sente como uma nova época ge­o­ló­gica, dis­tinta do Ho­lo­ceno (pe­ríodo de cerca de 10 mil anos de es­ta­bi­li­dade cli­má­tica ao longo do qual a ci­vi­li­zação hu­mana flo­resceu): o An­tro­po­ceno, con­forme a de­sig­nação pro­posta por Crutzen e Sto­ermer (2000), num ar­tigo que faz parte desta pu­bli­cação.

Já ficou evi­den­ciado um forte acordo, num grupo de tra­balho de es­pe­ci­a­listas, que o An­tro­po­ceno deve ser já ca­rac­te­ri­zado como uma nova época ge­o­ló­gica, em­bora ainda não tenha sido de­li­mi­tado que re­fe­rência deve ser ado­tada, nem do ponto de vista tem­poral nem do ponto de vista fí­sico-bi­o­ge­oquí­mico. De qual­quer modo, a adoção do termo é cada vez mais con­sen­sual. Mais re­cen­te­mente, Gaffney e Steffen (2017) fi­zeram uma atu­a­li­zação das atuais con­di­ções do An­tro­po­ceno e os nú­meros são cada vez mais as­som­brosos, es­pe­ci­al­mente quando com­pa­ramos as ten­dên­cias ex­po­nen­ciais e dis­rup­tivas do An­tro­po­ceno com a mar­cante es­ta­bi­li­dade do Ho­lo­ceno.

Dado que os com­bus­tí­veis fós­seis (carvão, pe­tróleo e gás) foram e con­ti­nuam sendo as prin­ci­pais fontes de energia, a con­cen­tração at­mos­fé­rica de CO2, prin­cipal pro­duto da com­bustão, dis­parou no An­tro­po­ceno. No pe­ríodo de 1970 a 2015, essa con­cen­tração cresceu 75 partes por mi­lhão, o que nos dá uma taxa de va­ri­ação de 166 ppm/sé­culo. Esse valor é quase 1000 vezes aquele ve­ri­fi­cado entre 11.000 e 7.000 anos atrás (início a me­ados do Ho­lo­ceno), quando a con­cen­tração de CO2 caiu a uma taxa de apro­xi­ma­da­mente 0,17 ppm por sé­culo.

É 550 vezes maior do que as mu­danças entre o Ho­lo­ceno médio e o pe­ríodo pré-in­dus­trial (1750), in­ter­valo du­rante o qual essa con­cen­tração caiu a uma taxa em torno de 0,30 ppm/sé­culo. É 100 vezes maior do que a va­ri­ação ob­ser­vada na con­cen­tração desse gás na úl­tima grande mu­dança cli­má­tica global na­tural (tér­mino da úl­tima era gla­cial). É 10 vezes maior do que o maior evento co­nhe­cido de li­be­ração desse gás na Era Ce­no­zóica, o "Má­ximo Tér­mico do Pa­le­o­ceno-Eo­ceno".

Mas como dis­cu­timos vá­rias vezes em nosso blog, não re­side só no CO2 o pro­blema... Grandes quan­ti­dades de me­tano são pro­du­zidas pela fer­men­tação en­té­rica (no apa­relho di­ges­tivo de ani­mais ru­mi­nantes) e pelas cha­madas "emis­sões fu­gi­tivas", va­za­mentos que ine­vi­ta­vel­mente acom­pa­nham a pros­pecção, ex­tração e pro­ces­sa­mento de com­bus­tí­veis fós­seis, es­pe­ci­al­mente com téc­nicas mais agres­sivas como o "frac­king". Esta subs­tância é um po­de­roso gás de efeito es­tufa, com po­ten­cial de aque­ci­mento global 34 vezes maior do que o do CO2 na es­cala de 100 anos.

A es­ti­ma­tiva de va­ri­ação na con­cen­tração de me­tano (CH4) ao longo do Ho­lo­ceno (11 mil anos atrás até o pe­ríodo pré-in­dus­trial) é de cerca de 2 partes por bi­lhão (ppb) por sé­culo. De 1750 a 2012, a quan­ti­dade de me­tano na at­mos­fera saiu de 722 ppb para 1810 ppb (150% de au­mento!). De 1984 a 2015, a taxa de in­cre­mento média na con­cen­tração at­mos­fé­rica desse gás foi de 57,5 ppb/dé­cada (ou 575 ppb/sé­culo), valor mais de 285 vezes maior do que a es­ti­ma­tiva média para o Ho­lo­ceno.

Sabe-se desde o sé­culo 19 que uma al­te­ração na con­cen­tração desses gases teria o po­ten­cial de mudar o ba­lanço ener­gé­tico ter­restre. E as evi­dên­cias agora estão aí. Entre 1970 e 2015, a tem­pe­ra­tura média global cresceu a uma taxa média de 0,17°C por dé­cada (ou 1,7°C por sé­culo). Em con­traste, du­rante o Ho­lo­ceno, a tem­pe­ra­tura mos­trou-se re­la­ti­va­mente es­tável, com uma re­dução média de 0,01°C/sé­culo. Por­tanto, as va­ri­a­ções de tem­pe­ra­tura, hoje, são 170 vezes mais rá­pidas do que aquelas ve­ri­fi­cadas du­rante o Ho­lo­ceno.

A ci­clagem de nu­tri­entes no Sis­tema Terra também está pro­fun­da­mente al­te­rada. Os ci­clos do Ni­tro­gênio e do Fós­foro estão entre ci­clos bi­o­ge­oquí­micos mais im­por­tantes. 180 Tg (te­ra­gramas ou mi­lhões de to­ne­ladas) de ni­tro­gênio são pro­ces­sados anu­al­mente por pro­cessos agrí­colas, in­dus­triais e re­jeitos ur­banos, o que re­pre­senta mais do triplo do ni­tro­gênio pro­ces­sado glo­bal­mente pelos mi­cro­or­ga­nismos fi­xa­dores ter­res­tres (toda a fi­xação de ni­tro­gênio nos con­ti­nentes so­mada re­sulta em 58 Tg/ano).

So­mando-se os 30 Tg as­so­ci­ados à com­bustão, che­gamos a 210 Tg/ano, mais do que a soma da fi­xação nos con­ti­nentes (58 Tg/ano), nos oce­anos (140 Tg/ano) e na at­mos­fera, por re­lâm­pagos (5 Tg/ano). O re­sul­tado é que o ciclo do ni­tro­gênio en­contra-se to­tal­mente des­ba­lan­ceado. Há es­ti­ma­tivas de que hoje em dia 72% do Ni­tro­gênio que chega aos corpos d'água vêm da ati­vi­dade agro­pe­cuária, in­cluindo o uso de fer­ti­li­zantes sin­té­ticos.

No caso do fós­foro, os va­lores de re­fe­rência do Ho­lo­ceno eram de 10-15 Tg/ano, mas este valor agora foi ele­vado para 28-33 Tg/ano, as­so­ciado com mi­ne­ração, re­sí­duos e, no­va­mente, com fer­ti­li­zantes. Em ou­tras pa­la­vras, é pos­sível que os fluxos de fós­foro te­nham sido sim­ples­mente tri­pli­cados. Os im­pactos en­volvem eu­tro­fi­zação, mu­danças de pH, al­te­ração do teor de oxi­gênio dis­sol­vido e mu­danças na to­xi­ci­dade, pro­du­zindo de­se­qui­lí­brios nos ecos­sis­temas e não raro in­vi­a­bi­li­zando o apro­vei­ta­mento desses corpos d'água para uso hu­mano.

Evi­dên­cias cada dia mais es­can­da­losas

Os oce­anos também estão sob uma pressão vi­o­len­tís­sima das ações hu­manas. Em vir­tude do au­mento de con­cen­tração de CO2 at­mos­fé­rico e das mu­danças cli­má­ticas as­so­ci­adas a ele, os oce­anos têm so­frido trans­for­ma­ções vi­o­lentas du­rante o An­tro­po­ceno. Em 2016, acom­pa­nhando o re­corde global de tem­pe­ra­turas, a su­per­fície dos oce­anos ficou 0,69°C mais quente do que a média de 1951-1980, cerca de 1°C acima das tem­pe­ra­turas mé­dias ob­ser­vadas no início do sé­culo 20.

A pre­sença de enormes quan­ti­dades de CO2 na at­mos­fera faz com que parte sig­ni­fi­ca­tiva desse gás se dis­solva nos oce­anos, di­mi­nuindo seu pH, ou seja, au­men­tando sua acidez. As es­ti­ma­tivas são de que o pH oceâ­nico já di­mi­nuiu em 0,1 o que im­plica numa acidez 26% maior. Se­gundo Gaffney and Stefan (2017), tais mu­danças já são de 3 a 7 vezes mai­ores e 70 vezes mais rá­pidas do que aquelas ve­ri­fi­cadas du­rante as de­gla­ci­a­ções (como a saída da úl­tima era gla­cial há 11.700 anos).

Os au­tores também es­timam que um ritmo de aci­di­fi­cação tão ace­le­rado seja iné­dito em 250 mi­lhões de anos, quando os "trapps si­be­ri­anos" (su­per­vul­cões) lan­çaram enormes quan­ti­dades de gases na at­mos­fera, ex­tin­guindo 95% das es­pé­cies ma­ri­nhas na­quela que foi a maior ex­tinção da his­tória ge­o­ló­gica ter­restre (Ex­tinção do Per­miano-Triás­sico).

Mas não fica nisso. Re­cente es­tudo pu­bli­cado na Na­ture por Sch­midtko et al. (2017) mostra que o teor de oxi­gênio dis­sol­vido nos oce­anos caiu 2,1% em 50 anos. A razão disso? O aque­ci­mento global, por dois fa­tores: pri­meiro, quanto maior a tem­pe­ra­tura oceâ­nica, menor a so­lu­bi­li­dade (não apenas do oxi­gênio, mas dos gases em geral).

Se­gundo, como o aque­ci­mento se dá prin­ci­pal­mente a partir da su­per­fície, a ten­dência é au­mentar a cha­mada es­tra­ti­fi­cação, isto é, mantém-se água quente em cima e água fria em­baixo, o que li­mita a mis­tura ver­tical e, por­tanto, a ven­ti­lação, que leva água com oxi­gênio para ca­madas mais pro­fundas. Mais um efeito te­mido das mu­danças cli­má­ticas que se con­firma. Por fim, não custa lem­brar que tais mu­danças pro­fundas são ainda agra­vadas por uma série de ou­tras agres­sões di­retas, in­cluindo va­za­mentos de pe­tróleo, a quan­ti­dade enorme de plás­tico, o ex­cesso de ni­tro­gênio e fós­foro nos re­jeitos de agro­pe­cuária e es­goto, a pesca pre­da­tória e o fluxo de es­pé­cies in­va­soras por meio da água de lastro dos na­vios.

Quando nos re­fe­rimos à hu­ma­ni­dade, no atual es­tágio de de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo, como uma força ge­o­ló­gica, isso in­clui também o sen­tido mais li­teral do termo, o de mo­vi­men­tação de ma­te­rial do solo e sub­solo. Do ponto de vista ci­en­tí­fico, não se sabe se a fé re­move mon­ta­nhas, mas o An­tro­po­ceno, com cer­teza. O fluxo de se­di­mentos de­cor­rente da ati­vi­dade mi­ne­ra­dora atingiu im­pres­si­o­nantes 57.000 Tg/ano (te­ra­gramas por ano), ou 57 bi­lhões de to­ne­ladas. É cerca do triplo da soma da­quilo que é car­re­gado pelos rios de todo o pla­neta. Im­por­tante dizer que esses pró­prios fluxos na­tu­rais, dos rios, também estão sendo al­te­rados, com pro­cessos ero­sivos tendo con­tri­buído para au­mentá-los en­quanto os bar­ra­mentos têm con­tri­buído para re­duzi-los.

Na Na­tu­reza, tudo que cresce ex­po­nen­ci­al­mente produz ins­ta­bi­li­dade, se­guida de co­lapso. É sim­ples assim. Na Fí­sica, quando re­sol­vemos as equa­ções de um pro­blema e uma das so­lu­ções é de cres­ci­mento ex­po­nen­cial, nós a des­car­tamos, por ser im­plau­sível. Vi­olar a con­ser­vação da massa, a con­ser­vação da energia e a 2ª Lei da Ter­mo­di­nâ­mica pa­rece ser o sonho da eco­nomia ca­pi­ta­lista, mas só podem con­duzir ao pe­sa­delo de uma so­ci­e­dade in­sus­ten­tável.


Um dos des­fe­chos pos­sí­veis na mo­de­lagem de Mo­tesharrei et
al. (2014): co­lapso com­pleto e ir­re­ver­sível por su­pe­rex­plo­ração
do am­bi­ente e de­si­gual­dade econô­mica.

Pe­na­li­za­remos muitas ge­ra­ções

Nesse sen­tido, o co­lapso do An­tro­po­ceno é ine­vi­tável. É até (ob­vi­a­mente de forma sim­pli­fi­cada) tra­tável ma­te­ma­ti­ca­mente, como no mo­delo de "co­lapso N ir­re­ver­sível" con­forme Mo­tesharrei et al. (2014): a na­tu­reza cai abaixo da "ca­pa­ci­dade de carga" e isso leva à es­tag­nação e queda da pro­dução de ri­queza, ao co­lapso da "plebe" e só de­pois ao co­lapso da "elite". Como mostra o grá­fico, esta ter­mina por ruir também, mas pelo visto, a julgar pela sua (im)pos­tura em geral, pre­fere des­frutar dos pri­vi­lé­gios de curto prazo. O co­lapso do ca­pital é ine­vi­tável (a não ser no ce­nário al­ta­mente im­pro­vável da vi­a­bi­li­zação de tec­no­lo­gias de mi­gração, co­lo­ni­zação e ex­plo­ração es­pa­cial em grande es­cala em uma es­cala de poucas dé­cadas).

Mas há algum co­lapso evi­tável? Eu diria que o co­lapso ci­vi­li­za­tório geral, o co­lapso da es­pécie, ainda não está dado. Na ver­dade, é essa a dis­puta ainda co­lo­cada. Para os bi­li­o­ná­rios, pa­rece pior de­sa­pa­recer logo, des­tro­nados por um pro­cesso de trans­for­mação so­cial que des­monte essa so­ci­e­dade ex­pan­si­o­nista e de­si­gual, do que de­sa­pa­recer de­pois, no co­lapso eco­ló­gico. Mas a saída, como nos filmes de ação em que a saída se es­treita cada vez mais, im­plica em mais do que um com­bate de longo prazo, pois também é para agora. As emis­sões acu­mu­ladas a cada ano di­mi­nuem cada vez mais a margem de ma­nobra, tor­nando cada vez mais di­fícil manter as chances de evitar que se ul­tra­passe um aque­ci­mento (já ca­tas­tró­fico) de 2°C (o li­mite de 1,5°C está, a essa al­tura, vir­tu­al­mente in­vi­a­bi­li­zado).


Se as emis­sões con­ti­nu­arem a crescer até o co­meço da pró­xima
dé­cada no ritmo atual, torna-se pra­ti­ca­mente im­pos­sível, sem
re­moção de car­bono em grande es­cala, deter o aque­ci­mento
global a menos de 2°C acima do pe­ríodo pré-in­dus­trial.


Es­pe­ci­fi­ca­mente no que tange à questão cli­má­tica (e, por ta­bela, da aci­di­fi­cação oceâ­nica), a de­pender do que for feito na pró­xima dé­cada ou duas, o aque­ci­mento global po­derá ficar entre uma he­rança ne­ga­tiva, de­le­téria e pro­fun­da­mente incô­moda para até de­zenas de ge­ra­ções se­guintes ou pode vir a ser uma ca­tás­trofe com­pleta, capaz mesmo de in­vi­a­bi­lizar boa parte do globo como ha­bitat para o gê­nero hu­mano.

É um con­texto em que as es­co­lhas que mais sal­va­guardam o fu­turo (in­clu­sive a ve­lhice das ge­ra­ções atuais) são pre­ci­sa­mente aquelas mais con­trá­rias à ló­gica do mer­cado e da acu­mu­lação de ca­pital (e são ab­so­lu­ta­mente ur­gentes). São as que batem de frente com in­cen­tivo ao con­su­mismo, ob­so­les­cência pro­gra­mada, pro­pa­ganda, uso ex­ten­sivo de em­ba­la­gens, cri­ação de falsas ne­ces­si­dades em torno de itens fú­teis e su­pér­fluos, trans­porte in­di­vi­dual, ex­pansão das fron­teiras ex­tra­ti­vista e agrí­cola, uso per­du­lário de ma­téria-prima e energia, ma­triz ener­gé­tica con­cen­trada e ba­seada prin­ci­pal­mente em com­bus­tí­veis fós­seis, ex­cesso de pro­dução, uso mas­sivo de fer­ti­li­zantes e ou­tros agroquí­micos, jor­nadas de tra­balho muito mais pro­lon­gadas do que o ne­ces­sário etc.

As es­co­lhas que sal­va­guardam o fu­turo são aquelas no sen­tido de uma so­ci­e­dade igua­li­tária, de­mo­crá­tica e que uti­liza ra­ci­onal e con­ti­da­mente a ma­téria e a energia que o res­tante da na­tu­reza lhe for­nece. São aquelas de um "co­lapso do bem", de in­flexão na ve­lo­ci­dade dos pro­cessos e (ten­ta­tiva de) re­versão das al­te­ra­ções am­bi­en­tais de­le­té­rias as­so­ci­adas ao An­tro­po­ceno.

O pro­blema maior, de fato, é a cor­rida contra o tempo. Se as emis­sões con­ti­nu­arem a crescer até o co­meço da pró­xima dé­cada no ritmo atual, torna-se pra­ti­ca­mente im­pos­sível, sem re­moção de car­bono em grande es­cala, deter o aque­ci­mento global a menos de 2°C acima do pe­ríodo pré-in­dus­trial. Ou seja, se pre­ci­samos de um "co­lapso do bem" para deter as pi­ores con­sequên­cias do caos eco­ló­gico in­tro­du­zido pelo An­tro­po­ceno, a "pa­lavra-de-ordem" bem que pode ser "Co­lapso Já!".

Ale­xandre Araújo Costa é ci­en­tista e autor do blog O que você faria se sou­besse o que eu sei?

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