Aquecimento Global como argumento para privatizar a Petrobrás
- 30/05/2018
Alexandre Araujo Costa
Apelidada de "rainha das privatizações", Elena Landau não nega o aquecimento global. Apenas defende uma política econômica que o agravará!
Elena Landau, economista, publicou um texto de opinião no Estadão em que defende a privatização da Petrobrás. Até aqui, nenhuma surpresa, evidentemente, afinal ela já havia trabalhado na administração de Fernando Henrique Cardoso, na condição de diretora do BNDES, justamente no programa de privatização de estatais.
A preferência por uma agenda neoliberal, de "Estado mínimo", por parte de Landau, não é de hoje. A novidade fica pelo fato de que ela tenta usar o aquecimento global como um argumento a mais para a defesa da venda da companhia de petróleo ao capital privado. Mas... será que isso faz sentido?
Uma "privatização como outra qualquer"?
Lembrar do aquecimento global e defender mais privatização das reservas fósseis é um contrassenso. Ou melhor, é pura desonestidade.
Em pleno século 21, especialmente quando se trata de combustíveis fósseis, incluindo petróleo, o debate econômico não pode se restringir à tradicional confrontação entre uma direita privatista e uma esquerda estatizante. Além de discutirmos a questão da propriedade dos meios de produção (se privada ou pública) é preciso questionar inclusive que setores "produtivos" precisam ser descontinuados, em função de limites ambientais planetários.
No fundo, Landau sabe disso, daí, a frase final do seu artigo ("não há nenhuma diferença entre as razões para a retirada do Estado do controle da Petrobrás e de qualquer outra empresa estatal") entra em contradição com o que ela usa como um dos argumentos para defender que o Estado brasileiro precisa se livrar da empresa.
A lógica de Landau é que "o aquecimento global vem impondo restrições ao uso de combustíveis fósseis, o que reduz o valor da empresa para a sociedade ao longo do tempo" e que em virtude disso "sua venda deveria ser feita o mais breve possível". Claro, ela se dá ao trabalho de excluir a possibilidade de "gastar recursos públicos para reorientar suas atividades para energias renováveis", sem apresentar nenhuma justificativa plausível para isso.
Percebam, portanto, como se chega a um nível de cinismo e non sequitur impressionantes: a pessoa consegue usar a dramaticidade do aquecimento global para dizer que a empresa vai "perder valor" e que por isso é preciso vendê-la logo... Mas "esquece" que nessa lógica, o capital privado irá explorar as jazidas fósseis num ritmo ainda mais frenético, e despejar o carbono todo na atmosfera, agravando justamente o problema!
Nacionalizar as reservas fósseis para deixá-las no subsolo
Há muito tempo tenho insistido que é preciso superar o discurso desenvolvimentista do varguismo e as ilusões de explorar petróleo para financiar educação, saúde etc. Landau usa cinicamente um argumento "geracional", mas aqui o verdadeiro debate sobre o legado para as futuras gerações é que mesmo que usemos todo recurso da exploração de petróleo com saúde e educação públicas, a conta não fecha, pelo contrário.
Sem conter o aquecimento global, o que implica impedir a queima da grande maioria das reservas fósseis, o legado para a geração seguinte é mais eventos extremos: ondas de calor, secas, tempestades severas, elevação do nível do mar.
É um conjunto de impactos cuja severidade afetará as vidas das pessoas em todos os seus aspectos, com consequências diretas sobre a saúde, seja pela dificuldade de acesso à água potável (nos extremos, a Cidade do Cabo pode entrar em colapso de abastecimento por seca extrema - para não falar de Fortaleza, que pode escapar por um fio - e Porto Rico teve grande parte de seu território privado de água potável por conta da enchente produzida), seja pela proliferação de vetores transmissores de doenças, seja pelos malefícios diretos de ondas de calor, como as que mataram milhares de pessoas na Europa em 2003 e na Índia e Paquistão em 2015. E imigração forçada em massa é um risco real e concreto
Daí a saída é justamente o contrário do que propõe Landau. O correto é sair de "o petróleo é nosso" para "o petróleo é nosso pra ficar no chão", como defendo neste artigo.
Com seu cinismo e malabarismo argumentativo, Landau acha que devemos trocar "o petróleo é nosso" para "o petróleo é de vocês pra queimar à vontade e f*der de vez com o clima global".
Francamente, ela parece subestimar a inteligência dos leitores e joga às favas qualquer vestígio de honestidade intelectual. Ou seja, para evitar passar vergonha com um negacionismo climático explícito, Landau resolve passar vergonha equilibrando elementos antagônicos numa mesma linha de raciocínio.
E falando em ausência de honestidade intelectual...
Tratar o gás de xisto como "combustível alternativo" é uma piada de mau gosto. Como provavelmente Elena Landau não é ignorante, acreditamos que ela atue inteiramente de má fé ao esconder os problemas associados ao fracking.
... Landau se refere ao gás de xisto como "combustível alternativo", ressaltando que sua descoberta foi "mérito do capital privado". Impressionante...
Para início de conversa, o gás natural em si já é um combustível fóssil como carvão e petróleo e, portanto, o gás natural também precisa ser abandonado como fonte de energia. A queima de metano (seu principal constituinte) produz dióxido de carbono e a parte que escapa, constituindo aquilo que chamamos de "emissões fugitivas", também tem impacto bastante significativo sobre o clima, já que o potencial de aquecimento global da molécula de CH₄ é várias vezes maior do que o do CO₂.
Além disso, o gás de xisto é extraído via fracking, uma das tecnologias mais sujas que foram inventadas nas últimas décadas no setor de energia. Aliás, exatamente por ter emissões fugitivas maiores que o gás extraído em moldes convencionais, o gás de fracking é tão desastroso para o clima quanto o carvão, como mostramos em nosso blog no artigo "Uma Fratura no Clima".
Privatização fóssil ou democratização com descarbonização?
100% pública, democrática e descarbonizada. A Petrobrás poderia virar uma Solarbrás!
"There is no alternative". A frase de efeito, sentença baixada sobre a cabeça da humanidade pelos ideólogos neoliberais, teima em aparecer nos textos que defendem determinadas agendas econômicas. Landau afirma peremptoriamente que não existe a "alternativa de investir em renováveis" e que não há alternativa para a Petrobrás que não a privatização, mas a frase não resiste a uma análise minimamente séria...
Investimentos diretos da própria companhia e investimentos de bancos públicos podem e precisam ser feitos para tornar as energias renováveis o centro da Petrobrás. É justamente a potência de investimentos que esse setores ainda têm que permite orientar a política industrial brasileira para longe do papel primário-extrativista-exportador e construindo a base de uma transição energética.
Esse processo não apenas não penalizaria a maioria da população como, pelo contrário, se reverteria em energia limpa e barateada (com painéis solares nos telhados das casas assegurando a redução da conta de luz).
Também contribuiria para a manutenção das reservas hídricas, pois não apenas hidrelétricas como também termelétricas (fósseis e nucleares) demandam grandes quantidades de água.
A privatização do setor elétrico brasileiro produz contas caras e tornou a matriz ainda mais suja. A inserção de uma empresa pública como a Petrobrás, convertida em companhia de energia limpa, no setor, pode contribuir para quebrar esse ciclo perverso.
A alternativa, portanto, não é uma privatização fóssil da Petrobrás. Ao contrário, a rota é a da transformação da Petrobrás em uma empresa 100% pública, o que implica justamente em nacionalizar a sua metade não-pública e tirá-la da lógica de mercado e em anular os leilões de petróleo, renacionalizando as jazidas; democrática, isto é, gerida pelo conjunto de seus trabalhadores e trabalhadoras ao lado do conjunto da sociedade; descarbonizada, isto é, orientada para uma transição acelerada que a converta em uma empresa pública de energia limpa, contribuindo para livrar o povo brasileiro do jugo das corporações do setor energético.
Já abordamos o tema de quão desastroso é entregar jazidas fósseis nas mãos do capital internacional no artigo "E o clima? Por um verdadeiro debate sobre o pré-sal". Nas mãos das corporações, petróleo, gás e carvão serão explorados para muito além do limite, pois nada está acima, para elas, do que o próprio lucro.
Às maiorias sociais, pelo contrário, interessa deter a exploração de combustíveis fósseis e conter o aquecimento global. Ao capital interessa que a Petrobrás vire "Petrobrax", isto é, que o caos climático siga se acelerando, com lucros cada vez maiores para as corporações internacionais.
Às maiorias sociais interessa que ela não apenas permaneça como empresa pública, mas que seja radicalmente transformada, desde sua gestão até a fonte energética com a qual trabalha. Já que o problema não é só o "Brax", mas também o "Petro", se é para mudar, que a Petrobrás vire Solarbrás.
Alexandre Araújo Costa é cientista do clima.
Apelidada de "rainha das privatizações", Elena Landau não nega o aquecimento global. Apenas defende uma política econômica que o agravará!
Elena Landau, economista, publicou um texto de opinião no Estadão em que defende a privatização da Petrobrás. Até aqui, nenhuma surpresa, evidentemente, afinal ela já havia trabalhado na administração de Fernando Henrique Cardoso, na condição de diretora do BNDES, justamente no programa de privatização de estatais.
A preferência por uma agenda neoliberal, de "Estado mínimo", por parte de Landau, não é de hoje. A novidade fica pelo fato de que ela tenta usar o aquecimento global como um argumento a mais para a defesa da venda da companhia de petróleo ao capital privado. Mas... será que isso faz sentido?
Uma "privatização como outra qualquer"?
Lembrar do aquecimento global e defender mais privatização das reservas fósseis é um contrassenso. Ou melhor, é pura desonestidade.
Em pleno século 21, especialmente quando se trata de combustíveis fósseis, incluindo petróleo, o debate econômico não pode se restringir à tradicional confrontação entre uma direita privatista e uma esquerda estatizante. Além de discutirmos a questão da propriedade dos meios de produção (se privada ou pública) é preciso questionar inclusive que setores "produtivos" precisam ser descontinuados, em função de limites ambientais planetários.
No fundo, Landau sabe disso, daí, a frase final do seu artigo ("não há nenhuma diferença entre as razões para a retirada do Estado do controle da Petrobrás e de qualquer outra empresa estatal") entra em contradição com o que ela usa como um dos argumentos para defender que o Estado brasileiro precisa se livrar da empresa.
A lógica de Landau é que "o aquecimento global vem impondo restrições ao uso de combustíveis fósseis, o que reduz o valor da empresa para a sociedade ao longo do tempo" e que em virtude disso "sua venda deveria ser feita o mais breve possível". Claro, ela se dá ao trabalho de excluir a possibilidade de "gastar recursos públicos para reorientar suas atividades para energias renováveis", sem apresentar nenhuma justificativa plausível para isso.
Percebam, portanto, como se chega a um nível de cinismo e non sequitur impressionantes: a pessoa consegue usar a dramaticidade do aquecimento global para dizer que a empresa vai "perder valor" e que por isso é preciso vendê-la logo... Mas "esquece" que nessa lógica, o capital privado irá explorar as jazidas fósseis num ritmo ainda mais frenético, e despejar o carbono todo na atmosfera, agravando justamente o problema!
Nacionalizar as reservas fósseis para deixá-las no subsolo
Há muito tempo tenho insistido que é preciso superar o discurso desenvolvimentista do varguismo e as ilusões de explorar petróleo para financiar educação, saúde etc. Landau usa cinicamente um argumento "geracional", mas aqui o verdadeiro debate sobre o legado para as futuras gerações é que mesmo que usemos todo recurso da exploração de petróleo com saúde e educação públicas, a conta não fecha, pelo contrário.
Sem conter o aquecimento global, o que implica impedir a queima da grande maioria das reservas fósseis, o legado para a geração seguinte é mais eventos extremos: ondas de calor, secas, tempestades severas, elevação do nível do mar.
É um conjunto de impactos cuja severidade afetará as vidas das pessoas em todos os seus aspectos, com consequências diretas sobre a saúde, seja pela dificuldade de acesso à água potável (nos extremos, a Cidade do Cabo pode entrar em colapso de abastecimento por seca extrema - para não falar de Fortaleza, que pode escapar por um fio - e Porto Rico teve grande parte de seu território privado de água potável por conta da enchente produzida), seja pela proliferação de vetores transmissores de doenças, seja pelos malefícios diretos de ondas de calor, como as que mataram milhares de pessoas na Europa em 2003 e na Índia e Paquistão em 2015. E imigração forçada em massa é um risco real e concreto
Daí a saída é justamente o contrário do que propõe Landau. O correto é sair de "o petróleo é nosso" para "o petróleo é nosso pra ficar no chão", como defendo neste artigo.
Com seu cinismo e malabarismo argumentativo, Landau acha que devemos trocar "o petróleo é nosso" para "o petróleo é de vocês pra queimar à vontade e f*der de vez com o clima global".
Francamente, ela parece subestimar a inteligência dos leitores e joga às favas qualquer vestígio de honestidade intelectual. Ou seja, para evitar passar vergonha com um negacionismo climático explícito, Landau resolve passar vergonha equilibrando elementos antagônicos numa mesma linha de raciocínio.
E falando em ausência de honestidade intelectual...
Tratar o gás de xisto como "combustível alternativo" é uma piada de mau gosto. Como provavelmente Elena Landau não é ignorante, acreditamos que ela atue inteiramente de má fé ao esconder os problemas associados ao fracking.
... Landau se refere ao gás de xisto como "combustível alternativo", ressaltando que sua descoberta foi "mérito do capital privado". Impressionante...
Para início de conversa, o gás natural em si já é um combustível fóssil como carvão e petróleo e, portanto, o gás natural também precisa ser abandonado como fonte de energia. A queima de metano (seu principal constituinte) produz dióxido de carbono e a parte que escapa, constituindo aquilo que chamamos de "emissões fugitivas", também tem impacto bastante significativo sobre o clima, já que o potencial de aquecimento global da molécula de CH₄ é várias vezes maior do que o do CO₂.
Além disso, o gás de xisto é extraído via fracking, uma das tecnologias mais sujas que foram inventadas nas últimas décadas no setor de energia. Aliás, exatamente por ter emissões fugitivas maiores que o gás extraído em moldes convencionais, o gás de fracking é tão desastroso para o clima quanto o carvão, como mostramos em nosso blog no artigo "Uma Fratura no Clima".
Privatização fóssil ou democratização com descarbonização?
100% pública, democrática e descarbonizada. A Petrobrás poderia virar uma Solarbrás!
"There is no alternative". A frase de efeito, sentença baixada sobre a cabeça da humanidade pelos ideólogos neoliberais, teima em aparecer nos textos que defendem determinadas agendas econômicas. Landau afirma peremptoriamente que não existe a "alternativa de investir em renováveis" e que não há alternativa para a Petrobrás que não a privatização, mas a frase não resiste a uma análise minimamente séria...
Investimentos diretos da própria companhia e investimentos de bancos públicos podem e precisam ser feitos para tornar as energias renováveis o centro da Petrobrás. É justamente a potência de investimentos que esse setores ainda têm que permite orientar a política industrial brasileira para longe do papel primário-extrativista-exportador e construindo a base de uma transição energética.
Esse processo não apenas não penalizaria a maioria da população como, pelo contrário, se reverteria em energia limpa e barateada (com painéis solares nos telhados das casas assegurando a redução da conta de luz).
Também contribuiria para a manutenção das reservas hídricas, pois não apenas hidrelétricas como também termelétricas (fósseis e nucleares) demandam grandes quantidades de água.
A privatização do setor elétrico brasileiro produz contas caras e tornou a matriz ainda mais suja. A inserção de uma empresa pública como a Petrobrás, convertida em companhia de energia limpa, no setor, pode contribuir para quebrar esse ciclo perverso.
A alternativa, portanto, não é uma privatização fóssil da Petrobrás. Ao contrário, a rota é a da transformação da Petrobrás em uma empresa 100% pública, o que implica justamente em nacionalizar a sua metade não-pública e tirá-la da lógica de mercado e em anular os leilões de petróleo, renacionalizando as jazidas; democrática, isto é, gerida pelo conjunto de seus trabalhadores e trabalhadoras ao lado do conjunto da sociedade; descarbonizada, isto é, orientada para uma transição acelerada que a converta em uma empresa pública de energia limpa, contribuindo para livrar o povo brasileiro do jugo das corporações do setor energético.
Já abordamos o tema de quão desastroso é entregar jazidas fósseis nas mãos do capital internacional no artigo "E o clima? Por um verdadeiro debate sobre o pré-sal". Nas mãos das corporações, petróleo, gás e carvão serão explorados para muito além do limite, pois nada está acima, para elas, do que o próprio lucro.
Às maiorias sociais, pelo contrário, interessa deter a exploração de combustíveis fósseis e conter o aquecimento global. Ao capital interessa que a Petrobrás vire "Petrobrax", isto é, que o caos climático siga se acelerando, com lucros cada vez maiores para as corporações internacionais.
Às maiorias sociais interessa que ela não apenas permaneça como empresa pública, mas que seja radicalmente transformada, desde sua gestão até a fonte energética com a qual trabalha. Já que o problema não é só o "Brax", mas também o "Petro", se é para mudar, que a Petrobrás vire Solarbrás.
Alexandre Araújo Costa é cientista do clima.
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