segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Povos das florestas denunciam mais uma vez as falsas soluções do capitalismo verde

Povos das florestas denunciam mais uma vez as falsas soluções do capitalismo verde

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Entre 15 e 17 de junho de 2018, povos in­dí­genas e de co­mu­ni­dades que vivem e tra­ba­lham na flo­resta se reu­niram em Sena Ma­du­reira, Acre, para de­nun­ciar as falsas so­lu­ções pro­postas pelo ca­pi­ta­lismo verde para as de­gra­da­ções am­bi­en­tais e cli­má­ticas – cau­sadas, pa­ra­do­xal­mente, pela pró­pria ló­gica ca­pi­ta­lista de pro­dução e con­sumo in­sus­ten­tá­veis. De­nun­ci­aram-se os pro­jetos que creem na fa­lácia de que é pos­sível se­guir po­luindo a terra, a água e a at­mos­fera em de­ter­mi­nado ponto do pla­neta e “com­pensar” esta po­luição por meio da ma­nu­tenção de flo­restas em outra re­gião.

Além da im­pos­si­bi­li­dade, tais me­didas acabam por pre­ju­dicar as po­pu­la­ções que de fato se re­la­ci­onam com as flo­restas de ma­neira equi­li­brada – os in­dí­genas e as pe­quenas co­mu­ni­dades que tra­ba­lham nas flo­restas -, que acabam por perder a au­to­nomia sobre seus ter­ri­tó­rios a sua ca­pa­ci­dade de pro­dução e sub­sis­tência.

O es­tado do Acre é tido como um “la­bo­ra­tório” para estas po­lí­ticas de “com­pen­sação” e ali as co­mu­ni­dades tra­di­ci­o­nais vêm so­frendo com estes pro­jetos, sejam de REDD, REDD+, REM, PSA – as si­glas são vá­rias. Os nomes também, e ainda mais com­pli­cados: REDD sig­ni­fica “Re­dução das Emis­sões por Des­ma­ta­mento e De­gra­dação Flo­restal”; o REM é “REDD Early Mo­vers”, que são, na tra­dução, os “pi­o­neiros do REDD”; PSA quer dizer “Pa­ga­mento por Ser­viços Am­bi­en­tais”. Em comum entre estas si­glas e nomes todos é que são as me­didas do ca­pi­ta­lismo verde para se­guir po­luindo li­vre­mente, às custas dos di­reitos de po­pu­la­ções in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais, que, quando en­ga­nadas a acei­tarem tais pro­jetos, perdem o di­reito sobre suas terras.

Em suma, go­vernos e em­presas po­lui­doras do norte global com­pram “cré­ditos de po­luição”, ti­rando das co­mu­ni­dades do sul o di­reito ao ma­nejo de suas pró­prias terras: com­pram o di­reito a se­guir po­luindo, por meio da vi­o­lação de di­reitos em outro local, de­sa­fi­ando a so­be­rania dos povos sobre seu ter­ri­tório. Pri­va­tizam e fi­nan­cei­rizam a na­tu­reza. Con­fundem as co­mu­ni­dades com nomes es­tra­nhos, em uma lin­guagem dis­tante das pes­soas, e as se­duzem com falsas pro­messas – con­fundir para di­vidir, di­vidir para do­minar: assim age o ca­pi­ta­lismo verde. Pois em Sena Ma­du­reira, assim como antes em Xa­puri, os povos das flo­restas mos­tram o an­tí­doto a estes ata­ques: união para re­sistir, re­sistir para li­bertar.

Como que para res­saltar a im­por­tância deste en­contro, en­quanto ocorria o diá­logo em Sena Ma­du­reira, as em­presas de avi­ação se reu­niam em Mon­treal, Ca­nadá, para dis­cutir tais me­didas de “com­pen­sação”, que em nada di­mi­nuem os ní­veis de po­luição e ainda causam vi­o­la­ções de di­reitos nos ter­ri­tó­rios onde agem. A ex­pansão de ae­ro­portos no mundo e da in­dús­tria ae­ro­viária, al­ta­mente po­lu­ente, também foi cri­ti­cada, e é exemplo de como fun­ciona a ló­gica da “com­pen­sação”: há vi­o­la­ções de di­reitos em uma ponta e na outra, en­quanto as em­presas mantêm seu “dis­curso verde”, como se de fato en­fren­tassem os pro­blemas que elas pró­prias causam.

Em Porto Alegre, por exemplo, a Fra­port, em­presa alemã que opera o ae­ro­porto local, pre­tende ex­pulsar a Vila Na­zaré, que está há 60 anos na re­gião, para que possa es­tender a pista de pouso por mais umas cen­tenas de me­tros. A ex­pulsão das pes­soas, como de praxe, ocorre de ma­neira vi­o­lenta e ar­bi­trária, sem ne­nhuma trans­pa­rência no pro­cesso – contra o que a co­mu­ni­dade da Vila Na­zaré re­siste.

De um lado uma co­mu­ni­dade sendo ex­pulsa de sua terra para a ex­pansão de um ae­ro­porto; do outro, po­pu­la­ções per­dendo o di­reito a seu ter­ri­tório de­vido aos pro­jetos de “com­pen­sação”; no meio, uma ló­gica des­tru­tiva, que ataca as co­mu­ni­dades nas flo­restas e nas ci­dades, e contra a qual estes povos se le­vantam.

Leia abaixo a ín­tegra do do­cu­mento cons­truído no en­contro em Sena Ma­du­reira, Acre, do qual par­ti­ci­param in­dí­genas Apu­rinã, Huni Kui, Ja­mi­nawa, Nawa, Nu­kini, Ja­ma­madi, Man­chi­neri, Asha­ninka do En­vira e Yawa­nawa, re­pre­sen­tantes de co­mu­ni­dades tra­di­ci­o­nais do in­te­rior do Acre, se­rin­gueiros e se­rin­gueiras de Xa­puri, além de or­ga­ni­za­ções como Amigos da Terra Brasil, Con­selho In­di­ge­nista Mis­si­o­nário (CIMI) e Mo­vi­mento Mun­dial pelas Flo­restas Mun­diais (WRM, da sigla em in­glês).

DE­CLA­RAÇÃO DE SENA MA­DU­REIRA, 17 DE JUNHO DE 2018

Nós, mo­ra­dores da flo­resta, se­rin­gueiras e se­rin­gueiros, in­dí­genas pre­sentes Apu­rinã, Huni Kui, Ja­mi­nawa, Nawa, Nu­kini, Ja­ma­madi, Man­chi­neri, Asha­ninka do En­vira, Yawa­nawa, in­te­grantes de or­ga­ni­za­ções so­li­dá­rias pro­ve­ni­entes de di­versos es­tados do Brasil – como Acre, Ama­zonas, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Rondônia, pro­fes­sores e pro­fes­soras de uni­ver­si­dades, reu­nidos em Sena Ma­du­reira, Acre – terras an­ces­trais do povo Ja­mi­nawa – para o “IV En­contro de For­mação e Ar­ti­cu­lação dos Povos das Flo­restas no En­fren­ta­mento das Falsas So­lu­ções”, no pe­ríodo de 15 a 17 de junho de 2018, de­cla­ramos:

– Re­for­çamos as de­mandas e de­nún­cias da De­cla­ração de Xa­puri, em es­pe­cial o re­púdio às falsas so­lu­ções do ca­pi­ta­lismo verde, tais como o REDD (Re­dução de Emis­sões por Des­ma­ta­mento e De­gra­dação Flo­restal), o PSA (Pa­ga­mento por Ser­viços Am­bi­en­tais), a ex­plo­ração ma­dei­reira, tra­ves­tida de ma­nejo flo­restal, assim como qual­quer me­dida de “com­pen­sação” cli­má­tica ou am­bi­ental por meio da compra de cré­ditos de po­luição ou si­mi­lares;

– Com­pro­me­tidos com a De­cla­ração de Xa­puri, le­vamos adi­ante o es­pí­rito de união entre os povos e de en­fren­ta­mento às “so­lu­ções” dadas pelo ca­pi­ta­lismo às crises que ele pró­prio causa;

– A re­to­mada e ocu­pação Ja­mi­nawa de seus ter­ri­tó­rios an­ces­trais – Caya­pucã, São Pau­lino e Caieté – nos dão exemplo desta força de união e de en­fren­ta­mento aos ata­ques do poder ca­pi­ta­lista contra os povos. Esta con­quista re­vi­gora e dá forças para que cada um de nós, co­mu­ni­dades, povos e or­ga­ni­za­ções pre­sentes, leve nossa luta comum adi­ante;

– En­fa­ti­zamos a im­por­tância das pa­la­vras do Papa Fran­cisco na En­cí­clica Lau­dato-Si (pa­rá­grafo 171): “A es­tra­tégia de compra-venda de ‘cré­ditos de emissão’ pode levar a uma nova forma de es­pe­cu­lação, que não aju­daria a re­duzir a emissão global de gases po­lu­entes. Este sis­tema pa­rece ser uma so­lução rá­pida e fácil, com a apa­rência dum certo com­pro­misso com o meio am­bi­ente, mas que não im­plica de forma al­guma uma mu­dança ra­dical à al­tura das cir­cuns­tân­cias. Pelo con­trário, pode tornar-se um di­ver­sivo que per­mite sus­tentar o con­sumo ex­ces­sivo de al­guns países e sec­tores”.

– Da mesma forma, res­sal­tamos a con­de­nação às me­didas de fi­nan­cei­ri­zação da na­tu­reza con­tidas no pa­rá­grafo 11 da De­cla­ração da Ali­ança dos Guar­diões e Fi­lhos da Mãe Terra (de 28 de no­vembro de 2015), que diz, a res­peito das áreas de flo­resta pri­mária do pla­neta que estão tra­di­ci­o­nal­mente sob os cui­dados de povos in­dí­genas: “estes ecos­sis­temas não devem ser uti­li­zados no con­texto de um mer­cado de car­bono que quan­ti­fica e trans­forma a Mãe Terra em mer­ca­doria, nem servir de pa­ga­mento para ser­viços ecos­sis­tê­micos, para o co­mércio de car­bono, para as com­pen­sa­ções de car­bono, para as ta­ri­fa­ções de car­bono, para os Me­ca­nismos de Re­dução de emis­sões de­cor­rentes do des­ma­ta­mento e da de­gra­dação de flo­restas (REDD), para os Me­ca­nismos de De­sen­vol­vi­mento Limpo (MDL), ou para me­ca­nismos de com­pen­sação da bi­o­di­ver­si­dade e de fi­nan­cei­ri­zação da na­tu­reza, trans­for­mando-a em ‘partes’ à venda nos mer­cados fi­nan­ceiros”.

– Re­jei­tamos o pro­grama REM (REDD Early Mo­vers – “Pi­o­neiros do REDD”, em por­tu­guês), fi­nan­ciado pelo banco pú­blico alemão KfW, que induz as co­mu­ni­dades a acei­tarem a ló­gica do ca­pi­ta­lismo verde e usa o es­tado do Acre, in­de­vi­da­mente, como exemplo de “su­cesso” em de­sen­vol­vi­mento sus­ten­tável. Na ver­dade, o pro­grama di­vide as co­mu­ni­dades e ameaça a au­to­nomia dos povos sobre o uso da terra em seus pró­prios ter­ri­tó­rios, co­lo­cando em risco sua so­be­rania ali­mentar e seus cos­tumes e sa­beres tra­di­ci­o­nais. Estes mesmos pro­blemas podem acon­tecer no Mato Grosso, es­tado no qual re­cen­te­mente o pro­grama vem sendo im­ple­men­tado;

– Além disso, o di­nheiro pro­ve­ni­ente destes pro­jetos não res­ponde aos an­seios e ne­ces­si­dades das po­pu­la­ções ori­gi­ná­rias e tra­di­ci­o­nais, como, por exemplo, a de­mar­cação das terras in­dí­genas e re­gu­la­ri­zação fun­diária dos pe­quenos agri­cul­tores e agri­cul­toras de áreas atin­gidas por me­didas de ca­pi­ta­lismo verde. Ainda hoje não há trans­pa­rência sobre como tais re­cursos são apli­cados, como já ha­víamos de­nun­ciado na De­cla­ração de Xa­puri. Co­bramos do Mi­nis­tério Pú­blico Fe­deral que exija a pres­tação de contas dos pro­jetos;

– De­sau­to­ri­zamos qual­quer po­lí­tica cons­truída dentro de ga­bi­netes sem a de­vida con­sulta prévia (em acordo com a Con­venção 169 da OIT) e par­ti­ci­pação das po­pu­la­ções in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais. Qual­quer de­fi­nição de me­didas que con­cernem estas po­pu­la­ções deve partir da base, de dentro das co­mu­ni­dades;

– Pres­tamos so­li­da­ri­e­dade aos povos de todos os es­tados do Brasil e dos países do sul global que so­frem estas mesmas vi­o­lên­cias do ca­pi­ta­lismo verde; ape­lamos aos povos dos países do norte para que não caiam nas ar­ti­ma­nhas do “dis­curso verde” de em­presas, go­vernos e ONGs e ques­ti­onem as apli­ca­ções fi­nan­ceiras tais como do pro­grama REM e do Fundo Amazônia, entre ou­tros;

– Re­pu­di­amos ve­e­men­te­mente a per­se­guição, di­fa­mação e cri­mi­na­li­zação de de­fen­soras e de­fen­sores dos ter­ri­tó­rios, que têm a co­ragem de se ma­ni­festar e de­nun­ciar os ata­ques dos pro­mo­tores do ca­pi­ta­lismo verde.

Por fim, for­ta­le­cidos pelo in­ter­câmbio de ex­pe­ri­ên­cias entre os mais va­ri­ados povos du­rante estes três dias, se­guimos com a ca­beça er­guida e crentes que, unidos, temos plenas con­di­ções de lutar contra as falsas so­lu­ções do ca­pi­ta­lismo verde e de cons­truir formas al­ter­na­tivas de vida sus­ten­tável a partir dos ter­ri­tó­rios, res­pei­tando a plu­ra­li­dade dos povos. Con­vi­damos todos os povos das flo­restas e co­mu­ni­dades que so­frem as vi­o­la­ções deste sis­tema de­su­mano e pre­da­tório para se­guirmos juntos, ca­minho através do qual será pos­sível su­perar a ló­gica des­tru­tiva do ca­pital.

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