segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Mas o que é esse tal de antropoceno?

Mas o que é esse tal de antropoceno?

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Sem que nos dés­semos ver­da­dei­ra­mente conta, o termo tornou-se quase banal: o An­tro­po­ceno é essa nova era que vê o Homem im­primir sua marca sobre a evo­lução ge­o­ló­gica do pla­neta. No en­tanto, por trás da apa­rência de sim­pli­ci­dade da men­sagem — o que as­se­gurou sua efi­cácia — per­siste uma am­bi­gui­dade im­por­tante: na ver­dade, es­tamos fa­lando de quê?

Com base no corpo de dados ci­en­tí­ficos co­le­tados sobre o con­junto do pla­neta, uma coisa é evi­dente: os im­pactos das ati­vi­dades hu­manas fi­zeram da hu­ma­ni­dade, no seu con­junto, uma força ge­o­ló­gica capaz de trans­formar o Sis­tema Terra a ponto de com­pro­meter o pla­neta todo num novo pe­ríodo de sua his­tória ge­o­ló­gica. Daí a pro­posta de usar o nome de An­tro­po­ceno para esse novo pe­ríodo (apa­re­cida em 2000 na News­letter do In­ter­na­ti­onal Ge­osphere-Bi­osphere Pro­gram e, de­pois, em 2002, num ar­tigo pu­bli­cado na Na­ture, do geó­logo e bió­logo es­ta­du­ni­dente Eu­gene Sto­ermer e do ge­oquí­mico e Nobel de quí­mica ho­landês Paul Crutzen). O an­tro­po­ceno seria acres­cen­tado aos ou­tros pe­ríodos até então dis­tin­guidos dentro do Qua­ter­nário: o pleis­to­ceno (mar­cado pelos ci­clos gla­ci­ares) e o ho­lo­ceno (no qual o recuo das gla­ci­a­ções foi acom­pa­nhado, por parte dos hu­manos, do de­sen­vol­vi­mento da agri­cul­tura e da pe­cuária).
  
Essa pro­posta, é certo, ainda não foi ado­tada ofi­ci­al­mente, pois isso de­pende de um voto da União In­ter­na­ci­onal das Ci­ên­cias Ge­o­ló­gicas, em um de seus pró­ximos con­gressos, após con­si­de­ração de re­la­tó­rios feitos por um sub­co­mitê no­meado para esse fim. Para os ci­en­tistas, por­tanto, o an­tro­po­ceno con­tinua sendo apenas uma hi­pó­tese. No en­tanto, ele já en­con­trou um grande su­cesso, muito além dos meios ci­en­tí­ficos con­cla­mados a aceitá-lo ou a re­jeitá-lo: o an­tro­po­ceno tornou-se uma re­ceita, co­ló­quios são feitos, li­vros são pu­bli­cados.

Tal su­cesso deve-se, sem sombra de dú­vidas, ao seu nome: or­gulha-nos o fato de uma era ge­o­ló­gica (nada menos!) levar o nome dos hu­manos. Vi­agem ao an­tro­po­ceno, essa nova era na qual todos somos os he­róis, anun­ciou um dos pri­meiros li­vros em francês sobre a questão [https://​www.​actes-​sud.​fr/​cat​alog​ue/​societe/​voyage-​dans-​lan​thro​poce​ne].

To­davia, seus au­tores, Claude Lo­rius e Lau­rent Car­pen­tier, mos­traram-se no meio do livro menos fan­far­rões do que no tí­tulo, ao de­clarar: “O an­tro­po­ceno não é ‘a era dos hu­manos’, é a era de uma crise”. O termo crise, porém, não é con­ve­ni­ente. Ele leva a pensar que se trata de pro­blemas pas­sa­geiros que de­sa­pa­re­cerão de­pois de um re­torno à nor­ma­li­dade. Mas quando fa­lamos de an­tro­po­ceno no­me­amos uma época ge­o­ló­gica, uma coisa que dura.
  
Nos anos de 1970, a visão da “crise am­bi­ental” ex­primia-se em termos de re­ser­va­tó­rios que se es­va­zi­avam (re­cursos na­tu­rais não re­no­vá­veis) ou se re­do­bravam (po­lui­ções que se acu­mulam). Fa­lando de an­tro­po­ceno, não fa­zemos mais re­fe­rência a es­to­ques, mas a pro­cessos, a ci­clos glo­bais. Trata-se, agora, do ciclo do car­bono, a ponto do an­tro­po­ceno ter se tor­nado pra­ti­ca­mente sinô­nimo da mu­dança cli­má­tica, sem, con­tudo, re­duzir-se a ela, se­gundo seus pro­mo­tores.

O an­tro­po­ceno é também uma questão de ci­clos do ni­tro­gênio e do fós­foro, de aci­di­fi­cação dos oce­anos, de re­gime de águas, e, so­bre­tudo, de bi­o­di­ver­si­dade: o de­sa­pa­re­ci­mento ace­le­rado de certas es­pé­cies e a ra­re­fação das po­pu­la­ções de muitas ou­tras fazem parte dos fenô­menos glo­bais par­ti­cu­lar­mente in­qui­e­tantes que ca­rac­te­rizam o an­tro­po­ceno.
  
As ati­vi­dades hu­manas afetam, assim, o con­junto dos pro­cessos ter­res­tres, e isso surte efeito nas so­ci­e­dades, em re­torno: cres­ci­mento das de­si­gual­dades so­ciais, mo­di­fi­ca­ções de po­lí­ticas econô­micas, mi­gra­ções de po­pu­la­ções, exa­cer­bação de con­flitos...: todas as di­men­sões da vida so­cial são atin­gidas. Isso exige uma re­qua­li­fi­cação global da si­tu­ação, o que per­mite usar o nome an­tro­po­ceno.

Não es­tamos numa crise pas­sa­geira, não en­fren­tamos um pro­blema se­to­rial, nós nos en­con­tramos numa si­tu­ação que se mo­di­ficou glo­bal­mente, que mo­di­fica, até no mais ín­timo, nossas con­di­ções de vida. A mu­dança é ma­ciça, du­rável e, talvez, ao menos em es­cala hu­mana, ir­re­ver­sível.
  
Uma vez que o an­tro­po­ceno é re­sul­tado das ações hu­manas e que elas também são afe­tadas por ele, ele faz parte da his­tória delas. O an­tro­po­ceno é a grande nar­ra­tiva do en­contro entre a his­tória so­cial dos ho­mens e a his­tória na­tural do pla­neta. Essa nar­ra­tiva é con­tada no pas­sado: como che­gamos a esse ponto, como nos aper­ce­bemos disso? Mas ela também é con­tada no fu­turo. Os im­pactos de nossas ações fazem-se sentir sobre es­calas de tempo mais longas (sé­culos e / ou mi­lê­nios): o an­tro­po­ceno, na sua maior parte, ainda está por vir.

Não se trata apenas de dar sen­tido ao nosso pas­sado, mas de de­se­nhar nosso fu­turo for­ne­cendo re­fe­rên­cias glo­bais às nossas ações. A nar­ra­tiva, ou me­lhor, as nar­ra­tivas do an­tro­po­ceno são, por­tanto, ainda mais que os dados ci­en­tí­ficos in­vo­cados pela hi­pó­tese, o que ex­plica seu su­cesso, mas também e so­bre­tudo as con­tro­vér­sias por ele en­gen­dradas.
  
O an­tro­po­ceno é, de fato, o ob­jeto de duas nar­ra­tivas opostas, entre o poder e a perda de con­trole.
  
A pri­meira nar­ra­tiva é a da ge­o­en­ge­nharia pla­ne­tária. Ela versa sobre as in­ter­ven­ções téc­nicas apli­cadas em grande es­cala, seja em vista de ab­sorver ou de cap­turar grandes quan­ti­dades de car­bono, como, por exemplo, a “fer­ti­li­zação" dos oce­anos com a ajuda de par­tí­culas de ferro. A fi­na­li­dade disso é blo­quear os raios do sol, e, assim, agir sobre o ba­lanço ra­di­a­tivo da at­mos­fera e con­tra­ba­lançar o efeito es­tufa, re­cor­rendo es­pe­ci­al­mente ao bor­ri­fa­mento de en­xofre na es­tra­tos­fera.

Essa visão oti­mista das coisas vê na crise cli­má­tica a oca­sião de as­sumir o con­trole do sis­tema Terra, cri­ando, dessa forma, as con­di­ções de um “bom an­tro­po­ceno”. É o que pro­movem os eco­mo­der­nistas do Bre­akth­rough Ins­ti­tute [https://​the​brea​kthr​ough.​org/], criado em 2010 por Nordhaus e Schel­len­berg, de­pois do fra­casso da con­fe­rência de Co­pe­nhague.
  
A nar­ra­tiva oposta é a do ca­tas­tro­fismo. Bem longe de abrir a pos­si­bi­li­dade de um con­trole global do pla­neta pelas tec­no­lo­gias apro­pri­adas, o an­tro­po­ceno marca, ao con­trário, o fim dessa am­bição: o pla­neta es­capa ao nosso con­trole, iremos na di­reção de uma ca­tás­trofe. O tempo do an­tro­po­ceno, nessa pers­pec­tiva, é o das cau­sa­li­dades não li­ne­ares, ci­clos de re­tro­ação e “pontos sin­gu­lares” que pro­vocam o vaivém numa si­tu­ação com­ple­ta­mente nova.

O an­tro­po­ceno é, por­tanto, a era das ca­tás­trofes no sen­tido de um fu­turo muito ins­tável, não li­near, cujas grandes per­tur­ba­ções — in­ternas e ex­ternas — serão a norma. É também a era dos co­lapsos [http://​www.​seuil.​com/​ouvrage/​comment-​tout-​peut-​s-​eff​ondr​er-​pablo-​ser​vign​e/​978​2021​2233​16] que pode também ser lenta, como, por exemplo, o fim do cres­ci­mento, tão brutal quanto o risco de co­lapso sis­tê­mico global.

Por mais an­tagô­nicas que sejam essas duas nar­ra­tivas, elas estão as­so­ci­adas. A mesma visão global que levou à for­mu­lação da hi­pó­tese do an­tro­po­ceno sus­tenta o pro­jeto de con­trole téc­nico do clima em es­cala pla­ne­tária. Paul Crutzen, um dos au­tores da pro­posta de no­mear o novo pe­ríodo ge­o­ló­gico de an­tro­po­ceno, é ele também um de­fensor da ge­o­en­ge­nharia global.
  
Mas, nos dois casos, temos nar­ra­tivas glo­bais, que tratam da hu­ma­ni­dade de ma­neira uni­fi­cada. Ora, é exa­ta­mente sobre esse ponto que ocor­reram al­guns dos mais vivos de­bates em torno do nome. Para Cha­kra­barty, his­to­ri­ador es­ta­du­ni­dense es­pe­ci­a­lista em his­tória pós-co­lo­nial, a lição a ser ti­rada da mu­dança cli­má­tica é a do es­fa­ce­la­mento da fron­teira entre his­tória hu­mana e his­tória na­tural. A hu­ma­ni­dade deve agora con­si­derar-se em sua uni­dade, a de uma es­pécie bi­o­ló­gica. Ou­tros his­to­ri­a­dores de­nun­ci­aram essa na­tu­ra­li­zação da hu­ma­ni­dade [https://​pt.​scribd.​com/​doc​umen​t/​604​2050​4/​Le-​climat-​de-​l-​his​toir​e-​quatre-​theses].

Ao falar de “an­tro­po­ceno" fa­zemos da hu­ma­ni­dade toda, na sua pro­fun­di­dade his­tó­rica e na sua dis­persão es­pa­cial, o su­jeito uni­fi­cado da his­tória da al­te­ração da Terra. E, de um só golpe, atri­buímos a ela a res­pon­sa­bi­li­dade de ma­neira in­di­fe­ren­ciada. Ora, esse não é o caso: as di­fe­rentes po­pu­la­ções do mundo não par­ti­ci­param de ma­neira igual no pro­cesso que re­sultou na si­tu­ação pre­sente. Ela é o re­sul­tado de um de­sen­vol­vi­mento in­dus­trial e co­mer­cial que co­meçou no Oci­dente, de­sen­vol­vi­mento este do qual o Oci­dente ainda é em grande me­dida o motor e que levou a certo tipo de or­ga­ni­zação so­cial e econô­mica.
  
A his­tória que leva à de­gra­dação atual do pla­neta é a da busca do lucro [https://​www.​ver​sobo​oks.​com/​books/​1924-​cap​ital​ism-​in-​the-​web-​of-​life], a da ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores, a da do­mi­nação das colô­nias e a do fa­ti­a­mento re­gu­lado de uma na­tu­reza que tende a ser des­truída pela sua pró­pria apro­pri­ação. Mais que an­tro­po­ceno, va­leria a pena falar me­lhor de ca­pi­ta­lo­ceno.

Quanto aos cha­mados povos do Sul, os quais pouco con­tri­buíram para os males que nos afetam hoje, eles são muito mais afe­tados do que os Oci­den­tais: são as po­pu­la­ções das zonas tro­pi­cais ex­postas às secas ou à vi­o­lência dos fu­ra­cões, as das zonas de deltas ou de ilhas do Pa­cí­fico ame­a­çadas pela ele­vação do nível das águas, as que mais so­frem com a mu­dança cli­má­tica e que menos pos­suem os meios de en­frentá-la pelo sim­ples fato de sua po­breza.
  
Que termo pode ser usado para ca­rac­te­rizar os ha­bi­tantes da nova era? Mais que hu­manos, de­ma­siado li­gado à mo­der­ni­dade e à as­pi­ração de um modo de vida que hoje sa­bemos não ser pos­sível a todos, Bruno La­tour propôs [http://​www.​edi​tion​slad​ecou​vert​e.​fr/​cat​alog​ue/​index-​O___​att​erri​r__-​978​2707​1970​09.​html] a de­no­mi­nação de Ter­ranos [Ter­riens], mais ade­quada a con­si­derar a di­ver­si­dade de ha­bi­tantes da Terra. Mas esses ha­bi­tantes não são apenas hu­manos. A mu­dança cli­má­tica e o cor­tejo de trans­for­ma­ções que a segue não afetam apenas aos hu­manos, co­lo­cando em pe­rigo a co­mu­ni­dade dos seres vivos, ani­mais e ve­ge­tais. Falar de an­tro­po­ceno e de ca­pi­ta­lo­ceno é es­quecer os não hu­manos.

Para con­si­derá-los, Donna Ha­raway [https://​www.​duk​eupr​ess.​edu/​staying-​with-​the-​trouble], fi­ló­sofa es­ta­du­ni­dense, propõe uma outra de­no­mi­nação, a de “chthu­lu­ceno”, ne­o­lo­gismo que alia a re­fe­rência à Terra (do grego kh­tlôn, terra) ao nome ver­na­cular de uma aranha da Ca­li­fórnia cen­tral, Pimoa cthulhu, um ha­bi­tante não hu­mano da Terra. É uma ma­neira de lem­brar que a Terra não está re­ser­vada so­mente aos hu­manos, mesmo se as con­sequên­cias da pre­sença dos hu­manos façam-se sentir pe­sa­da­mente.
  
Quais­quer que possam ser os mé­ritos da de­no­mi­nação de chthu­lu­ceno, há muito poucas chances que venha a subs­ti­tuir a de an­tro­po­ceno para qua­li­ficar o que nos im­porta, que é a si­tu­ação na qual nos en­con­tramos hoje. E muito menos a de ca­pi­ta­lo­ceno. As duas de­no­mi­na­ções não pro­põem so­lu­ções de subs­ti­tuição, ambas di­rigem a atenção, de ma­neira a en­co­rajar o de­bate, para os de­feitos da de­no­mi­nação de an­tro­po­ceno. E talvez seja jus­ta­mente essa am­bi­gui­dade o que ex­plique seu su­cesso.

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