Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.
Se a próxima eleição lhe parece complicada, considere toda a complexidade exposta neste relatório sobre o desastre de Mariana (MG), que será divulgado às 10h desta segunda-feira (24). O Brasil inteiro cabe nele.
Sob o título “Os Impactos do Rompimento da Barragem do Fundão”, essa é a primeira avaliação publicada pelo painel independente de especialistas reunido pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) para acompanhar a recuperação da bacia do rio Doce, a cargo da Fundação Renova.
Em 5 de novembro se completam três anos do rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco que destruiu a vila de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas. A Renova foi criada em 2016 para gerir a reparação e a compensação ambiental e social a serem financiadas com estimados R$ 11 bilhões a R$ 12 bilhões pelas sócias na Samarco, Vale e BHP Billiton.
O documento oferece um relato sucinto do desastre e de seus impactos, já depurado das imprecisões que o caos dos primeiros meses espalhou. Cerca de 39,2 milhões de metros cúbicos (m3) de rejeitos se derramaram no córrego de Santarém e, em menos de meia hora, arrasou Bento Rodrigues, a 6 km de distância.
A onda destruiu por completo 218 dos 806 prédios e casas que afetou. Cerca de 20 km2 de terras foram invadidas pela massa viscosa, com devastação das matas em quase 15 km2. Houve grande mortandade de peixes. Metade dos rejeitos superou a barragem de Candonga, a cerca de 100 km do ponto de rompimento, depositando-se nas margens dos rios. Parte disso chegou ao litoral capixaba, 670 km adiante, após 16 dias.
A pluma de sedimentos finos (menos de um milésimo de milímetro) que chegou ao mar, matando a biota local, teve extensão máxima, a cada momento, de 1.400 km2. Ela variou muito sob a ação de ventos, marés e correntes, e a área total atingida ao longo de meses montou a 47 mil km2, incluindo partes do litoral do Rio de Janeiro e da Bahia, até o arquipélago de Abrolhos.
Centenas de milhares de pessoas ficaram sem água com a interrupção do abastecimento em cidades como Governador Valadares (MG) e Colatina (ES). Quase 2.000 funcionários foram demitidos pela Samarco em Mariana e Anchieta (ES), sem mencionar parcela dos 10 mil empregos indiretos antes mantidos pela mineração.
A questão dos pescadores constitui um caso especial. Tanto nos rios quanto no litoral, a atividade era mais artesanal, um complemento alimentar ou de renda para estimadas 2.000 famílias.
Com a perspectiva de receber indenização da Renova, porém, já se acumulam cerca de 15 mil pedidos de pessoas que se dizem pescadores. Numa região tão pobre e com passivo ambiental tão grave deixado pela mineração e pela pecuária de baixa produtividade, não chega a ser uma surpresa.
O incômodo social criado por esse misto de oportunismo e carência se manifesta nas queixas encaminhadas à Ouvidoria da Renova contra indenizações indevidas, cerca de 40% do total. “A própria população ajuda a monitorar, isso é muito positivo”, disse à coluna Roberto Waack, presidente da Renova.
Essa é apenas uma na miríade de dificuldades que surgem no caminho dos 42 programas da fundação, um número indicativo da complexidade dos problemas por resolver. A pesca também exemplifica uma das prioridades apontadas pela UICN: providenciar uma linha de base para avaliar o progresso de cada um dos projetos.
Essas referências permitirão distinguir melhor os impactos deixados pelo próprio desastre do que são carências históricas da região do rio Doce, como a precária fiscalização do impacto ambiental secular da mineração e a quase completa ausência de tratamento de esgotos na bacia.
Sem essa distinção, fica difícil avaliar a eficácia presente e futura dos trabalhos da Renova. Mas a UICN também se preocupa com o que pode interferir nos resultados –que se pretendem sustentáveis– daqui para a frente.
De um lado, há os efeitos não pretendidos da própria compensação (como as tão brasileiras fraudes que rondam as indenizações), a complicada estrutura de controle dos processos (Comitê Interfederativo com 70 órgãos de governo e 40 câmaras técnicas) e os riscos da judicialização que vários atores buscam.
De outro, há fatores que fogem ao controle de todos. Entre eles, o painel destaca a mudança climática, que pode pôr a perder várias conquistas. Os rejeitos derramados e ora estabilizados nas margens dos rios podem voltar a circular no ambiente sob a ação de chuvas mais intensas, por exemplo. Secas mais prolongadas atrapalhariam a retomada da agricultura.
O relatório recomenda, a respeito, que se produzam cenários de possíveis impactos regionais da mudança do clima, de modo a incorporá-los no planejamento das ações. Por fim, insiste também na divulgação ampla tanto do enorme acervo de dados acumulados pela Renova quanto das oportunidades abertas e bem-aproveitadas de reparar injustiças anteriores ao desastre.
Não é pouca coisa, num país com tantos atrasos lá atrás, agora, nas eleições, e sobretudo, à frente. Pela complexidade do desafio, parece-se bem com um trabalho de Sísifo, mas que vem sendo enfrentado com doses de método, parcimônia, racionalidade e disposição para negociar.
De certo modo, é o oposto do que transparece no processo eleitoral em curso. Que sirvam as lições: não existem soluções fáceis para algo tão complexo quanto o Brasil desastrado, só soluções possíveis e difíceis de alcançar sem um mínimo de coesão e respeito por todos os envolvidos.
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