sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Folha de S. Paulo – A inação quanto à mudança do clima é vergonhosa / Coluna / Martin Wolf

Precisamos mudar o rumo do investimento e do crescimento do planeta, e já.

Faltam cinco minutos para a meia-noite, quanto à mudança do clima. Teremos de alterar nossa trajetória muito rápido se desejamos ter uma boa chance de limitar a alta da temperatura média mundial a menos de 1,5ºC acima da norma pré-industrial. Foi esse o objetivo do Acordo de Paris, em 2015. Atingi-lo significa reduzir drasticamente as emissões, e já. É muito improvável que que isso aconteça. E o motivo já não é que a meta seja tecnicamente impossível; o problema é que ela é politicamente dolorosa. Estamos determinados a fazer uma aposta irreversível em nossa capacidade de administrar as consequências de uma alta de temperatura muito maior que dois graus. Nossos descendentes considerarão essa decisão como um crime.

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês) gira em torno das implicações de uma alta de temperatura de apenas 1,5 grau, e dos meios pelos quais isso poderia atingido. O texto é uma reductio ad absurdum - uma demonstração da implausibilidade de sua premissa. Mas também deixa claro os riscos que o planeta corre caso esse limite seja ignorado: a vida sobreviverá, mas não a vida tal qual a conhecemos.

A ideia subjacente nesse relatório é a do antropoceno –uma era na qual a atividade humana se tornou a influência dominante no planeta. O relatório aponta que a alta na concentração mundial de dióxido de carbono é da ordem de 20 partes por milhão a cada década. Isso representa ritmo 10 vezes mais rápido que o de qualquer alta sustentada do CO² nos últimos 800 mil anos. A época anterior que exibiu concentrações de CO² semelhantes às atuais foi a do plioceno, entre três milhões e 3,3 milhões de anos atrás. Hoje, somos nós que damos forma ao planeta. Isso deveria transformar nossa forma de pensar. Infelizmente, não o fez.

O ponto de partida de qualquer análise precisa estar nos argumentos teóricos e empíricos esmagadores quanto à mudança no clima causada pela atividade humana. Não muito muito tempo atrás, as pessoas falavam em uma pausa no aquecimento global. Mas isso resultou da comparação de um ano de El Niño (o fenômeno de aquecimento cíclico da região equatorial do leste do Pacífico), em 1997-98, aos anos normais, embora quentes, que se seguiram. Mas o El Niño de 2014-16 superou de longe sua marca anterior. A alta nas temperaturas médias com relação à média pré-industrial já é de um 1ºC. Isso mostra o quanto será difícil manter a alta final abaixo do 1,5ºC, ou mesmo dos 2ºC . Sob as contribuições determinadas nacionalmente, estamos na verdade a caminho de aquecimento de entre três e quatro graus por volta de 2100. Donald Trump já repudiou o compromisso americano nesse sentido. Outros países podem descumprir suas metas, igualmente.

Assim, o que seria preciso mudar para que tenhamos boa chance de manter a alta definitiva de temperatura abaixo do 1,5ºC? As emissões líquidas mundiais de CO² precisariam cair a zero não muito depois de 2040, e outras fontes de mudança no clima - as emissões de metano e óxido nitroso, por exemplo - também precisariam começar a cair a partir de 2030. Uma queda líquida a zero nas emissões de CO² até 2055 só bastaria para tornar provável que a alta na temperatura fique abaixo de dois graus. Uma diferença de meio grau é surpreendentemente importante. O IPCC afirma que "limitar o aquecimento global a 1,5ºC deve reduzir os riscos para a biodiversidade marinha, peixes e ecossistemas, e para suas funções e serviços aos seres humanos, como ilustrado pelas recentes mudanças na camada de gelo do Oceano Ártico e em ecossistemas de recifes de coral em águas quentes". Isso importa.

O relatório discute diversos caminhos para a grande queda de emissões que a meta de 1,5ºC requer. As emissões pela indústria teriam de cair em 75% a 90% até 2050, ante os totais de 2010. Isso requereria uma combinação de eletrificação, hidrogênio, insumos sustentáveis e de base biológica, e substituição de produtos.

São opções tecnicamente comprovadas, mas colocá-las em uso em escala planetária é outro assunto. Reduções nas emissões por meio de ganhos de eficiência –por mais vitais que sejam, como argumenta Amory Lovins, do Rocky Mountain Institute– não bastarão. Também serão necessárias grandes mudanças na infraestrutura e planejamento urbano. A agricultura terá de fazer uma transição para safras de energia em escala imensa. Captura e armazenagem de carbono em larga escala também serão necessárias.

No geral, temos de mudar o curso do investimento e do crescimento do planeta, e já. Isso é mais possível do que costumávamos imaginar, em termos técnicos. Mas é também um sério desafio político. Acima de tudo, a mudança do clima envolve grandes questões distributivas –entre países ricos e países pobres, entre os países que causaram o problema e os que não o causaram, entre os países que importam para a solução e os que não importam, e, não menos importante, entre as pessoas de hoje, que tomam as decisões, e as pessoas do amanhã, que sofrerão as consequências. A tendência natural seria ou fazer nada, e insistir em que não existe problema, ou concordar em que existe um problema mas simplesmente fingir que estamos agindo. Não está claro que forma de obscurecimento é pior.
Uma linha de argumentação contra a ação é a de que não sabemos qual será o custo final da mudança do clima. Mas esse argumento na verdade também pode ser usado em favor da ação. A escala da incerteza é um argumento em favor de agir, e não de esperar. Ninguém sabe realmente que riscos a humanidade descobrirá ter corrido ao continuar em seu curso atual. Mas sabemos que nossos descendentes provavelmente terminarão vivendo em um planeta diferente, e sem um caminho para retornar ao que hoje temos. A aposta em que nossos descendentes serão capazes de enfrentar a situação pode ser correta. Mas também pode se provar desastrosamente errada. A escolha sã certamente seria preservar o planeta que temos.

Mas fazê-lo, como se tornou bastante claro agora, requer esforço cooperativo em escala planetária. O problema não será resolvido com meias-medidas. A escala do desafio que temos é uma que os seres humanos historicamente só encontraram em tempo de guerra, e de guerra uns contra os outros. As chances de cooperação parecem quase nulas no mundo nacionalista em que hoje vivemos. Basta considerar a resposta ao relatório do IPCC –essencialmente, um bocejo coletivo– para perceber o fato. Mas é melhor que não nos iludamos: estamos correndo o risco de um mundo de caos climático descontrolado e não administrável. Seria possível fazer muito mais que isso.

Tradução de PAULO MIGLIACCI
Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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