Fogo já engoliu as florestas de Rondônia
Em 1998, reportagem do Estado de Minas viu de perto a destruição criminosa de 20% das reservas florestais do estado, na Amazônia
As
imagens da Amazônia fumegante correm o mundo hoje: a copa das árvores
envolta em fumaça como sentinelas do fim do mundo, o círculo do fogo
ampliando seus tentáculos mata adentro e os olhos da humanidade atônitos
diante da destruição. Cenas dramáticas que comprometem o presente e
põem em risco a vida futura, pois há um passado tenebroso. Há 21 anos,
em março e abril de 1998, o quadro era tão dilacerante como agora e o
foco principal estava em Roraima, onde chegaram cerca de 1,4 mil
bombeiros de vários estados brasileiros para tentar apagar as labaredas.
O Exército montou uma operação de guerra tal as dimensões do território
atingido, e bombeiros venezuelanos e argentinos cooperaram nos dias e
noites de combate.
No
fim de março de 1998, 20% de Roraima já tinha sido devastado, conforme
registrou a equipe enviada pelo Estado de Minas ao Norte do Brasil. E
pior: o fogo ameaçava as aldeias indígenas. Caminhando ou olhando do
helicóptero do Batalhão de Missões Especiais da Polícia Militar de Minas
Gerais, a região amazônica ardia e clamava por salvação. Chuvas
esporádicas traziam algum alívio, mas nada de acabar com o suplício da
natureza e da população.
As autoridades
federais e estaduais levantaram diversas hipóteses para o incêndio
monumental, sempre com uma certeza: tratava-se de um incêndio criminoso,
o fogo ateado de propósito à beira das rodovias para implantação de
loteamentos. As investigações apontavam também para as queimadas
pré-plantio, prática antiga e altamente nociva para o solo e todo o meio
ambiente. Ao mesmo tempo, deputados federais integrantes das comissões
da Amazônia e Desenvolvimento Regional e do Meio Ambiente, da Câmara,
“queriam saber se houve falha na mobilização do governo federal para
traçar o plano de socorro a Roraima”.
Numa
manhã quente e enfumaçada, a equipe do EM flagrou um homem de 82 anos,
morador de Vila Iracema, a 90 quilômetros de Boa Vista, riscando um
fósforo e pondo fogo no mato. Juntando folhas e pedaços de pau, o
senhor, protegido do sol com seu chapéu de palha, contou aos repórteres,
meio sem jeito, que estava “tentando apagar o fogo”. Mas a situação era
outra, tanto que, assustado, bateu logo em retirada para deixar
entregue à sorte a vereda de buritis. Em pouco tempo, a propriedade de
90 hectares começou a evaporar e o ar a ficar ainda mais contaminado.
Nesse
cenário sombrio, os indígenas não queriam perder tempo, e aguardavam a
chegada de um pajé de Mato Grosso para a famosa dança da chuva – eles
chegaram com sua cultura, tradição e mistérios. Fizeram chover. Usando
cipós e pedaços de bambus, os índios caiapós Kukrit (xamã) e Mati-I
conduziram um ritual, com duração de 40 minutos, na madrugada de 30 para
31 de abril, às margens do Rio Branco. A área foi cercada a estranhos
para não haver “interferências espirituais”, conforme explicaram.
AJUDA EXTERNA
A
tenebrosa seca na região amazônica e consequente incêndio florestal
sensibilizou autoridades da Alemanha, que enviou alimentos aos
“flagelados do fogo”, antecipando-se ao socorro do Comunidade Solidária,
programa social criado três anos antes na gestão do presidente Fernando
Henrique Cardoso. Caminhões carregados com 51 toneladas de cestas
básicas foram enviados ao Noroeste de Roraima, a fim de atender a cerca
de 2 mil famílias indígenas dos povos mucuxi wapixana. Os recursos,
também para compra de remédios, foram mandados pela Agência de
Cooperação Técnica (GTZ) do governo alemão.
Depois
da chuva, veio a confirmação de que o incêndio estava sob controle –
pelas imagens do satélite operado pela Embrapa em parceria com o
Exército, havia apenas 5% de focos. Assim, os bombeiros argentinos e
venezuelanos voltavam para casa, enquanto os militares brasileiros
faziam o rescaldo. Mas parece que a lição de cinzas não foi aprendida.
Quem sabe, esquecida.
Depoimento
Fogo no paraíso
“Não
parece que foi ontem – parece que foi hoje de manhã, tal a clareza de
imagens na cabeça. Numa segunda-feira ensolarada, embarcamos, o
fotógrafo Marcelo Sant'Anna e eu, do Estado de Minas, para a cobertura
do incêndio que transformava Roraima em centro do mundo, atraindo
repórteres de todos os paíse, com os mais modernos (para a época)
equipamentos de transmissão de dados. Do aeroporto da Pampulha, junto
com os bombeiros de Minas e integrantes do Batalhão de Missões
Especiais, transportados num avião Hércules da Força Aérea Brasileira
(FAB), seguimos rumo a Fortaleza. Nessa capital, ganhamos a companhia
dos bombeiros cearenses.
Chegamos a Boa Vista
(RR) tarde da noite. No dia seguinte, o comandante do Exército
responsável pelas ações explicou que estava montada ali uma operação de
guerra. O inimigo: o fogo. E como ele era avassalador e destemido.
Labaredas destruíam árvores frondosas da floresta tropical em questão de
minutos, caminhos ficavam interditados e a fumaça tornava o ar quase
irrespirável.
Ver um homem colocando fogo no
mato foi um choque – aí vimos que o fogo tinha aliados. A cena nunca
despregou da memória, pois tenho certeza de que o senhor com seu chapéu
de palha aprendeu tal prática com o pai. Pode ser que tenha ensinado ao
filho e ao neto. Nesse dia, demos carona a dois repórteres ingleses que
estavam meio perdidos no caminho e, de imediato, documentaram o
flagrante.
No dia seguinte, foi nossa vez de
ficar perdido. A floresta é um universo mágico, pois encanta, confunde,
num misto de raios de luz e muitas sombras. Por sorte, encontramos os
bombeiros do Ceará, em barracas, que nos levaram para Boa Vista.
Curiosamente, tudo se tornava moeda. Perguntamos a um homem, numa rua da
capital, sobre a direção de uma cidade e ele queria nos cobrar R$ 5...
isso em 1998. Recusamos.
Um dos momentos mais
fortes da cobertura, sem dúvida, foi o encontro com os indígenas
caiapós, que, com seus rituais, “chamavam” a chuva. Mistérios de homens
que conhecem os ciclos da Terra e, principalmente, respeitam cada palmo
do seu chão. E não é que, logo depois, choveu?” (Gustavo Werneck)
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