Ocupando metade da América do Sul e entre as dez maiores economias mundiais, o Brasil é também um líder em vida silvestre. Mais de 116 mil espécies animais, além de 46 mil diferentes plantas, foram listadas no país, sem contar a variedade de fungos, bactérias e outros seres. Uma riqueza distribuída em terra, rios e Atlântico.
O patrimônio natural brasileiro inclui espécies em risco de extinção, exclusivas do país, que cruzam fronteiras ou percorrem distâncias planetárias para descansar, comer e reproduzir. A lista tem peixes, mamíferos, insetos e outros animais. Estudo publicado em revista do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo mostra que 10,3% das espécies de aves registradas no Brasil são migratórias.
Uma delas é o maçarico-acanelado (Calidris subruficollis), que voa até 40 mil km indo e vindo dos extremos das Américas, distância similar à circunferência da Terra. Suas jornadas são dificultadas por impactos como a destruição de florestas e outras formações naturais, geração e distribuição de eletricidade, poluição, uso de agrotóxicos e urbanização.
“É um problema internacional”, resume Sérgio Morato sobre a conservação de animais silvestres no Brasil, que ajudam a manter a saúde dos ambientes naturais, controlam pragas que atacam lavouras e transmitem doenças, polinizam plantas comerciais, domésticas e silvestres, entre outras funções ecológicas. Morato é biólogo, doutor em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná, professor na mesma instituição e na Pontifícia Universidade Católica do estado sulista.
Diante desse cenário, proteger ambientes naturais e espécies animais e vegetais nativas no Brasil pode se tornar um desafio ainda maior pelo severo enfraquecimento do licenciamento de obras e atividades econômicas no país caso sejam aprovados projetos tramitando no Congresso Nacional, descrevem fontes ouvidas por esta reportagem.
“Isso ampliará o sofrimento de animais brasileiros e de muitos outros países”, ressalta Rodrigo Gerhardt, gerente da Campanha de Vida Silvestre da Proteção Animal Mundial Brasil, braço nacional da World Animal Protection (WAP). No país, a entidade tenta barrar retrocessos no licenciamento junto a mais de 40 ongs na campanha #PLdaDevastação.
Se aprovado como está, o texto permite renovar e emitir licenças automaticamente e online, isenta a agropecuária e variados empreendimentos de autorizações, enforca prazos para estudar impactos, anistia multas e crimes ambientais e desprotege áreas indígenas e quilombolas, mostra uma análise das ONGs Observatório do Clima (OC) e Instituto Socioambiental (ISA).
“Os projetos implodem com quase 40 anos de legislação e aprendizado em licenciamento no Brasil”, protesta a advogada Suely Araújo, doutora em Ciência Política e coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, coletivo de entidades civis focado na informação e enfrentamento da crise climática global.
Afinal, rebaixar as regras do licenciamento para atividades rurais trará sobretudo maior desmatamento e fragmentação da vegetação natural, todas grandes fontes mundiais de perda de espécies. Além disso, as regras federais são uma base para as normativas estaduais e municipais, cujos governos hoje autorizam licenças de menor impacto.
“As propostas subvalorizam ‘condicionantes indiretas’. O problema não é o desmatamento no leito da BR319, é o desmate regional gerado pela obra”, explica Suely Araújo, também ex-consultora legal da Câmara dos Deputados e ex-presidente do Ibama, agência responsável pelo licenciamento federal e ligada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
Um exemplo dos impactos pela fragilização do licenciamento vem da BR319, rodovia entre as capitais amazônicas Manaus e Porto Velho, dos estados de Rondônia e Amazonas. O asfaltamento de grande parte de seus quase 900 km estimulará mais ramificações, as chamadas “espinhas de peixe”, que já somam 5 mil km adentrando a floresta equatorial, ou cinco vezes a extensão da via principal.
“A fragmentação de habitats reduz as áreas de alimentação e abrigo para os animais, expondo-os a situações de maior vulnerabilidade”, alerta Rodrigo Gerhardt, da Proteção Animal Mundial Brasil. Mas, as pessoas também sofrerão com o desmate que virá pela precarização do licenciamento.
Um estudo publicado no portal Scientific Reports (Nature), por pesquisadores de instituições brasileira e espanhola, associa a explosão da dengue no Brasil às mudanças climáticas e ao desmatamento. No início de março, mais de 1 milhão de casos foram registrados no país.
Ameaças por todos os lados
Mas os danos à vida silvestre pelo enfraquecimento do licenciamento ambiental federal podem ser ainda maiores. “Há vários impactos diretos e indiretos dos empreendimentos agropecuários facilitando a perda de vida silvestre em uma escala absurda. A sobrevivência animal deve focar em ameaças conjuntas e sistêmicas”, enfatiza Gerhardt.
Pois, não faltam exemplos desses impactos e efeitos cumulativos, mesmo que proteger espécies silvestres seja amparado na Constituição e leis brasileiras, que proíbem práticas que coloquem em risco as funções ecológicas de animais e plantas, que as extingam ou as submetam animais à crueldade.
Diariamente, animais silvestres têm sido atropelados, envenenados, afogados, queimados e até abatidos a tiros pelos conflitos com os animais de criação, como revelam diversos estudos.
Na Universidade Federal de Lavras, no estado de Minas Gerais, o Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE) estima que 17 animais são atropelados por segundo em rodovias brasileiras. Isso soma perdas anuais de quase meio bilhão de espécimes silvestres. Um projeto para começar a reduzir a chacina tramita desde 2015 na Câmara dos Deputados.
O uso massivo de agrotóxicos pelo agronegócio brasileiro, englobando químicos proibidos em outros países, deixa marcas na vida selvagem. Além de encolher os números de polinizadores de plantas silvestres e lavouras, como as abelhas, de peixes a grandes mamíferos igualmente são envenenados.
Um artigo na revista Environmental Advances mostra que a poluição do Rio Araguaia ultrapassa o aceitável na União Europeia. Azar de espécies como o Inia araguaiensis, um boto cinzento exclusivo do manancial, que corre do Cerrado no estado de Goiás até desaguar no Rio Tocantins, na Amazônia.
As corpulentas antas (Tapirus terrestris) enfrentam crise similar no estado do Mato Grosso do Sul, onde a espécie é duramente afetada e até morta por agrotóxicos aplicados em fazendas, mostra estudo publicado no periódico Wildlife Research por cientistas brasileiros e internacionais.
Mas a dívida do agronegócio com a vida animal pode ser ainda maior, mesmo que exterminar animais e plantas nativos seja um tiro no pé, pois compromete a produção de alimentos e o desempenho geral do setor, como alertou a FAO, sigla em Inglês da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação.
Uma pesquisa replicada na plataforma Biorxiv, de cientistas do Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal de Pernambuco, estado do Nordeste brasileiro, aponta que o agronegócio afeta duas em cada três espécies de vertebrados ameaçadas de extinção no Brasil.
O licenciamento precário da produção rural igualmente mata animais por afogamento. Reportagem do portal ((o))eco, de setembro passado, mostra que o lobo-guará e outros animais silvestres estão perdendo a vida em canais de irrigação no interior do estado nordestino da Bahia.
A agropecuária também atiçou incêndios que devastaram o Pantanal nos últimos anos. O bioma é o mais íntegro do Brasil, com 85% do verde natural. Investigações federais concluíram que queimadas para limpar ou renovar pastagens em fazendas fugiram do controle e contribuíram para matar 17 milhões de animais, em 2020.
O balanço foi veiculado na revista Scientific Reports por três dezenas de cientistas.
Distorções históricas
O licenciamento de obras de infraestrutura, energia, mineração e outras atividades econômicas é previsto desde os anos 1980 na Constituição e legislação federais e em resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), onde governos, empresariado e ambientalistas detalham a execução de políticas ambientais.
Simultaneamente, há projetos para alterar esses processos desde 1988, quando foi promulgada a nova Constituição Federal. Já o texto tramitando no Senado com ameaças à vida silvestre veio da Câmara dos Deputados. A proposta foi assinada em 2004 por três ex-parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT), sigla do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“É o mesmo processo legislativo há muitos anos. De início era uma proposta do setor ambiental para uma lei geral do licenciamento brasileiro, que ainda não existe, mas os textos foram piorando ao longo do tempo. O aprovado na Câmara em 2021 é o pior da história”, avalia Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.
No Senado, o projeto legislativo é avaliado nas comissões de Agricultura e de Meio Ambiente. Nessa última, o relator do tema é o senador Confúcio Moura (MDB/RO), partido parcialmente da base governista. O parlamentar não atendeu aos pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem. A expectativa dos congressistas é de que o projeto seja aprovado este ano.
Com 374 deputados e senadores, a Bancada Ruralista representa no Congresso os interesses de boa parte do agronegócio brasileiro. O grupo e apoiadores fora do Parlamento afirmam que mudar o licenciamento criará condições para “o uso sustentável dos recursos naturais” e promoverá “segurança jurídica” e “transparência” a órgãos ambientais, sociedade e empreendedores para aprovar projetos e proteger o meio ambiente.
A avaliação está na pauta deste ano da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
Contudo, as entidades contrárias ao derretimento das licenças ambientais vislumbram outro cenário. “A proposta para o licenciamento fere a Constituição e provocará ações judiciais e no Supremo Tribunal Federal se for aprovada no Congresso”, avalia Rodrigo Gerhardt, da WPA Brasil. “Isso, pelo contrário, aumentará a insegurança jurídica no campo”, afirma.
A doutora em Políticas Públicas, Suely Araújo, calcula efeitos similares à agropecuária brasileira. “A judicialização é o caminho esperado se o projeto for aprovado como está. As flexibilizações propostas não têm parâmetro, mesmo que isso não dispense aperfeiçoamentos ao licenciamento”, destaca.
Reforçar é preciso
Nesse sentido, alinhar e reforçar o licenciamento ambiental para conter danos à vida animal e vegetal, ao clima, às economias e populações será positivo para o Brasil e demais países.
Conforme o doutor em Zoologia, professor e consultor Sérgio Morato, clarear diretrizes para licenças setoriais levariam a melhores estudos e medidas para reduzir impactos ambientais. “Não basta citar nas avaliações de obras quais espécies serão afetadas. Falta mais informação sobre como reduzir efetivamente os prejuízos à biodiversidade”, conta.
Para o especialista, essas falhas começam nas universidades, especializações, capacitações e pós-graduações e alcançam os órgãos públicos, setores privado e não-governamental. “Ainda não preparamos profissionais para planejar e analisar de forma sistêmica”, ressalta.
De acordo com Morato, as licenças devem ser aperfeiçoadas para que o Brasil cumpra metas de clima, economia verde, proteção da vida silvestre e desenvolvimento sustentável. “Fragilizar a legislação aumenta os riscos físicos, socioambientais, comerciais, legais e de reputação do país”, alerta.
Prejuízos pela precarização do licenciamento são ainda mais explícitos pela paralisação de agências federais. Desde 1º de janeiro, a greve por melhores salários de servidores do Ibama emperrou obras, projetos de petróleo e energia, exportações e importações. Em portos e fronteiras, mais de 30 mil veículos estão parados sem liberação ambiental.
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