O amor necessário deveria resistir ao contingente. Antigamente, talvez houvesse mais sabedoria
WALCYR CARRASCO
14/03/2014 21h21
Todos temos inveja dos casais de antigamente. Do tipo que foram meus
pais, juntos por mais de 40 anos. Ou, como se diz no altar, “até que a
morte os separe”. Sim, ainda existem casais que passam suas vidas
juntos.
Mas também é fato que hoje a separação se tornou fácil, rápida.
Viver com alguém é aceitar ser transformado pelo outro e, por sua vez,
transformar.
Há quem diga que casais de velhos que passaram a vida
juntos se tornam parecidos fisicamente. É verdade.
Separar-se é tão comum que, quando encontro um amigo numa festa, tenho medo de perguntar:– Como vai a Lúcia?
Pela sua expressão, já sei que dei um fora. A mulher que chega com uma bebida (poderia ser prima, amiga, mas não é) me encara com hostilidade.
– A gente se separou, mas ela está bem. Conhece a Jô?
Fica um clima horroroso. O pior: quem passa por mal-educado sou eu. Deveria saber que as pessoas se separam, encontram novos amores. Mas como fazer?
Às vezes é tão rápido e surpreendente! Se a pessoa continua casada e a gente não pergunta da parceira, aí, sim, é doutorado em falta de polidez. Depois de várias situações constrangedoras, aprendi a ficar tateando:
– E a vida, como vai?
Para ver se o amigo dá uma pista.
A vida dos casais de antigamente nem sempre era tão boa assim, principalmente para as mulheres.
Sem profissão, eram obrigadas a suportar maridos autoritários, casamentos fracassados. A entrada no mercado de trabalho tornou a dignidade feminina possível também na vida íntima. Se está com alguém, é porque quer.
Ao lado disso, penso que vivemos numa época em que se confunde o amor necessário com o contingente. O amor necessário, segundo o filósofo francês Jean-Paul Sartre, é aquele que organiza a vida.
Que estabelece alicerces. É o que nos leva, enfim, a uma vida a dois, na expressão mais comum. O contingente é a paixonite, o interesse, a amizade súbita que pode arrastar alguém para a cama alheia, sem que isso signifique um compromisso. O que chamo de amor contingente ganha o nome de traição.
Um amor necessário tem de resistir a uma traição, penso. Mas a maioria das pessoas tem horror só da palavra –traição. No passado, vamos combinar, era mais simples. Maridos traíam.
Mulheres se conformavam. Ou, na iminência de ser descobertos, maridos piravam. Tive um colega de infância cujo pai teve um caso com uma prostituta.
Ela descobriu o endereço da família e ameaçava contar para a mulher. Fez chantagem. Ele perdeu o que tinha, para a mulher – o amor necessário – não saber. Quando soube, foi pior: a traída descobriu também que a grana tinha sumido e aí, sim, literalmente, a casa caiu. Mulheres também traíam, claro.
A figura da mulher em busca de uma grande paixão rendeu um dos maiores romances da literatura, Madame Bovary, de Flaubert. Não à toa, ela leva a família à falência e termina se suicidando com arsênico.
Atualmente, a traição é motivo de briga, escândalo, separação. Como no caso do famoso cantor sertanejo que teve um filho fora do casamento com uma socialite.
A mulher se separou, mas sem alarde, até para não prejudicar a carreira do ex. Mas me pergunto. Ela fez bem? Penso que não. Estavam juntos desde os tempos de pobreza. Tiveram filhos. Eram, um para o outro, necessários. A outra foi contingente. Aconteceu, mas o cantor não ficou com ela. Não era o amor de sua vida.
A escritora francesa Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre conheciam a diferença entre os dois tipos de amor – e se permitiam ambos, coniventes.
No livro A força da idade, Simone de Beauvoir explica a visão de Sartre. “Trata-se de um amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes”, diz ela.
“Nossa compreensão duraria tanto quanto nós mesmos, mas ela não poderia suprir as riquezas efêmeras dos encontros com seres diferentes.”
É preciso sabedoria para saber quando alguém veio para ficar. E também para quando é bom, mas passageiro. Talvez os casais antigos lidassem melhor com os amores contingentes porque fingiam ignorá-los. E a falsa inocência ajudasse a manter os casamentos.
A clareza psicológica dos relacionamentos atuais talvez pudesse ajudar noutro sentido: entender que, muitas vezes, um dos parceiros precisa conhecer alguém, viver uma paixão, para voltar renovado e reforçar os laços.
Quem é essencial só precisa saber aguardar. Muitas vezes, é a traição que salva um casamento.
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