Estadão
15 de março de 2014 | 2h 58
ROLF KUNTZ*
Burrada gera burrada e tende a crescer em espiral, como
os preços inflados, quando a besteira é realimentada pela mentira. No
Brasil, essa combinação de erros levou à superinflação, nome inventado
para marcar a tênue diferença entre a hiperinflação e o desastre
brasileiro dos anos 80 e começo dos 90.
Proscrito por algum tempo, o
jogo está consagrado, novamente, na rotina brasiliense.
O socorro de R$
12 bilhões às elétricas, para atenuar os efeitos de uma política
populista de tarifas, é o mais novo lance desse jogo.
O Tesouro gastará
R$ 4 bilhões além dos R$ 9 bilhões previstos no Orçamento e a Câmara de
Comercialização de Energia, um ente privado, tentará obter no mercado um
financiamento de R$ 8 bilhões, pagando juros, naturalmente. Os
consumidores serão mais uma vez poupados, neste ano, e só depois de
votar receberão a conta aumentada.
Mentira é uma boa palavra para designar a maquiagem das contas
fiscais e a tentativa de reprimir - e falsificar, portanto - os índices
de preços.
No caso das contas públicas, também tem sido usada, com
sucesso internacional, uma expressão mais suave: contabilidade criativa.
A nomenclatura faz pouca diferença. O importante é reconhecer a
realimentação e a multiplicação dos erros quando se tenta disfarçar os
problemas, em vez de resolvê-los. O efeito circular é claríssimo na
crise argentina.
Também é indisfarçável na baderna econômica da
Venezuela, marcada nas páginas da História, de forma indelével, pela
escassez de papel higiênico. Haja páginas.
O exemplo argentino é um modelo para os governantes populistas, em
geral muito interessados nos benefícios políticos e pouco preocupados
com os custos efetivos para a economia.
Para disfarçar a inflação o
governo da Argentina tem falsificado os indicadores e tentado tabelar ou
congelar os preços. Como o fracasso é inevitável, amplia a vigilância e
tenta levar o controle até a origem dos produtos.
Com isso, impõe
perdas a agricultores e pecuaristas e cria um conflito entre a
administração central e o setor mais eficiente da economia. De passagem,
cria algum obstáculo à exportação de alimentos, para derrubar os preços
internos, e compromete a receita cambial.
Como o Executivo também usa
os dólares da reserva para liquidar contas fiscais, a combinação das
trapalhadas produz ao mesmo tempo inflação crescente, insegurança na
produção e escassez de moeda para os pagamentos internacionais.
Para poupar reservas o governo impõe controles severos às compras de
moeda estrangeira e aumenta o protecionismo. Também esse esquema tende
ao fracasso, mas produz algum efeito quando um governo amigo se dispõe a
aceitar o desaforo comercial.
Neste caso, esse governo amigo tem como
endereço principal o Palácio do Planalto, em Brasília. A tolerância é
praticada em nome de uma solidariedade nunca retribuída e, de forma
implícita, de uma liderança regional imaginária e sempre desmentida na
prática.
A solidariedade tem um claro componente ideológico. O estilo dos
Kirchners tem sido uma evidente inspiração para o governo brasileiro.
Mas as condições no Brasil são um tanto diferentes e têm sido menos
propícias, pelo menos até agora, a algumas iniciativas mais audaciosas. O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda funciona
sem interferência do Executivo.
O PT conseguiu, pelo menos durante algum
tempo, impor sua marca ao velho e respeitável Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), mas a ação foi desastrada e desmoralizante.
Não se conhece, até hoje, nenhuma tentativa semelhante em relação ao
IBGE.
Sem manipulação direta dos índices, a maquiagem da inflação ocorre
diretamente nos preços, por meio, por exemplo, da redução das contas de
eletricidade, da imposição de perdas à Petrobrás e do congelamento das
tarifas de transporte urbano.
Seria politicamente muito mais complicado
tentar mexer nos indicadores produzidos pelo IBGE. Mas a interferência
direta na fixação de preços dispensa o governo desse risco. Impõe, em
contrapartida, uma porção de outros problemas.
O congelamento de tarifas de transporte público resultou em perdas
para governos municipais e estaduais, incluídos os do PT. Recursos para
investimentos e até para ações rotineiras tornaram-se mais escassos, mas
o reajuste de tarifas é hoje politicamente mais difícil do que no ano
passado.
O esperado socorro do governo federal - uma das apostas do prefeito
Fernando Haddad - também está atrasado e é pouco provável, porque as
contas do Tesouro Nacional estão em más condições.
Se algum socorro
aparecer, será uma surpresa, porque a meta fiscal anunciada no mês
passado pelo ministro da Fazenda parece cada dia mais inacessível. O
aumento das despesas para socorrer o setor elétrico é uma sangria a mais
para o Orçamento federal.
Se a presidente insistir em poupar os consumidores, será preciso
compensar os gastos adicionais do subsídio às contas de eletricidade. O
ministro da Fazenda mencionou o possível aumento de impostos e a
reabertura do Refis, o refinanciamento de dívidas tributárias.
Mais uma
vez o balanço fiscal dependerá de receitas especiais, como os pagamentos
iniciais do Refis, os dividendos do BNDES e o pedágio pago pelas
concessões de infraestrutura. Se as agências classificadoras aceitarem a
jogada, talvez se possa evitar a redução da nota de crédito soberano.
Um pouco mais de seriedade na gestão das contas públicas e no combate
à inflação pouparia ao governo muitas complicações e livraria o País de
perdas injustificáveis. Combate sério à inflação inclui o uso mais
eficiente do dinheiro público e a ação realmente autônoma do Banco
Central.
O Brasil nada ganhou com a redução voluntarista dos juros. A
inflação subiu e foi preciso apertar de novo a política monetária.
Também nada ganhou com a manipulação de preços e tarifas. Burradas só
geram problemas e o esforço para disfarçá-los envolve novas burradas,
como a solução improvisada para o problema das elétricas.
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