O ESTADÃO - 08/07
Quanto a mim, com medo de nosso futuro, as últimas semanas me jogaram de volta ao Maracanã do passado.
A primeira vez em que assisti a um jogo foi no velho estádio, recém-inaugurado. Meu avô me levou. Fiquei com ele na arquibancada de cimento. Milhares de torcedores gritavam e pulavam. E eu, ali. De repente, me assustei, pois percebi que, em vez de olhar o campo, eu prestava atenção nas pessoas que assistiam ao jogo. Percebi que eu estava atento às suas reações, a seus olhos e bocas torcidas por palavrões e nervosismo, enquanto eu os observava de fora como se fosse de outro planeta. Me senti meio maluco, lembro, esquisito, incapaz de me incluir naquela fanática torcida no estádio. Meu destino de perna de pau estava traçado, não só no futebol, mas para a vida.
O futebol sempre foi para mim um sonho inatingível. Nunca fui aceito pelo futebol – como entraria naquela batalha de homens guerreiros, eu, magro, comprido e tímido?
Tentei, tentei, sim, e consegui ser aceito nos times de praia da Urca, onde eu invariavelmente era o reserva. Havia muitos times de praia; o respeitado Lavaibola (creio que era do Leme), o Arsenal, com sua camisa dourada e roxa, o Ipiranga, verde e vermelho – mágicas roupas que eu ambicionava vestir. Mas faltava-me a agressividade dos garotos da rua, duros e secos, porradeiros e xingadores, faltava-me a natural destreza das panturrilhas musculosas.
Uma vez, pintou uma vaga no Ipiranga. Jogaram-me a camisa com menosprezo, e vibrei de orgulho. O jogo começou, e eu, perna de pau, corria em vão. Lá pelas tantas, chegou o titular, e a camisa me foi arrancada e dada ao valoroso Acreano, estranho indígena de pernas tortas, famoso por seus dribles desengonçados. Parecia que tinham me arrancado a pele. Corri para a água e fui chorar no mar.
No colégio, a bola entrou raspando entre minhas pernas num frango clamoroso (tentava ser goleiro). Eu me lembro da trave, da bola entrando e da vergonha diante de colegas me xingando e do apito do padre-juiz.
Daí para a frente foram humilhações sucessivas. Nunca integrei um primeiro time de nada no colégio, nunca recebi uma taça, nunca arranquei poeira do chão com chuteiras masculinas e ferozes, nunca conheci a alegria dos aplausos suados, descabelados nas manhãs azuis dos padres jesuítas. Para me vingar, passei a ostentar uma indiferença superior ao “nobre esporte bretão”.
Hoje, lamento esse trauma que me tirou a alegria de acompanhar o futebol, desde aqueles tempos remotos e talvez ilusoriamente felizes. Hoje invejo amigos que sabem tudo sobre bolas. Pergunto ao Rui Solberg ou ao Sérgio Augusto, por exemplo, qual era o time do Botafogo em 1949, e eles respondem na hora.
No entanto, nessas últimas semanas de gramados verdes e céus azuis da Copa, eu me senti de volta ao tempo antigo. Nos sábados e domingos, soavam no ar os radinhos de pilhas dos porteiros de prédios com os locutores competindo em velocidade na descrição dos jogos. Oduvaldo Cozzi era o mais rápido. Ary Barroso rosnava sem pudor pelo Flamengo. As ruas eram mais vazias, havia manhãs, tardes e noites mais nítidas, havia mais paz. Claro que se armavam mudanças políticas às vésperas do golpe de 64, mas estava intocada uma cidade baldia e amada, um Rio precário e poético na Lapa, no Mangue, em Copacabana, uma cidade que, com poucas migalhas, fabricava uma urbanidade pacífica.
Esta Copa de 2014 nos trouxe de volta um sentimento semelhante – temos alguma causa em comum, um desejo de vitória, um desejo de avanço, uma alegria que não sentíamos havia muito tempo. Por algumas semanas perdemos a sensação de tudo ser fragmentário, inatingível, e um país possível surgiu a nossa frente. Alguém escreveu por aí que, se dedicássemos toda essa energia para mudar o Brasil politicamente, seria um “chuá” ou um “banho”, como se dizia em futebol.
Daqui a uma semana, voltará o sentimento de excesso, de insolubilidade para os problemas do mundo, estaremos de novo em trânsito como carros engarrafados, dominados por celulares, por circuitos sem pausa, com nossa identidade cada vez mais programada. Depois da sensação de passado, estaremos sem presente. Voltará o suspense diante do destino político, principalmente com as eleições. Estamos no intervalo. Que nos espera depois do jogo contra a Alemanha? Que nos espera em Brasília?
Quanto a mim, lembrei-me de um momento feliz no passado. Outro dia, Pelé, numa entrevista, disse que o maior jogador que ele viu em campo foi o Zizinho. Eu também vi. Foi um momento mágico.
Meu avô me levara a um Vasco x Bangu, na magra esperança de fazer de mim um homem. Lá estava eu no Maracanã, vagamente entediado, cumprindo um dever, quando apareceu um jogador mulato de camisa listrada vermelha e branca, que arrancou numa corrida extraordinária, deu “chapéu“ em vários “joões”, executando um balé de volteios ferozes e sutis como um cossaco dançante, levou a bola colada no pé e colocou-a no canto da trave, sob o olhar do goleiro abobalhado. Naquele instante eu fui tomado de funda emoção. Eu entendi o que era “arte”. Não só de futebol, mas arte mesmo. Todos gritavam: “Zizinho! Zizinho!”.
Naqueles minutos, Zizinho me fez esquecer de mim mesmo, e lembro com grande saudade que gritei e me senti igual a todo mundo, igual, perdido na massa pobre do tempo, sentindo a alegria da “normalidade”, sem medo, sem tremor, felicíssimo antes que minha solidão melancólica voltasse a se instalar.
É mais ou menos isso que tenho sentido nesta Copa, que parece um flashback de felicidade.
Como naquela visão artística de Zizinho, tenho sido bem feliz nas últimas semanas. Até que a depressão dos tempos brasileiros volte a se instalar.
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