Questão de classe - J.R. GUZZO
REVISTA VEJA
Uma das crenças mais resistentes do pensamento que imagina a si próprio como o mais moderno, democrático e popular do Brasil é a lenda da inocência dos criminosos pobres.
Uma das crenças mais resistentes do pensamento que imagina a si próprio como o mais moderno, democrático e popular do Brasil é a lenda da inocência dos criminosos pobres.
Por essa maneira de ver as coisas, um crime não é um crime se o
autor nasceu no lado errado da vida, cresceu dentro da miséria e não
conheceu os suportes básicos de uma família regular, de uma escola capaz
de tirá-lo da ignorância e do convívio com gente de bem.
De acordo com
as fábulas sociais atualmente em vigência, pessoas assim não tiveram a
oportunidade de ser cidadãos decentes - e por isso ficam dispensadas de
ser cidadãos decentes.
Ninguém as ajudou; ninguém lhes deu o que faltou
em sua vida. Como compensação por esse azar, devem ser autorizadas a
cometer delitos - ou, no mínimo, considera-se que não é justo
responsabilizá-las pelos atos que praticaram, por piores que sejam.
Na
verdade, segundo a teoria socialmente virtuosa, não existem criminosos
neste país quando se trata de roubo, latrocínio, sequestro e outras
ações de violência extrema - a menos que tenham sido cometidos por
cidadãos com patrimônio e renda superiores a determinado nível. E de
quem seria, nos demais casos, a responsabilidade? Essa é fácil: "a culpa
é da sociedade".
Toda essa conversa é bem
cansativa quando se sabe perfeitamente, desde que Moisés anunciou os Dez
Mandamentos, que certas práticas são um mal em si mesmas, e
ponto-final; não apareceu nas sociedades humanas, de lá para cá, nenhuma
novidade capaz de mudar esse entendimento fundamental.
Um crime
não deixa de ser um crime pelo fato de ser cometido por uma pessoa
pobre, da mesma forma que ser pobre, apenas, não significa ser honesto.
Mas e daí?
Em nosso pensamento penalmente correto, a ideia de que as
culpas são sobretudo uma questão de classe é verdade científica, tão
indiscutível quanto a existência do ângulo reto. Por esse tipo de
ciência, um homicídio não é "matar alguém", como diz o Código Penal
brasileiro; para tanto, é preciso que o matador pertença pelo menos à
classe média.
Daí para baixo, o assassinato de um ser humano é apenas um
"fenômeno social". Fim da discussão. No mais, segundo os devotos da
absolvição automática para os criminosos que dispõem de atestado de
pobreza, "somos todos culpados". Nada como as culpas coletivas para que
não haja culpa alguma - e para que todos ganhem o direito de se declarar
em paz perante sua própria consciência.
Embora não faça parte
dos programas de nenhum partido ou governo, esta é a fé praticada pela
maioria das nossas altas autoridades - junto com as camadas superiores
da Ordem dos Advogados do Brasil, juristas de renome e estrelas do mundo
intelectual, artístico e sociológico.
A mídia, de modo geral, os
acompanha. Há aliados de peso nos salões de mais alta renda da nação,
onde é de bom-tom deplorar a "criminalização da pobreza"; é comum,
quando se reúnem, haver mais seguranças do lado de fora do que
convidados do lado de dentro.
A moda do momento, para todos, é
escandalizar-se com a proposta de redução da maioridade penal de 18 para
16 anos, em caso de crimes graves. Não se trata de uma questão de
ideologia, ou de moral. A punição pela prática de crimes tem,
obrigatoriamente, de começar em algum ponto, e 16 anos é uma idade tão
boa quanto 18 - é impossível, na verdade, saber qual o número ideal. Mas
o tema se tornou um divisor entre o bem e o mal - sendo que o mal,
claro, é a redução, já declarada "coisa da direita selvagem".
Alega-se
que o número de menores de 18 anos que praticam crimes violentos é
muito pequeno, e que a mudança não iria resolver o problema da
criminalidade no Brasil. Ambas as afirmações são verdadeiras e sem
nenhuma importância. Quem está dizendo o contrário?
O objetivo da medida
é punir delitos que hoje ficam legalmente sem punição - e nada mais.
Também é verdade que pessoas de 60 anos cometem poucos crimes, e nem por
isso se propõe que se tornem livres de responder por seus atos. Também é
verdade que os crimes não vão desaparecer com nenhum tipo de lei - e
nem por isso se elimina o Código Penal.
Talvez esteja na hora de
pensar que existe alguma coisa profundamente errada com a paixão pela
tese de que a desigualdade social é a grande culpada pela criminalidade
no Brasil. Segundo o governo, a redução da pobreza está passando por um
avanço inédito na história; nesse caso, deveria haver uma redução
proporcional no número de crimes, não é?
Mas o crime só aumenta. Ou não
houve o progresso que se diz, ou a tese está frouxa. Como fica?
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