terça-feira, 28 de julho de 2015

Censos dos últimos 50 anos mostram que avanços no acesso a educação e renda não diminuem disparidade racial no Brasil

 


Estudos baseados nos últimos seis censos do IBGE constatam diminuição da desigualdade social e desequilíbrios persistentes entre pessoas brancas e não brancas (pretas e pardas); fator racial se manifesta como freio da ascensão social
 


Vestibulandos no segundo dia de provas da segunda fase da Fuvest em junho de 2015: "negros são os que mais tardiamente se beneficiam de qualquer expansão da escolaridade"



O Brasil passou por um importante processo de redução de desigualdade entre 1960 e a primeira década deste século, com ganhos no acesso à educação, à renda e à maioria dos serviços públicos, entre eles a eletricidade e a coleta de lixo. No entanto, algumas desigualdades persistem expressivamente, como a cobertura de redes de esgotos, muito restrita às regiões mais ricas, a diferença de remuneração entre homens e mulheres e, principalmente, o acesso à renda e à educação entre brancos e não brancos (pretos e pardos).


Essas informações são parte de um retrato rico e complexo das mudanças pelas quais o Brasil passou no período mencionado, feito com base nos dados dos últimos seis censos demográficos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


O trabalho está reunido no livro “Trajetórias das desigualdades – Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos” (editora Unesp).



O plural do título indica um importante aspecto do estudo: a preocupação em não restringir a análise da desigualdade à dimensão das diferenças de renda. O grupo de pesquisadores ampliou a abordagem englobando outros parâmetros de desigualdades, como as existentes entre regiões do país ou entre gêneros, desdobradas em diversos aspectos da vida social – da religião à estrutura familiar, da migração à participação política.


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“A desigualdade é um fenômeno multidimensional”, diz a organizadora do livro, Marta Arretche, professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP –, local onde nasceu a iniciativa do estudo desses censos.


A pluralidade de dimensões pôde ser explorada graças à diversidade dos dados colhidos de 10 em 10 anos pelo IBGE, analisados agora com as tecnologias avançadas de tratamento de grandes volumes de informações. “Há nisso uma novidade importante: descrever uma combinação, no tempo, de processos que têm histórias diferentes”, diz Marta. Ela e outros 24 pesquisadores assinam 14 ensaios reunidos em cinco eixos centrais – participação política; educação e renda; políticas públicas; demografia; e mercado de trabalho.


Na extensa análise dos pesquisadores, fica clara uma forte queda de desigualdades no período estudado. Segundo Marta Arretche, isso contraria a avaliação surgida nos anos 1990 de que a democratização havia falhado em seu papel de trazer as soluções sociais esperadas. “Na introdução a um clássico das ciências sociais brasileiras, ‘Cidadania no Brasil’ [2001], José Murilo de Carvalho sintetizou interpretação compartilhada à época por diversos cientistas sociais”, escreveu ela. “Segundo Carvalho, o entusiasmo com a democracia revelara-se ingênuo. As conquistas no plano político – eleição direta em todos os níveis, liberdade de reunião e de expressão, sufrágio universal – não haviam se traduzido em resolução de problemas centrais de nossa sociedade.”



O estudo da grande massa de dados dos censos mostrou, ao mesmo tempo, que fatores de diminuição de desigualdades como a democracia e o acesso à educação não são suficientes para explicar desequilíbrios persistentes como o existente entre cidadãos brancos e não brancos. “A democracia é um instrumento importante de vocalização das desigualdades, mas não uma condição suficiente para saná-las”, diz Marta. Isso tem sido comprovado nas últimas décadas também na Europa, com o esgarçamento do padrão europeu de igualdade na classe média, apesar da continuidade dos regimes democráticos, antes vista quase consensualmente como garantidora de bem-estar para a totalidade da população.


Acesso à educação
No Brasil, embora as políticas públicas do período democrático tenham começado logo de início a “pagar a dívida social”, os números do Censo de 1990 mostram que o auge da desigualdade de renda se deu também no primeiro governo civil, do presidente José Sarney. Já os dados do Censo de 1960 revelavam baixa desigualdade, ainda que provocada pela homogeneidade da pobreza, num país rural em que apenas 20% dos jovens abaixo dos 15 anos estudavam até quatro anos.


As análises do capítulo sobre as desigualdades raciais, que se concentrou no acesso à educação de brancos e não brancos, precisaram refinar os dados em sucessivas abordagens para chegar a um quadro mais preciso da situação de pretos e pardos quanto à escolaridade – e em que sentido isso pode significar ou não oportunidades de ascensão social. “Um dos indicadores de que o ganho educacional é um fator limitado para explicar a diminuição da desigualdade racial é que, de modo constante, os negros são os que mais tardiamente se beneficiam de qualquer expansão da escolaridade”, diz Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e autora do capítulo em parceria com Ian Prates, doutorando no mesmo departamento.

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Fernando Frazão/ Agência Brasil

Manifestantes durante ato no dia da Consciência Negra de 2014 no Rio de Janeiro

O fenômeno que se verifica no acesso à educação é chamado tecnicamente de “saturação” e se manifesta por um mecanismo em camadas pelo qual os negros e pardos só alcançam igualdade com os brancos num determinado nível educacional quando o acesso se torna praticamente universal, o que aconteceu com o ensino fundamental na virada do século 20 (Censo de 2000). Os dados relativos ao ensino médio e ao ensino superior seguem a mesma tendência.



“O que ocorre é menos uma diminuição de desigualdades entre brancos e não brancos e mais uma expansão do ensino para todos os grupos, que também representa menor desigualdade”, diz a pesquisadora. Para ela, há uma tendência em desconsiderar o critério racial como fator explicativo das desigualdades a ponto de se deixar de coletar esta informação no Censo de 1970. Por isso, e pela constatação de que o acesso de negros ao ensino superior era praticamente nulo em 1960, os dados trabalhados pelos autores desse capítulo começaram pelo Censo de 1980.


Segundo uma projeção feita na primeira década deste século pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), citada no artigo por Márcia Lima e Ian Prates, se for mantido o mesmo ritmo de diminuição das desigualdades raciais de renda verificado entre 2001 e 2007, seriam necessárias três décadas para que os grupos branco e não branco tivessem, em média, a mesma renda. Mesmo assim, há fatores que podem atrasar esse futuro já longínquo, como crises econômicas duradouras e aumento de desemprego.


Outras análises de dados dos dois sociólogos mostram como a situação é sensível a variáveis relacionadas a prestígio social e estruturas resistentes. Quanto mais os estudos se aproximam do topo da pirâmide social, mais o fator racial se manifesta como freio da ascensão. Uma das abordagens da pesquisa adotou como critério de comparação dois grupos de formação acadêmica-profissional, um deles composto pelas “profissões imperiais”, aquelas com as maiores médias salariais em 1980: medicina, direito e engenharias.


Outro grupo reuniu as três menores médias salariais no mesmo ano: letras, história e ciências da educação. Os dados colhidos confirmaram que, além de menos negros ingressantes no primeiro conjunto, há diferenças salariais entre negros e brancos com o mesmo diploma e no mesmo grupo ocupacional. Outra abordagem revelou mais um aspecto da desigualdade racial: os filhos de pais negros com diploma superior têm menos chance de ingressar na universidade do que os filhos de brancos na mesma condição.


Herança social
Márcia Lima e Ian Prates se filiam à linha de interpretação teórica que “questiona se a explicação da herança social é suficiente para dar conta das diferenças sociais entre negros e brancos no Brasil”. Modelos teóricos tradicionais consideravam a expansão de acesso à renda e à escolaridade os únicos meios necessários para terminar com a disparidade racial.


Para os pesquisadores, no entanto, é preciso levar em conta a discriminação, um fator pouco mensurável por pesquisas quantitativas como as dos censos. Existem pesquisas qualitativas relevantes, segundo Márcia Lima, mas que fogem ao âmbito das informações coletadas pelos recenseamentos.


Mesmo assim, segundo a socióloga, há números que apontam claramente para a discriminação, como o fato de que há menos negros empregados no setor privado do que no serviço público, cuja seleção de ingresso costuma ser feita por concurso (isto é, “às cegas”). “Embora a discriminação racial seja proibida por lei, os critérios de aprovação por meio de entrevista de emprego têm uma carga subjetiva muito maior”, observa a pesquisadora.

Matéria original publicada na revista Pesquisa FAPESP.

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