A primeira vez que ouvi falar da indiana Vandana Shiva foi há cerca de dez anos, quando eu editava o "Razão Social* e uma repórter freelancer, Giselle Paulino, ofereceu-me a entrevista com ela. Giselle estava cursando o Schumacher College, na Inglaterra, e Vandana fora contratada para dar uma palestra aos estudantes. Prontamente aceitou o pedido de entrevista e eu, quando recebi o texto, prontamente fiquei bastante impactada com as palavras dela.
Vandana era e continua sendo uma ativista do meio ambiente, além de física de formação. Na década de 70, esteve entre as camponesas que se amarraram nas árvores das florestas do Himalaia para tentar impedir o desmatamento na região, movimento bem-sucedido que ficou conhecido como Chipko. Sua crítica mais feroz vai para as grandes corporações que se apossaram dos bens naturais como se estes a elas pertencessem:
“O ser humano esqueceu-se que a água vem da chuva e a comida vem do solo. Passamos a acreditar que a água e nosso alimento são produtos de uma corporação. As empresas querem tomar o lugar da terra, esse sistema vivo ao qual chamo de Gaia. Elas não são criadoras, são exploradoras. É hora de perceber que tudo o que nos mantém vivos vem da terra e não das empresas”, disse ela à repórter na entrevista que publicamos no dia 6 de outubro de 2006.
De lá para cá, passei a acompanhar de perto o trabalho de Vandana Shiva. No filme documentário “Zugzwang”, dirigido por Duto Sperry em 2009, ela foi uma das entrevistadas e não poupou o sistema econômico por ter ajudado a espalhar uma ideia falsa de desenvolvimento e a definir a cultura não ocidental como subdesenvolvida.
“Estamos em uma situação em que a escassez de alimentos está sendo sentida por todos devido ao aumento de preços mas as causas estão concentradas em poucas mãos. A globalização econômica permitiu a ganância e a destruição. A vida tem um sentido maior do que isso”, disse ela.
Há três décadas, Vandana Shiva ajuda a manter a fazenda Navdanya, no norte da Índia, cujo objetivo maior é defender a soberania alimentar. O que significa, entre outras coisas, impedir que as grandes corporações entrem em territórios indianos para patentear sementes, degradando grande parte do território do país, inundando o mercado com importações e empurrando para o suicídio cerca de 300 mil produtores.**
Para Vandana Shiva, ainda existe um tempo para que se faça “Um novo pacto com o planeta”, título do artigo que tenho agora em mãos, escrito por ela e publicado na última edição impressa da revista “Resurgence & Ecologist”.
“A sobrevivência da humanidade depende deste pacto que seria baseado numa nova visão de cidadania planetária. Um pacto baseado em reciprocidade, cuidado e respeito. Baseado em tomar e devolver, em dividir os recursos do mundo de maneira equitativa entre todas as espécies vivas. Ele começa quando se percebe o solo como uma entidade viva, a Terra Viva, cuja sobrevivência é essencial para todos nós. O futuro será cultivado a partir do solo, e não mais do mercado global de finanças fictícias, consumismo e pessoas jurídicas. Precisamos sair deste ponto de vista corporativo para outro que tenha o centro na família Terra. Onde quer que estejamos neste planeta, o solo é nossa base. A Terra é nossa casa. Nós precisamos recuperar isto da manipulação e da ganância das corporações e cuidar disso, juntos”, escreve Vandana Shiva.
Este “Pacto com o Planeta” proposto pela indiana que criou o primeiro dos atuais 122 bancos de semente comunitários no seu país, tem dez pontos principais:
1 – No solo vivo está a prosperidade e a segurança de uma civilização. Na destruição deste solo está a destruição desta mesma civilização;
2 – Nossas sementes e biodiversidade, nossos solos e água, nosso ar, atmosfera e clima são bens comuns;
3 – Liberdade de sementes e biodiversidade é o primeiro passo para se ter alimentos também livres e resiliência climática;
4 – Agricultura industrial globalizada é a maior contribuição para a crise climática;
5 – Sistemas de alimentos locais, agricultura em pequena escala e ecológica podem alimentar as pessoas e esfriar o planeta;
6 – O “livre comércio” é uma ameaça para o planeta e para as nossas próprias liberdades;
7 – Economias locais protegem a Terra, dão mais sentido ao trabalho, nos abastece e nos causa bem-estar;
8 – Participação e democracias vivas são o primeiro fundamento da Terra democrática;
9 – Somos membros de uma mesma comunidade chamada Terra, na qual todas as espécies, pessoas e culturas têm direitos e deveres;
10 – Vamos criar jardins de esperança em todos os lugares.
Essas são as soluções, alerta Vandana Shiva, para a crise climática, para a crise hídrica e para a crise alimentar que se está vivendo hoje, quando cerca de 800 milhões de pessoas ainda passam fome no mundo. É um texto otimista, escrito por uma mulher que compra briga também contra a Revolução Verde, que nos anos 70 espalhou a ideia de que o uso de agrotóxicos e pesticidas é fundamental para se ter boas safras. A fazenda que dirige é também uma espécie de escola para ensinar pequenos agricultores a se habituarem ao cultivo orgânico, sem uso de tais venenos. E tem dado certo.
Ouvir e ler Vandana Shiva é um bálsamo a ouvidos e olhos que acreditam em outras possibilidades. Seus escritos fornecem um bom material para reflexões sobre o momento que estamos vivendo. No artigo “Resources” (“Recursos”) que ela escreveu para o livro “The Development Dictionary (Ed. Zed Books), organizado por Wolfgang Sachs, Vandana Shiva lembra a necessidade de se realinhar os modelos de produção com a lógica da natureza, não com a lógica dos lucros, da acumulação de capital e retornos de investimentos.
“Desenvolvimento deveria ficar restrito pelos limites da natureza. No entanto, um outro – e perigoso – significado está sendo dado à sustentabilidade. Diz respeito não à sustentação da natureza, mas do desenvolvimento em si. Sustentabilidade, assim, quer dizer assegurar o fornecimento contínuo de matérias primas para a produção industrial”, escreve Vandana Shiva.
*Suplemento sobre sustentabilidade publicado no jornal “O Globo” de 2003 a 2012
**Informações pinçadas do site Navdanya
Foto: Elke Wetzig/Creative Commons
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