terça-feira, 29 de agosto de 2017

Na Mata Atlântica, ninguém é amigo da onça


Por Fabio Olmos
Preocupadíssima com os 12 barcos e 50 turistas que estão me olhando. Foto: Fabio Olmos.
Cenas do Pantanal que gostaríamos de ver na Mata Atlântica. Foto: Fabio Olmos.


Durante meu mestrado, entre 1988 e 1990, trabalhei na então Fazenda Intervales (tornada parque estadual em 1995). Recém transferida do finado BANESPA para a recém-criada Fundação Florestal, sob a administração do banco a fazenda era uma unidade de conservação de fato, apesar do histórico de exploração de palmito para alimentar uma fábrica própria.


Meu caderno de campo registra conversa com o sr. Lima, no dia 24 de abril de 1988. “A área total é de 38.000 ha... A propriedade é guardada por 28 vigilantes. Há 26 anos não se caça na fazenda”. O perímetro da propriedade era protegido por bases como Quilombo, Saibadela, Funil, Guapiruvu, etc. para manter caçadores, grileiros e ladrões de palmito afastados.


Os muitos vestígios e encontros com onças-pintadas, antas, porcos-do-mato, muriquis, jacutingas e outras raridades, apoiavam o que dizia Lima. Intervales, colada nos parques estaduais de Carlos Botelho (por décadas protegido por um diretor linha dura e,como resultado, cheio de bichos), Turístico do Alto Ribeira (PETAR) e na estação ecológica de Xitué parecia a Mata Atlântica como deve ser. Um lugar onde você anda na floresta e vê bichos, e não a triste situação de floresta vazia que ocorre em lugares como Picinguaba.


Em uma das primeiras visitas nos mostraram os restos de uma mula morta por uma pintada. O gato usou a técnica padrão da espécie, perfurando o crânio com seus caninos. Também vi pegadas de uma pintada junto à piscina de uma das hospedarias. E, às vezes, encontrava as pegadas de uma onça sobre as minhas quando retornava pela mesma trilha. Um gato que, curioso mas invisível, me seguia.
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Preocupadíssima com os 12 barcos e os 50 turistas que estão me olhando. Foto: Fabio Olmos


Mas nunca vi uma onça-pintada em Intervales. Ou na Mata Atlântica. Só tive sorte quando visitei o Pantanal e, percorrendo a Transpantaneira à noite no banco traseiro de um Fusca, os faróis iluminaram um gato sentado no meio da estrada. Que nos olhou com o desprezo que só um gato pode expressar antes de desaparecer na mata.


Anos mais tarde, como milhares de outros turistas, tive a oportunidade de visitar as hoje famosas onças da região de Porto Jofre, no Pantanal Norte. O turismo de observação de onças é uma faceta de uma era onde experiências se tornam mais valiosas que compras,onde um gato vivo vale muito mais que um gato morto.


Vendo os gatos tranquilos na beira do rio enquanto dezenas de turistas tinham orgasmos fotográficos, me ocorreram duas coisas.


Décadas depois de países de primeiro mundo como o Quênia, Tanzânia, África do Sul, Índia e Nepal criarem em seus parques uma indústria turística baseada na observação de seus grandes gatos e fauna associada, finalmente temos um turismo baseado nas nossas onças-pintadas.


Mas será que algum dia teremos parques como os daqueles países?
Além de estrangeiros entre os visitantes, também havia muitos paulistas, como eu. O que me faz pensar porque nós não podemos ver cenas como aquelas às margens de rios paulistas como o Ribeira de Iguape, Paranapanema, Paraná ou Tietê.

A resposta é nossa longa guerra contra os grandes gatos.


O passado glorioso do jaguar
"Onças precisam é de florestas com populações saudáveis de suas presas e extensas o suficiente para que elas mesmas possam ter populações saudáveis. Para isso as onças só precisam que as pessoas não façam coisas. Que parem de matá-las e de competir com elas por comida e espaço."
 
 
Até 11.700 anos atrás as Américas humilhariam qualquer safari africano atual. Era um mundo de tigres-dentes-de-sabre, gatos-cimitarra, leões gigantes, guepardos, ursos de quase uma tonelada, lobos variados, dholes, pumas e onças-pintadas. A maioria foi extinta após a chegada de humanos,há pelo menos24 mil anos. Restam os pumas Puma concolor (ou suçuaranas, onças-pardas, onças-vermelhas...) e as onças-pintadas Panthera onca (ou jaguar, jaguaretê, etc).


As pintadas já ocuparam quase todo a América, do Oregon à Patagônia. Durante o Pleistoceno, a Panthera onca augusta, grande como as onças do Pantanal, ocorria em boa parte dos Estados Unidos. Já em tempos históricos,pintadas viviam no que hoje é a Califórnia, Arizona, Novo México, Arizona, Colorado e Texas. Todas foram mortas por brancos e índios.


Hoje, os jaguars dos Estados Unidos somam três indivíduos, todos machos e imigrantes ilegais vindos do México. O mais famoso, El Jefe, é conhecido por comer ursos.
Três machos não formam uma população e será preciso introduzir fêmeas. Um plano para recuperação da espécie foi lançado em 2016 não fala disso e há oposição de ruralistas – que ajudaram a eleger Trump --  alguns argumentando que a espécie não é nativa.


Se parece estúpido, não é caso único. “Nativos” havaianos se opuseram à translocação de focas-monges-havaianas (que eles ajudaram a quase extinguir) com o mesmo argumento.
Ao sul, as pintadas já ocorreram do México até o norte da Argentina, do litoral até os Andes. Essa pode não ser a história toda, pois exploradores dos séculos XVI e XVII relataram encontros com “tigres” e “guaguares”no extremo sul do Chile e Patagônia argentina. Mesma região onde existia a (pré)-histórica Panthera onca mesembrina.


Na América Latina, as pintadas foram eliminadas de El Salvador e do Uruguai; o limite sul de sua distribuição original foi deslocado em mais de mil km para o norte e pelo menos 40% do habitat antes adequado desapareceu.


No Brasil, especula-se que a população efetiva da espécie esteja entre 15 e 30 mil indivíduos, a maior parte na Amazônia. Este número, que não lotaria um estádio de futebol, continua caindo.


O fim das pintadas, do longo atrito com populações ameríndias ao extermínio pelos pecuaristas, ruralistas, povos tradicionais variados e caçadores “esportivos”, é parte do contínuo massacre dos grandes predadores como leões, tigres, leopardos e guepardos promovido por nós humanos. Não contentes em matá-los, também exterminamos as presas de que dependem.


E com isso perdemos algo mais que bichos bonitos ou linhagens evolutivas com milhões de anos. Perdemos experiências que vão além das palavras e tornam a vida algo maior. Se fracassamos em coexistir com os grandes predadores não somos melhores que fungos, presos à uma necessidade inata de nos multiplicar e apodrecer o próprio lar.


Destronada e rumo à extinção na Mata Atlântica
A Mata Atlântica já foi 100% ocupada por onças-pintadas. Lugares com “jaguar” no nome mostram isso, assim como testemunhos como o do Padre Anchieta. Ele conta que, em 1592, a atual Ilhabela, litoral norte de São Paulo, não tinha gente,mas muitos “tigres”. O que implica a presença de presas hoje extintas como porcos-do-mato, antas, veados, etc.


Em 1897, Herman von Ihering conta que a última onça-pintada em Ilha bela chegou ali a nado,vinda do continente, e foi morta a pauladas ao chegar, exausta, à praia. Testemunho da relação tradicional entre pessoas e onças.


Trabalho de 2016 mostra a situação crítica das onças-pintadas na Mata Atlântica, com menos de250 pintadas adultas no bioma. No maior bloco contínuo de floresta, o das serras do Mar e Paranapiacaba entre RJ, SP e PR, uma estimativa era de 41 indivíduos.Número que talvez só seja maior do que o de políticos honestos no país.


Em toda Mata Atlântica as pintadas perderam 85% de seu antigo habitat. Do que sobrou, as onças ocupam apenas 18% do habitat considerado adequado para elas. Estas áreas que deveriam ter onças, mas estão vazias delas e de suas presas, incluem unidades de conservação como o Parque Nacional do Monte Pascoal – detonado pelos Pataxó -, o da Serra dos Órgãos e o da Serra da Bocaina (onde ainda ocorria na década de 1980).


Sem terra e sem comida
" Por quê há tão poucas onças no filé da Mata Atlântica? Simples: as pessoas continuam matando as pintadas, como aconteceu em março deste ano. Caso que mostra tanto a inoperância da fiscalização ambiental como quão ridículas são as punições para este tipo de crime."
 
 
A Mata Atlântica teve suas populações animais massacradas por séculos de caça, desmatamento e degradação. O que temos hoje são os resquícios do que deveria existir, incluindo as áreas protegidas.
Para um predador de topo, viver em um mundo onde suas presas são raras (quando existem), implica em andar muito. Não é surpresa que as onças da Mata Atlântica tenham as maiores áreas de vida dentre as estudadas. Também não é surpresa que a combinação de florestas vazias de presas e ter que andar muito resulta em onças morrendo nas mãos das pessoas, seja a bala ou atropeladas.


São Paulo abriga boa parte da Mata Atlântica.Mas a espécie foi extinta de parques como a Ilha do Cardoso (e Ilhabela) e na maioria das UCs. Resta um punhado de indivíduos. Por exemplo, apenas 3 no Núcleo Santa Virgínia do Parque estadual da Serra do Mar e de 1 a 3 nomosaico de áreas protegidas da Juréia.


É bem possível que no conjunto de UCs da Serra do Mar, Paranapiacaba e litoral haja menos de 20 pintadas, com pífios 0,66 indivíduos/100 km2 onde a espécie é mais “comum”, o conjunto dos parques Intervales, Carlos Botelho e PETAR.Em outras palavras, quatro vezes menos onças-pintadas do que as 2 e pouco por 100 km2 que seria razoável esperar.


Por quê há tão poucas onças no filé da Mata Atlântica? Simples: as pessoas continuam matando as pintadas, como  aconteceu em março deste ano. Caso que mostra tanto a inoperância da fiscalização ambiental como quão ridículas são as punições para este tipo de crime.


As mortes ocorrem mesmo nas áreas protegidas onde a fauna deveria estar mais segura. Um dos problemas é o furto de palmito por quadrilhas organizadas, que está associado à caça.


Outro são as pessoas que moram dentro de áreas “protegidas” e continuam com seus costumes tradicionais. No mosaico da Juréia sabe-se que 4 onças foram mortas em 12 anos, duas por caçadores e duas como retaliação por matarem porcos domésticos.


História repetida em Intervales. Onças, sem comida porque pessoas eliminaram suas presas, são mortas por atacarem animais domésticos dentro do que deveria ser um parque. E 54% da população do lugar achava que exterminar os felinos seria a melhor solução.


Preterida
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Sou fofa, não sou? Foto: Fabio Olmos


Isso ilumina um problema de fundo. Aquelas comunidades ditas amigas da natureza ocupam terras devolutas (ou seja, de todos nós) que eram parte de Intervales, mas lhes foram dadas por serem consideradas quilombolas. Houve consulta pública? Estudo de impacto ambiental? Condicionantes? A prioridade é conservação ou reforma agrária?


Não foi um evento único. Ali do lado, o núcleo Quilombo foi entregue a um grupo Guarani que o invadiu em 1999 e arrasava a fauna e flora. Da última vez que visitei soube que “a ordem da secretaria é nem chegar perto”. Mais um sintoma de como o a coisa degringolou da década de 90 para cá.


Além de serem mortas, competirem com as pessoas por comida e terem seu habitat destruído, as onças ainda têm as áreas protegidas que deveriam ser seu lar - e de toda a sociedade - privatizadas para quem não é exatamente amigo da onça.


Esse é um dos exemplos de como quem deveria proteger nossa herança natural pode perder o rumo. Mas não o único. Um dos melhores pedaços da Mata Atlântica paulista é a Fazenda Nova Trieste, vizinha de Intervales. Que quase virou um parque estadual.


Isso felizmente não aconteceu. Olhando a situação dos parques paulistas é fácil ver como a natureza pode ser melhor servida por mãos privadas interessadas em conservar, ainda mais quando há no governo quem queira transformar o que já é protegido em área quilombola, o que não é sinônimo de conservação. Como sabem bem as onças.


Onças não podem ir à escola ou à faculdade para se tornar algo diferente do que seus pais e avós foram. Elas não podem escolher uma nova profissão ou abrir um negócio. Elas não podem escolher ser vegetarianas. Elas não votam. Mas elas também não precisam de bolsas isso ou aquilo, cestas básicas, luz para todos ou aposentadorias rurais.


O que elas precisam é de florestas com populações saudáveis de suas presas e extensas o suficiente para que elas mesmas possam ter populações saudáveis. Para isso as onças só precisam que as pessoas não façam coisas. Que parem de matá-las e de competir com elas por comida e espaço.
Gatos são gatos e conviver com grandes predadores em um mundo lotado é complicado, mas possível se nós quisermos. Existe muito conhecimento sobre como minimizar conflitos, como a predação de animais domésticos e riscos para as pessoas.


Na verdade, ataques de onças a pessoas são, na vastíssima maioria, resultado de gatos se defendendo de pessoas (e cães) que querem matá-las, ou pura imprudência. No mato, é muito mais perigoso encontrar uma pessoa do que uma onça. As estatísticas me apoiam.


"Em cana"
Grandes gatos são adaptáveis o suficiente para viver em áreas periurbanas, como os pumas de Los Angeles e da Grande São Paulo. Eu gostaria de ver famílias de onças-pintadas paulistanas residentes, não só relatos de visitantes.


Há os casos onde pessoas se mudaram e devolveram os espaços para a natureza, o que pode ser bom para as pessoas e os gatos.  E países que estão trazendo seus grandes predadores de volta, de leopardos a leões, dando um final mais feliz a estórias como a de Lady Liuwa (que descanse em paz).
São os bichos que dizem se uma UC é bem manejada ou não. Talvez seja esperar muito que a secretaria de meio ambiente paulista adote a meta quadruplicar a população de onças no Vale do Ribeira e Serra do Mar e criar um turismo similar ao que existe no Pantanal. Talvez algum dia apareça um governador amigo da onça com a coragem para isso.


No fim, talvez sejam as más práticas humanas que permitirão a recuperação das onças-pintadas. O agronegócio paulista criou vastas áreas com poucas pessoas, majoritariamente ocupadas por canaviais e plantações de cana que são habitat para javalis e java porcos. Um mosaico de florestas naturais e plantadas pode criar condições para que as onças recolonizem a região. Alguma reflorestadora ou usina se anima a ser amiga da onça?


Será irônico se o futuro for de uma Mata Atlântica socioambiental, cheia de gente e vazia de onças. E estas encontrarem seu refúgio em meio a eucaliptos e canaviais

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