Razão animal, também?
Defendemos os animais por conta da senciência e silenciamos sobre a racionalidade deles. Ao defendermos sua senciência defendemos sua racionalidade específica.
04/03/2018 às 18:30
Por Dr. phil. Sônia T. Felipe
Sim. A racionalidade nos não humanos ainda é tema quase tabu nas discussões filosóficas ético-animalistas internacionais.
Mas os filósofos dos quatro primeiros séculos da nossa era (Sêneca, Ovídio, Porfírio, Plutarco), seguindo o que ensinara Aristóteles, que viveu, por sua vez, quatro séculos antes deles, reconheceram a existência da senciência nos outros animais e também da racionalidade neles.
Mas o termo razão, na modernidade, foi sequestrado para preservar a designação de habilidades neurolinguísticas calculadoras, atribuídas exclusivamente à espécie ‘Homo sapiens sapiens’. O que os filósofos modernos, especialmente Descartes, não nos contaram, ou nem se deram ao trabalho de investigar, é que a base da racionalidade humana são as emoções, razão pela qual o neurocientista e filósofo Antonio Damasio escreveu seu primeiro livro intitulando-o, justamente, Descartes’ Error (traduzido no Brasil, O erro de Descartes).
Desde então, ele já escreveu outros, todos brilhantes, sempre mostrando para nós o mistério da consciência: The Feeling of What Happens; Looking for Spinoza; Self Comes to Mind; e, neste mês, The Strange Order of Things, que ainda estou a ler, já quase finalizando o trabalho.
Pessoalmente, defendo que cada espécie animal tem seu tipo de racionalidade, incomensurável, quer dizer, não devemos comparar nem hierarquizar racionalidades, pois elas existem somente para servir ao propósito de um tipo ou espécie de vida, e, para este tipo ou espécie de vida, a única racionalidade que lhe faz falta, se faltar, é a própria, jamais a das outras espécies, razão pela qual forçar animais a fazerem cálculos numéricos, executar operações linguísticas ou aritméticas, é experimentação que não serve a qualquer propósito da vida daquele animal.
Se queremos estudar a consciência, a inteligência, a linguagem e a racionalidade de animais de outras espécies (assim o fez o etólogo alemão Heinz Meynhardt, estudando javalis, em meados dos anos 1970, por mais de dois anos, no ambiente deles, relatado no livro, Mein Leben unter Wildschweinen, em português, ainda sem tradução, seria, Minha vida com javalis), é preciso fazer isso nos moldes daquele tipo de mente, não forçando aquelas mentes a se submeterem a padrões que são típicos da mente da nossa espécie.
Somos racionais, também, nós humanos. Contudo, a base sobre a qual assentamos nossa racionalidade, que é a consciência, são as emoções. São elas que nos dão a medida certa para avaliar e calcular se o que fazemos aos outros será bom ou ruim a eles, e se o que nos fazem é bom ou ruim a nós. Também são as emoções que nos informam se está baixo ou alto o nível do bom ou do ruim do que fazemos a nós mesmos. Pensamos que quando pensamos somos só razão calculadora, instrumental. Engana-se toda gente, com Descartes. Descartes tem atenuantes para seu engano, pesquisou e escreveu há quase 400 anos, quando não havia neurociência nem quem o pudesse ajudar a decifrar o mistério da consciência e da linguagem.
Só pensamos, quer dizer, raciocinamos, algo que já foi filtrado por uma tela ou tecido de emoções, já foi medido e julgado como “útil pensar” ou “inútil pensar”. Tal decisão requer o sentido de “valência” (Antonio Damasio fala de ‘valence’, em inglês, na ausência de melhor tradução, ouso usar ‘valência’ como equivalente daquele), quer dizer, de algo que vale a pena ou não vale a pena. Tal tipo de validação só pode ocorrer sob o comando direto de uma emoção positiva ou negativa, ou orientada por memórias ‘valenciadas’ de experiências passadas. O que não passa nesta tela emocional nos recusamos a pensar.
Por isso mesmo é tão difícil mudar a estrutura mental do pensamento, pois ele está fincado em crenças com memórias emocionais intensas, o fogo sem o qual nada estaria gravado neste arquivo, formando a subjetividade, a singularidade e a irrepetibilidade de cada mente animal.
É preciso pensar muito sobre a emocionalidade da racionalidade humana e sobre a racionalidade da emocionalidade dos animais outros. E por serem emocionais os animais, todos, sencientes, aumenta nossa responsabilidade pelos atos que possam marcar a biografia deles de modo negativo, doloroso, sofrente ou mesmo acabar com sua vida, pois marcas contínuas, estressantes, atrofiam a capacidade mental dos seres sencientes, não apenas dos humanos submetidos à escravização, à discriminação, ao assédio econômico, estético, político, religioso. No tormento, nenhuma racionalidade se aguenta, nenhuma inteligência e sensibilidade floresce. Animastê!
[Sônia T. Felipe é autora dos livros: Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer na defesa dos animais (esgotado); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas; Galactolatria: mau deleite – implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino; Acertos abolicionistas: a vez dos animais]
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