A agonia do Cerrado
As terras do segundo maior bioma do Brasil viraram um enorme
celeiro agrícola, à custa da perda de metade de sua cobertura vegetal
nativa. O prejuízo pode se agravar ainda mais se o desmatamento da
região não for contido
Mas essa pujança tem um preço. O agronegócio se estabeleceu abrindo a fronteira agrícola, desmatando e degradando vastas áreas. Só entre 2013 e 2015, por exemplo, foram destruídos 18.962 km2 da região. Isso significa que, a cada dois meses, a vegetação nativa de um território equivalente ao da cidade de São Paulo (1.521 km2) desaparece.
O processo que culminou na atual situação vem de longe. As vastidões do Cerrado começaram a ser ocupadas no século 18, com a mineração de ouro e pedras preciosas. Junto com essa atividade começaram a surgir os primeiros povoados. Esgotadas essas riquezas, os habitantes da região tiveram que descobrir outra forma de ganhar a vida. A alternativa que vingou foi a pecuária extensiva, principal atividade econômica daquelas paragens até praticamente o fim da década de 1950.
Proteção pequena
Com a construção de Brasília, na virada dos anos 1950 para 1960, vieram as estradas e ferrovias, pelas quais chegaram os migrantes. Vinham atraídos pelas políticas agrícolas desenvolvimentistas do governo, que queria integrar aquele território ao restante do país. Criaram-se assim as condições para a expansão da agricultura comercial. O resultado disso em termos ambientais pode ser medido em números. “O Cerrado já perdeu 50% de sua cobertura vegetal nativa”, diz a bióloga Mercedes Bustamante, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). “Os remanescentes estão fragmentados e sob pressão de conversão nas novas frentes do desmatamento. As áreas de proteção integral cobrem um percentual muito baixo do bioma e não representam sua variabilidade espacial.”Cristiane Mazzetti, especialista do Greenpeace em Desmatamento Zero, lembra que a taxa anual de desmatamento do bioma superou a da Amazônia nos últimos dez anos. “Em 2014 e 2015 ela ficou próxima de 9.500 km2/ano, enquanto a do Norte para os mesmos anos foi de 5.012 e 6.207 km2 respectivamente”, informa.
A situação é mais grave no Matopiba, região na confluência dos estados de Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia. “Grandes áreas de lá estão sendo perdidas para abrir espaço para pastagens e plantações de soja”, diz Cristiane. “Ao manter esse ritmo de destruição, o Cerrado segue o mesmo caminho da Mata Atlântica, onde restaram apenas 10% da sua formação original, gerando assim a perda de serviços ambientais fundamentais para toda a sociedade.”
Conflito prejudicial
Para o geógrafo Eguimar Felício Chaveiro, da Universidade Federal de Goiás (UFG), o conflito entre a agricultura e a conservação ambiental tem trazido grandes prejuízos para o bioma. “Ele tem potencial para diversos tipos de usos, mas o modelo de desenvolvimento adotado tem destruído parte considerável dessa riqueza, transformando-a em pobreza”, critica.“Há, inclusive, uma contradição: transformam o Cerrado em marca, mas o destroem; enaltecem seu valor, mas consagram um modelo de desenvolvimento econômico que extingue parte de sua diversidade genética e cultural. Há problemas de erosão genética, de degradação ambiental de matas ciliares, repercutindo nos seus componentes hídricos. Já se vê o secamento de vários canais e a extinção de algumas espécies de animais, como o tatupeba.”
Segundo Mercedes, a falta de atenção comparada à dispensada a outros biomas do país é outro problema que a região tem de enfrentar. “Enquanto há uma preocupação internacional e nacional com o desmatamento na Amazônia, há pouca divulgação sobre o acelerado processo de degradação do Cerrado, que constitui a savana mais diversa do mundo e a origem de três grandes bacias hidrográficas brasileiras (Tocantins, São Francisco e Platina)”, lamenta.“Entender como ela – que apresenta zonas de contato com os principais biomas brasileiros (Pantanal, Amazônia e Caatinga) – funciona e divulgar esse conhecimento em nível nacional e internacional é urgente para reverter o processo atual de uso e ocupação e preservar os remanescentes de vegetação nativa.”
A situação se torna mais preocupante quando se sabe que, de acordo com os signatários do manifesto, é desnecessário que a agricultura e a pecuária continuem se expandindo sobre áreas naturais no Cerrado, pois há cerca de 40 milhões de hectares já desmatados no Brasil com aptidão para a expansão da soja – principal cultura agrícola associada ao desmatamento.
“Isso é suficiente para o atendimento das metas brasileiras de expansão produtiva de soja nos próximos 50 anos”, diz o documento. “O setor da soja já detém conhecimento suficiente para a expansão sobre zonas abertas, sendo esse o padrão nas demais regiões, como no bioma Amazônia e em outros locais do Cerrado fora do Matopiba.”
Estímulo para o aquecimento
Afora levar ao desmatamento e à degradação ambiental de grandes áreas, a ocupação do Cerrado pela agropecuária contribui para o aquecimento global, constatou a bióloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB). Ela pesquisa há vários anos os impactos das mudanças na cobertura vegetal e do uso da terra no bioma. Mercedes quer entender como a agropecuária no Cerrado contribui para o efeito estufa e o aquecimento global.
Segundo ela, esse bioma tem muito dióxido de carbono (CO2) fixado no solo, sobretudo nas raízes de sua vegetação, muito profundas devido à escassez de água perto da superfície. “O Cerrado é como uma floresta de cabeça para baixo. Há mais biomassa vegetal enterrada no solo do que na parte aérea”, afirma. De acordo com Mercedes, ao mexer nisso, muito carbono e outros gases-estufa, como o metano, são lançados no ar. Só as queimadas liberam cerca de 17 toneladas de carbono por hectare por ano.
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