Farinha de grilo e barrinhas de besouros: estes brasileiros apostam em insetos como alimento
Essas caraterísticas têm levado a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) à valorização de
um tipo de alimento que enfrenta grande resistência cultural no
Ocidente: os insetos, cuja ingestão ganha o nome de “entomofagia”.
Pelo mundo, no entanto, surgem exemplos de que esta resistência –
apontada como um obstáculo pela própria FAO em um relatório de 2013, um
marco na tendência da entomofagia – está diminuindo. Em maio, a rede
Carrefour lançou na Espanha uma linha de dez produtos com insetos entre
os ingredientes, como granola e macarrão.
Startups também vêm surgindo nesse nicho, como a Bugfoundation, da
Alemanha, que produz hambúrgueres de larvas, ou a Chirps, nos EUA, que
vende biscoitinhos salgados de grilos. Há até uma vertente do veganismo
que inclui a ingestão de insetos, o chamado entoveganismo.
Pelo Brasil, há também pesquisadores e empreendedores que apostam na
nova onda dos insetos, preparando produtos como barras proteicas de
larvas de besouro e grilos banhados em chocolate. Para eles, a
entomofagia vai muito além de experiências pontuais exóticas e pode, na
verdade, vir a ser um mercado de grande escala – mas nisso, dizem, o
país está atrasado.
Se no mundo, de acordo com a FAO, insetos fazem parte do cardápio de
cerca de 2 bilhões de pessoas, o Brasil não tem a tradição de comer
insetos como, por exemplo, países da Ásia.
Mas, por aqui, há algumas tradições pontuais. É o caso do consumo de
formigas içás ou tanajuras – que já ganharam até festivais em Tianguá,
no Ceará, ou Silveiras, em São Paulo. Ou ainda do consumo das formigas
maniwara na Amazônia, que remete a tradições indígenas do Alto Rio
Negro.
Larvas de bicho-da-seda em prato típico da Tailândia; em países ocidentais, a entomofagia enfrenta resistência cultural
Para Eraldo Medeiros Costa Neto, etnobiólogo que se dedica há anos ao
estudo sobre a relação entre humanos e insetos, a questão cultural é
ainda a barreira que impede o Brasil de chegar ao seu potencial na
entomofagia.
“Grande parte da população associa os insetos a pragas, a algo nojento.
Mas uma vez que essa barreira cultural seja ultrapassada, o Brasil
poderia ser uma potência por suas riquezas naturais”, diz Neto,
professor na Universidade Estadual de Feira de Santana. “Ainda temos
pouco conhecimento sobre insetos comestíveis no Brasil. É preciso fazer
uma espécie de inventário e muita pesquisa”.
Como no mundo todo, porém, os brasileiros podem estar comendo insetos
sem saber: um dos corantes mais usados na indústria, o carmim, é feito a
partir de insetos chamados cochonilhas.
O zootecnista Gilberto Schickler mostra prato com insetos
‘Em 20, 30 anos, acredito que produtos feitos com insetos estarão em grande escala nos supermercados’, aposta
O zootecnista Gilberto Schickler se dedica há alguns anos a expandir a
entomofagia. Empreendedor na área desde os anos 2000, ele oferece hoje
consultoria e cursos para interessados na criação de insetos – desde a
sua alimentação ao abate e conservação.
Ele é sócio também na Hakkuna, uma startup que se prepara para lançar no
mercado, nos próximos meses, uma barra de proteínas feita com farinha
de grilos-pretos, comuns no Brasil. Após passar por testes e uma
incubadora, o produto vai recorrer a um formato comumente escolhido para
driblar resistências a esse tipo de alimento.
“Há duas formas de apresentar o inseto. Um é por inteiro, o que gera
sentimentos de repulsa à curiosidade. Nós optamos por trabalhar com os
grilos triturados, em um tipo de farelo mais grosseiro”, explica
Schickler, destacando que o público-alvo prioritário está no ramo
fitness.
“Em 20, 30 anos, acredito que produtos feitos com insetos estarão em
grande escala nos supermercados. Mas trabalhamos para que este segmento
seja lucrativo e viável no presente. Se não for um negócio para hoje,
ele não vai acontecer: já estamos muito atrasados em relação a outros
países.”
Proteínas: em quantidade e qualidade
No ramo da pesquisa, a doutoranda Ariana Vieira Alves também está
prestes a concluir a elaboração de uma barra proteica feita da larva de
um besouro do gênero Tenébrio.
“É um inseto de fácil criação, com um ciclo de vida curto, tornando-o
bastante viável para a produção”, aponta Alves, que estuda tecnologia
ambiental na Universidade Federal da Grande Dourados.
“Diferente de outras carnes como a de boi, você consegue modificar
bastante (a constituição nutricional) o inseto dependendo do que ele
come, onde vive. Sempre digo que o inseto é como um elo entre o animal e
o vegetal: é rico em proteínas como o primeiro, não só no teor mas na
qualidade, só que com menos gorduras saturadas”.
FAO destaca propriedades nutricionais dos insetos
Segundo a FAO, os insetos têm uma grande capacidade de “conversão
alimentar”: conseguem transformar 2 kg de alimento em 1 kg de massa
corporal, enquanto bois fazem isso em uma escala de 8 kg para 1 kg.
“Insetos são fontes de nutrientes e proteínas de alta qualidade se
comparados à carne bovina e ao pescado (…) São particularmente
importantes como suplemento alimentar para crianças que sofrem de má
nutrição, pois a maioria das espécies tem alto teor de ácidos graxos
(comparáveis ao pescado). Também são ricos em fibras e micronutrientes
como cobre, ferro, magnésio, manganês, fósforo, selênio e zinco”, diz o
relatório da entidade.
A agência da ONU destaca também que os insetos produzem menos gases de
efeito estufa do que a pecuária convencional, podem se alimentar de
resíduos orgânicos e assim reduzir a carga deste tipo de descarte, além
de exigir extensões de terra muito menores na criação.
Associação e congresso para representar a entomofagia
‘O Brasil poderá ser um dos celeiros da entomofagia’, aposta Oliveira
Representantes do setor apontam que o consumo de insetos por humanos
conta com o pontapé inicial de um segmento mais desenvolvido, o da ração
feita com este tipo de alimento para animais, como peixes ornamentais e
pássaros.
Mas, para os entrevistados, um passo importante ainda está por vir: uma
regulamentação específica da entomofagia voltada para humanos. Este é um
dos objetivos que motivaram a criação da Associação Brasileira de
Criadores de Insetos, segundo explica um de seus fundadores, o biólogo
Casé Oliveira.
“A legislação não proíbe, mas isto (a falta de regulamentação) acaba
impedindo que o mercado dê um salto além de produções em pequena escala.
Enquanto fica na escala artesanal, o que vemos é monopólio e preços
altos”, aponta Oliveira, que trabalha com o tema fazendo palestras e
recebendo convidados para uma “entoexperiência”, um menu gastronômico
composto de insetos. “O Brasil poderá ser um dos celeiros da
entomofagia, pelo simples motivo do nosso clima ser muito propício para
isso.”
Associação Brasileira de Criadores de Insetos foi criada, entre outras razões, para estimular regulamentação no setor
Oliveira e entusiastas da área planejam, para novembro de 2019, o
primeiro congresso brasileiro sobre a “antropoentomofagia” – o consumo
humano de insetos e seus derivados.
Por e-mail, a Anvisa explicou que “considerando que o consumo de insetos
não possui histórico de uso como alimentos pela população brasileira,
as empresas interessadas em utilizar insetos na produção de alimentos
devem solicitar junto à Anvisa avaliação da sua segurança”.
“Caso seja demonstrado que as condições e finalidade de uso desses
insetos na produção de alimentos é segura para o consumidor, seu uso é
autorizado”, completa.
Ainda segundo o órgão, no período em que a agência recebeu propostas de
temas a serem eventualmente avalidos em sua agenda regulatória para os
anos de 2017 a 2020, não houve sugestões referentes ao consumo de
insetos por humanos.
Quais riscos esse tipo de alimento pode apresentar?
Mas, segundo a FAO, nas condições adequadas, não existem casos
conhecidos de doenças transmitidas com a ingestão de insetos por
pessoas.
Segundo Schickler, a entomofagia pressupõe o consumo de insetos criados
em cativeiro, e não retirados livremente da natureza – o abate costuma
ocorrer com a inserção destes animais em água fervente, como feito com
mariscos.
No entanto, os insetos são maleáveis às condições do ambiente em que
estão, acumulando por exemplo pesticidas ou transmitindo agentes
biológicos danosos.
“
Os insetos precisam dos mesmos cuidados de produção que outros animais,
ambientes limpos, higienizados, com manutenção diária, cuidados
específicos de isolamento, cuidados com pragas, fungos, além de umidade e
temperatura controladas”, aponta o chef Rossano Linassi, que atua no
segmento e é professor no Instituto Federal Catarinense (IFC).
Ele destaca também a necessidade de atenção com alergias, principalmente
para aqueles que já têm esta sensibilidade com frutos do mar – que têm
composição química parecida.
Como o sushi?
O chef Rossano Linassi prepara quitutes
Linassi acredita em uma transição gradual na aceitação da entomofagia
Sob condições ideias, Linassi vê um campo inexplorado de gostos e
preparos para a entomofagia. Ele faz receitas que vão de grilos cobertos
com chocolate a omelete de tenébrios.
“Acredito que assim como ocorreu com o sushi há cerca de 20 anos, o
inseto possa ser incorporado aos poucos à dieta regular da população.
Entre mais de um milhão de espécies conhecidas (hoje mais ou menos 2 mil
catalogadas como alimento), encontraremos novos sabores, aromas e
texturas”, escreveu Linassi por e-mail à BBC News Brasil.
Neste caminho para os insetos caírem no gosto dos brasileiros, o chef já conhece os rituais de estranhamento.
“A maioria dos adultos reage com repulsa, principalmente com insetos
inteiros, mas muitas vezes eles acabam comendo depois de muito ‘ensaio’.
Vários tiram suas selfies e depois dão para seus filhos ou amigos
comerem, pois lhes faltou um pouco de ‘coragem’. Rola muitas vezes uma
competição entre amigos para ver quem comerá primeiro”, brinca Linassi.
“Mulheres costumam ser mais ‘corajosas’ e tendem a experimentar mais que
os homens. Já as crianças são muito mais receptivas e simplesmente
perguntam – pode comer?”
Fonte: BBC
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