O massacre da Torre Bela ou a impunidade da elite da caça
Que se apurem responsabilidades e que a morte destes mais de 500 animais sirva para, finalmente, se encarar de frente este grave problema responsável pela destruição de biodiversidade, pelo extermínio de espécies fundamentais para o equilíbrio ecológico e para a sobrevivência de espécies ameaçadas, como o lobo ou o lince, que vêem as suas presas aniquiladas pela caça.
Inês de Sousa Real
Líder parlamentar do PAN
23 de Dezembro de 2020, 10:50
Algumas pessoas podem ter ficado chocadas com o episódio ocorrido este mês de Dezembro na Quinta da Torre Bela, no concelho de Azambuja, onde mais de 500 animais indefesos foram abatidos por um grupo organizado de caçadores, a troco de uns milhares de euros e com total impunidade, de tal forma que fizeram questão de se vangloriar do feito nas redes sociais, fotografando-se ao lado dos cadáveres dos animais abatidos e sublinhando “We did it again!”.
A chacina da Torre Bela só pode apanhar desprevenidos aqueles que não enfrentam nem conhecem o lobby da caça e as suas artimanhas para tentar manter esta actividade anacrónica, que persiste numa sociedade muito distante dos tempos em que a conservação da biodiversidade e dos recursos naturais do nosso planeta não faziam parte da agenda política.
Os tempos mudaram e este deplorável episódio vem demonstrar à opinião pública o contra senso daqueles que sempre estiveram do lado dos interesses da elite da caça, como é o caso do PSD e do PS que, no espaço de poucos dias, se opuseram com determinação contra a aprovação de projectos de lei que visavam proteger da actividade cinegética espécies em risco de desaparecerem em Portugal. Agora vêm a público condenar um evento promovido por grupos de caçadores e protagonizado por aqueles que, poucos dias antes, fizeram questão de defender de peito aberto na Assembleia da República.
Agora dizem, com algum desespero, que o que aconteceu na Torre Bela jamais pode ser confundido com a caça, como se a opinião pública fosse capaz de se deixar levar por esta tentativa de branqueamento, ou como se isto fosse um episódio isolado, ou nada tivesse que ver com aquilo que sempre defenderam com total intransigência. A empresa que promoveu com toda a impunidade o massacre da Torre Bela é a mesma que promoveu vários outros eventos semelhantes no nosso país, destinados a caçadores e às suas associações, a troco de milhares de euros e de uma estadia num confortável hotel.
Que o massacre da Torre Bela permita desmascarar o proteccionismo e a impunidade que o sector da caça goza em Portugal, num cenário onde as autoridades que têm a responsabilidade de zelar pelo meio ambiente ficam muito mal na fotografia. Os mais de 500 animais da herdade estavam identificados no Estudo de Impacte Ambiental (EIA) realizado no âmbito da consulta pública para um projecto de instalação de painéis fotovoltaicos naquelas instalações e o mesmo EIA refere que os animais deveriam ser transferidos para outro local, advertindo que “alguns” estavam já a ser caçados.
As autoridades sabiam da existência dos animais, dificilmente não terão ouvido os tiros que no local a população ouviu, e permitiram que eles fossem abatidos de forma vil antes de terminada a consulta pública do projecto, não tendo sequer pugnado por procurar alternativas que preservassem a presença dos animais ou promovessem a sua recolocação.
Que se apurem responsabilidades e que a morte destes mais de 500 animais sirva para, finalmente, se encarar de frente este grave problema responsável pela destruição de biodiversidade, pelo extermínio de espécies fundamentais para o equilíbrio ecológico e para a sobrevivência de espécies ameaçadas, como o lobo ou o lince, que vêem as suas presas aniquiladas pela caça.
Um sector onde continuam a ser envolvidas crianças e jovens e que, não podemos esquecer, tem como vítimas todos os anos centenas de cães, atingidos pelos disparos ou abandonados por caçadores.
Para além das lacunas que este episódio evidenciou, a lei de bases da caça tem de ser alterada também por outros factores. Como pode alguém ter uma arma na mão, se for preciso até aos 60 anos, sem que seja feita qualquer verificação quanto à sua aptidão? Assim como é incompreensível que se permita matar animais à paulada, como na caça à raposa, ou que se esventrem animais, arranquem membros, como acontece na caça com recurso a matilhas. Estas práticas anacrónicas representam um retrocesso civilizacional injustificável.
É muito importante que o lobby da caça não continue a fazer parte dos projectos de conservação da biodiversidade em Portugal nem a receber fundos para a protecção de espécies ameaçadas, como o lobo-ibérico ou o lince, que só servem para alimentar uma actividade lúdica sangrenta e branquear a verdade por detrás do extermínio de animais e do seu habitat.
O único responsável pelos desequilíbrios na natureza é o ser humano e os seus caprichos e é essa lição que deve ser interiorizada de uma vez por todas na nossa sociedade e nas políticas de protecção da biodiversidade em Portugal. Sob pena de, tiro atrás de tiro, continuarmos a condenar à extinção as espécies e a nós próprios a vivermos num planeta cada v
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