Quarta-feira, 13 de novembro de 2013
11:07 am
crônica da cidade-
Conceição Freitas
Livre-se da tragédia
Nem o menino encontrado morto no córrego, nem as duas adolescentes mortas no acidente com o ônibus, nem o tufão que maltratou as Filipinas, nem a lista diária do obituário, nem a amargura, o ressentimento e o narcisismo epidêmicos nas redes sociais nem as notícias particulares de decepções, sofrimentos e perdas.
O que predomina sobre o destino dos homens é a normalidade. Aquela que me permite estar aqui neste alto de página (que arriscado escrever isso!) e de você, leitor, estar aí lendo o jornal de cima para baixo, de frente para trás, ou vice-versa, se essa for a sua normalidade.
Brigo todos os dias com a tormenta de notícias ruins que caem sobre nossas cabeças continuamente nos sites, blogs, redes sociais e em toda a parafernália aloprada do território virtual. Há uma milagrosa normalidade em cada novo nascer do dia. (Até o instante em que escrevo, nenhum meteoro chocou-se contra o planeta e nos transformou em poeira).
Quando saio de casa, cedinho, e vejo o vira-lata cor e textura de pano de chão deitado no meio do asfalto, me convenço de que ainda estou viva, o mundo ainda existe e o cachorro sabe disso muito melhor do que eu, que jamais me deitaria no meio da rua às sete horas da manhã nem em hora nenhuma.
Talvez os bichos convivam melhor com a possibilidade da tragédia. Elas acontecem, já me aconteceram e ninguém me garante que não voltarão a acontecer. Mas, na contagem dos dias vividos, a bonança ou pelo menos a rotina suportável é a companheira constante da maioria dos nossos dias, dos meus e dos seus.
Em recente autobiografia, Minha breve história , o inacreditável Stephen Hawking conta como experimenta a vida. Ele, que tinha tudo para se apegar às suas implacáveis impossibilidades, se tornou um dos físicos contemporâneos mais importantes, se casou duas vezes e teve filhos. Sofrer de uma doença degenerativa de tamanha potência destruidora poderia ter aniquilado o jovem Stephen. Mas o amor de uma mulher o animou a continuar suas pesquisas e a arrumar um emprego.
A esclerose lateral amiotrófica já seria tragédia suficiente para uma pessoa, caso houvesse um senso democrático de distribuição de sofrimentos, mas não existe. Em 1991, SH atravessava uma rua em sua cadeira de rodas e foi atropelado por um carro. Ficou gravemente ferido.
Não sabemos o tamanho da tragédia ou a probabilidade de ela vir a acontecer com um de nós. E quem assim decidiu foi de uma generosidade divina. E já que estamos livres da tortura de saber o que vem por aí, também estamos libertos para sorver cada manifestação cotidiana da normalidade. É ela o grande milagre e se a gente não tiver noção disso, estaremos sim, desde já, habitando a tragédia, venha ou não a acontecer.
Correio Braziliense
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