quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

FHC e a legalidade ilegítima


A legalidade do mandato da doutora deriva da aritmética. Ela teve 54,5 milhões de votos e Aécio Neves, 51 milhões.
Elio Gaspari, O Globo

Referindo-se ao mandato de Dilma Rousseff, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu uma frase oracular: “É indiscutível a legalidade da vitória, mas discutível sua legitimidade.” As pitonisas gregas também falavam de maneira obscura.



O que vem a ser uma legitimidade discutível, não se sabe. Faz tempo, o juiz Antonin Scalia, baluarte do conservadorismo na Corte Suprema americana, visitou o Brasil e mostrou-se perplexo ao ouvir que a ditadura tinha instrumentos legais, mas eram ilegítimos. Quando lhe mostraram que as medidas praticadas com base nos atos institucionais não podiam ser apreciadas pelo Judiciário, encerrou a conversa e arquivou a perplexidade.


Admita-se que a doutora Dilma mentiu na busca pela reeleição. Ou, na expressão de FHC: “O que foi dito durante a campanha eleitoral não se compaginava com a realidade.” 


Não é a primeira vez que isso acontece. A diferença entre o que a doutora dizia e o que passou a fazer foi abissal, mas em setembro de 1998, a um mês da eleição, o candidato Fernando Henrique garantia que não mexeria no câmbio.


Nas suas palavras: “Quando se desvaloriza o câmbio, quem paga é o povo, porque imediatamente quem sofre é o trabalhador. Meu dever como governante é defender a moeda.” Elegeu-se em outubro, desvalorizou a moeda em janeiro e em poucas semanas ela perdeu 27% do valor.


Em 1998 havia uma verdadeira crise financeira mundial; hoje, não. Mesmo assim, FHC sabia que a carta da desvalorização estava no baralho. Seu mandato continuou legal e legítimo.



A teoria da ilegitimidade desemboca num flerte catastrofista em cujo horizonte estaria o impedimento da doutora Dilma Rousseff. Não pelo que ela prometeu durante a campanha, mas pelo que vier a aparecer nas investigações das petrorroubalheiras e das suas conexões com as caixas petistas.



Duas situações poderiam produzir esse desdobramento. Na primeira, ela estaria pessoalmente envolvida numa malfeitoria. Na segunda, partiria dela uma ação destinada a obstruir o trabalho do Ministério Público ou da Polícia Federal. Nos dois casos, será necessária a apresentação de fatos e provas ao Judiciário. Fora daí, é nhem-nhem-nhem.


A legalidade do mandato da doutora deriva da aritmética. Ela teve 54,5 milhões de votos e Aécio Neves, 51 milhões. Sua legitimidade ampara-se na Constituição. Bem outra coisa são as petrorroubalheiras e as finanças do Partido dos Trabalhadores, bem como a de alguns de seus comissários.


Quando se vê que a empreiteira Camargo Corrêa pagou-lhe R$ 887 mil entre maio de de 2010 e fevereiro de 2011, por serviços de “análise de aspectos sociológicos e políticos do Brasil”, percebe-se que essa questão vai longe. Dirceu tivera seu mandato de deputado federal cassado cinco anos antes. O presidente da empreiteira e dois de seus diretores estão na cadeia. Ele está em regime de prisão domiciliar.


O PT nunca conseguiu se dissociar politicamente da corrupção mensaleira, um cascalho se comparado ao que está na mesa. A presidente da República cultiva um distanciamento em relação a esse fenômeno. É aí que mora o perigo. Não se pode saber como ela será capaz de mostrar que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (Foto: Divulgação)Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (Imagem: Divulgação)

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