domingo, 7 de junho de 2015

Proliferação de ‘Gatos’ nas favelas do Rio causam prejuízos de quase R$ 1 bilhão


Selma Schmidt - O Globo

Sem regras ou fiscalização, contas de água e energia e impostos como IPTU, ISS e ICMS não são pagos




Na Rua Bahia, em Rio das Pedras, um amaranhado de fios e cabos - Márcia Foletto


Nos anos 2000, o programa Favela-Bairro chegou à Providência, entre Gamboa e Santo Cristo. E o projeto para transformar a primeira favela do Rio num “museu a céu aberto” previa a instalação do que seria a tão sonhada rede de água do morro. Até hoje, dos dutos oficiais só sai vento, conta Gisele Dias, a recém-eleita presidente da associação de moradores. Mas o lugar não padece de falta d’água. O povo de lá dá seu jeito. De 15 a 20 famílias se juntam e compram canos, que saem do reservatório da Cedae, no topo da comunidade, ladeira abaixo. Estrategicamente, os tubos são pintados, para que os donos possam identificá-los.


— Temos que tomar conta dos nossos canos. Se não, roubam. O material custa caro: mais de R$ 4 mil, que dividimos entre o pessoal que faz parte da mesma rede (informal) — diz Gisele.


O emaranhado de canos e fios a céu aberto em favelas, sinais evidentes de “gatos” de água e energia, está longe de ser algo restrito. Enquanto as comunidades crescem sem regras e fiscalização, as perdas com as irregularidades se multiplicam. O descontrole é tanto que os próprios números que poderiam avaliar o quanto deixa de ser arrecadado — com impostos, como IPTU, ISS e ICMS, e contas de água e energia — são imprecisos.

A Light estima que, a cada ano, deixam de entrar em seus cofres R$ 850 milhões, devido a furtos de energia em comunidades da capital. O valor corresponde a 34% do total de perdas (R$ 2,5 bilhões) contabilizadas nos 31 municípios do estado em que a empresa opera. Já a Cedae afirma que teria um aumento de R$ 84 milhões por ano em sua receita se todos os domicílios em favelas do Rio (exceto na Zona Oeste, cujas contas são emitidas pela concessionária Foz Águas 5) pagassem a tarifa social (R$ 22,32, independentemente do consumo).


FAVELAS TÊM PELO MENOS 440 MIL CASAS




Emaranhados de tubos e fios a céu aberto são sinais evidentes de gatos de água e energia elétricaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo


As secretarias municipal e estadual de Fazenda não informam o total de contribuintes de favelas inscritos no IPTU, no ISS e no ICMS. De concreto, o Instituto Pereira Passos (IPP) diz que existem 440.895 domicílios em comunidades, com base na última contagem feita pelo Censo 2010, do IBGE.


Vice-presidente da Associação de Moradores da Providência, Lúcia Martinez está entre os raros moradores de favelas que recebem o carnê do IPTU. Ela faz questão de pagar o tributo de sua casa. Em 2015, a cota única saiu por R$ 95,79.


— Não quero correr o risco de tirarem a minha casa. Ela foi construída pelo meu bisavô — diz.


A casa de Lúcia está entre os 1.477.496 domicílios inscritos no cadastro do IPTU (entre favela e asfalto, pagantes, isentos e inadimplentes). Como o IBGE recenseou há cinco anos 2.406.815 domicílios (ocupados ou não) no Rio, há nada menos que 929.319 casas fora do cadastro da Secretaria municipal de Fazenda, o que corresponde a 38,6% do total.


Um universo que vai além dos imóveis contabilizados em 2010 nas favelas e, como observa a vereadora Teresa Bergher (PSDB), se expande por loteamentos irregulares:


— Isso é o resultado de anos sem uma política habitacional séria. É lamentável que grande parte dos moradores do Rio não exista aos olhos do poder público. É uma população de invisíveis.


Em regiões administrativas (RAs) majoritariamente de favelas, o número de inscritos no IPTU é pífio. Apenas 19 dos mais de 23 mil domicílios da RA da Rocinha estão cadastrados. Na Maré, com 21 mil casas, 313 recebem carnê do IPTU. No Alemão, são 134, e no Jacarezinho, 70. Registrados como comerciais no IPTU estão 40 imóveis na Rocinha; 1.317 na Maré; 86 no Alemão; e 236 no Jacarezinho. Porém, nem sempre a inscrição corresponde ao que de fato funciona no imóvel.


— Não vejo vantagens em abrir firma. Pago IPTU, conta de luz e taxa de incêndio — afirma Geraldo Coelho Lemos, dono de um bar aberto na parte da frente de sua casa na Providência.
PERDAS COM ‘GATOS’ DE ENERGIA

Secretário-executivo de Coordenação de Governo do município, Pedro Paulo Carvalho alega que a questão central não passa pela cobrança de IPTU em favelas, mas pela redução de isenções e descontos. A prefeitura calcula que 60% dos contribuintes inscritos no IPTU não paguem o imposto.

Do IPTU para a energia, a insatisfação se estende aos usuários. Moradores da Providência mostram postes instalados em 2013 e 2014, em fibra de vidro, ainda sem fiação interna, convivendo com antigos de madeira, concreto e ferro — alguns danificados e tombando.


— Esse poste está seguro por um fio que colocamos. Outro dia, deu dois estalos. Achei que fosse desabar — reclama Luana dos Santos.


Diante das dificuldades, Lúcia Martinez acabou dando a sua solução:


— Há um ano, o meu relógio de luz foi baleado. Desde então, peço à Light a substituição. Um técnico veio na minha casa e disse que eu teria que comprar uma caixa de um determinado modelo. Parei de pagar a conta.


No ranking da Light, o Complexo da Maré está em primeiro lugar em perdas: 73,1% da energia distribuída é furtada, o correspondente a 17,6 gigawatts (GWh)/mês. Em segundo lugar, vem Rio das Pedras — onde a Light está substituindo a rede —, com 68% de perdas (10,1 GWh/mês).


A boa notícia é que, entre as comunidades com UPPs nas quais a Light modernizou a rede, perdas e inadimplência caíram. Caso de Cabritos, Tabajaras, Chapéu Mangueira, Babilônia e Dona Marta, onde as perdas diminuíram de 51% (2012) para 31%, enquanto a taxa média de adimplência subiu de 62% para 96%. Na Rocinha, onde a concessionária ainda não atuou, as perdas alcançam 66,73% (7,8 GWh/mês). Em comunidades, é cobrada a tarifa social, até 65% menor que a comum.


— Se todos os “gatos” de energia (favela e asfalto) fossem retirados do sistema da Light, a conta do cliente seria reduzida em 17% — garante Mario Badiola, gerente de Proteção de Receita da Light.


Quanto à água, a Cedae informa que está em curso um programa de recadastramento das comunidades com UPPs. No Dona Marta, em Botafogo, foram recadastrados 1.495 imóveis. Os moradores da parte mais alta (acima da quinta estação do plano inclinado), no entanto, sequer têm rede. Os canos brancos externos denunciam o “gato”.


— Temos que puxar a água — revela o barbeiro Sandro Roberto.
O recadastramento está em curso na Rocinha, Alemão, Maré, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e Mangueira. A intenção da Cedae é cadastrar todas as comunidades até 2018. Além disso, em breve a companhia pretende lançar uma campanha para estimular a regularização.


ANÁLISE: PROFESSOR DEFENDE LEGISLAÇÃO QUE FIXE DIREITOS

Não há vitoriosos. O grau exacerbado de desordem nas favelas gera perdas tanto para o asfalto como para as comunidades. A avaliação é do professor de ciências sociais Marcelo Burgos, da PUC-Rio. Ao mesmo tempo em que a cidade como um todo deixa de arrecadar, diz ele, moradores de favelas veem seus direitos civis violados:


- Saúde e educação não bastam. É necessária uma legislação que fixe direitos e deveres básicos para favelas. O direito de vizinhança é fundamental. A quem recorro se construírem colado na minha janela? Não adianta implantar rede de esgoto para "x" imóveis se, daqui a dez anos, eles serão "x" mais "y". As comunidades precisam ainda de gabaritos e de quem fiscalize as normas.


Burgos também chama a atenção para o custo da formalidade no asfalto:

- Muitos são jogados para as favelas porque não conseguem alugar um imóvel. É importante reduzir exigências na cidade formal, especialmente para aluguel. Empresários se alimentam do mercado imobiliário nas comunidades, enquanto trabalhadores viram vítimas da especulação.


Diretor do Observatório de Favelas, o cientista social Eduardo Alves observa que, apesar das deficiências e de o abismo em relação ao asfalto ainda serem enormes, as comunidades recebem hoje mais investimentos que no passado:


- Mas a informalidade nas favelas só será reduzida com a implantação de políticas públicas, voltadas principalmente para a sua juventude.


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