Selma Schmidt - O Globo
Sem regras ou fiscalização, contas de água e energia e impostos como IPTU, ISS e ICMS não são pagos
Nos anos 2000, o programa Favela-Bairro chegou à Providência, entre
Gamboa e Santo Cristo. E o projeto para transformar a primeira favela do
Rio num “museu a céu aberto” previa a instalação do que seria a tão
sonhada rede de água do morro. Até hoje, dos dutos oficiais só sai
vento, conta Gisele Dias, a recém-eleita presidente da associação de
moradores. Mas o lugar não padece de falta d’água. O povo de lá dá seu
jeito. De 15 a 20 famílias se juntam e compram canos, que saem do
reservatório da Cedae, no topo da comunidade, ladeira abaixo.
Estrategicamente, os tubos são pintados, para que os donos possam
identificá-los.
— Temos que tomar conta dos nossos canos. Se não, roubam. O material
custa caro: mais de R$ 4 mil, que dividimos entre o pessoal que faz
parte da mesma rede (informal) — diz Gisele.
O emaranhado de canos e fios a céu aberto em favelas, sinais evidentes
de “gatos” de água e energia, está longe de ser algo restrito. Enquanto
as comunidades crescem sem regras e fiscalização, as perdas com as
irregularidades se multiplicam. O descontrole é tanto que os próprios
números que poderiam avaliar o quanto deixa de ser arrecadado — com
impostos, como IPTU, ISS e ICMS, e contas de água e energia — são
imprecisos.
A Light estima que, a cada ano, deixam de entrar em seus cofres R$ 850
milhões, devido a furtos de energia em comunidades da capital. O valor
corresponde a 34% do total de perdas (R$ 2,5 bilhões) contabilizadas nos
31 municípios do estado em que a empresa opera. Já a Cedae afirma que
teria um aumento de R$ 84 milhões por ano em sua receita se todos os
domicílios em favelas do Rio (exceto na Zona Oeste, cujas contas são
emitidas pela concessionária Foz Águas 5) pagassem a tarifa social (R$
22,32, independentemente do consumo).
Emaranhados de tubos e fios a céu aberto são sinais evidentes de gatos de água e energia elétricaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
As secretarias municipal e estadual de Fazenda não informam o total de
contribuintes de favelas inscritos no IPTU, no ISS e no ICMS. De
concreto, o Instituto Pereira Passos (IPP) diz que existem 440.895
domicílios em comunidades, com base na última contagem feita pelo Censo
2010, do IBGE.
Vice-presidente da Associação de Moradores da Providência, Lúcia
Martinez está entre os raros moradores de favelas que recebem o carnê do
IPTU. Ela faz questão de pagar o tributo de sua casa. Em 2015, a cota
única saiu por R$ 95,79.
— Não quero correr o risco de tirarem a minha casa. Ela foi construída pelo meu bisavô — diz.
A casa de Lúcia está entre os 1.477.496 domicílios inscritos no cadastro
do IPTU (entre favela e asfalto, pagantes, isentos e inadimplentes).
Como o IBGE recenseou há cinco anos 2.406.815 domicílios (ocupados ou
não) no Rio, há nada menos que 929.319 casas fora do cadastro da
Secretaria municipal de Fazenda, o que corresponde a 38,6% do total.
Um universo que vai além dos imóveis contabilizados em 2010 nas favelas
e, como observa a vereadora Teresa Bergher (PSDB), se expande por
loteamentos irregulares:
— Isso é o resultado de anos sem uma política habitacional séria. É
lamentável que grande parte dos moradores do Rio não exista aos olhos do
poder público. É uma população de invisíveis.
Em regiões administrativas (RAs) majoritariamente de favelas, o número
de inscritos no IPTU é pífio. Apenas 19 dos mais de 23 mil domicílios da
RA da Rocinha estão cadastrados. Na Maré, com 21 mil casas, 313 recebem
carnê do IPTU. No Alemão, são 134, e no Jacarezinho, 70. Registrados
como comerciais no IPTU estão 40 imóveis na Rocinha; 1.317 na Maré; 86
no Alemão; e 236 no Jacarezinho. Porém, nem sempre a inscrição
corresponde ao que de fato funciona no imóvel.
— Não vejo vantagens em abrir firma. Pago IPTU, conta de luz e taxa de
incêndio — afirma Geraldo Coelho Lemos, dono de um bar aberto na parte
da frente de sua casa na Providência.
PERDAS COM ‘GATOS’ DE ENERGIA
Secretário-executivo de Coordenação de Governo do município, Pedro Paulo
Carvalho alega que a questão central não passa pela cobrança de IPTU em
favelas, mas pela redução de isenções e descontos. A prefeitura calcula
que 60% dos contribuintes inscritos no IPTU não paguem o imposto.
Do IPTU para a energia, a insatisfação se estende aos usuários.
Moradores da Providência mostram postes instalados em 2013 e 2014, em
fibra de vidro, ainda sem fiação interna, convivendo com antigos de
madeira, concreto e ferro — alguns danificados e tombando.
— Esse poste está seguro por um fio que colocamos. Outro dia, deu dois
estalos. Achei que fosse desabar — reclama Luana dos Santos.
Diante das dificuldades, Lúcia Martinez acabou dando a sua solução:
— Há um ano, o meu relógio de luz foi baleado. Desde então, peço à Light
a substituição. Um técnico veio na minha casa e disse que eu teria que
comprar uma caixa de um determinado modelo. Parei de pagar a conta.
No ranking da Light, o Complexo da Maré está em primeiro lugar em perdas: 73,1% da energia distribuída é furtada, o correspondente a 17,6 gigawatts (GWh)/mês. Em segundo lugar, vem Rio das Pedras — onde a Light está substituindo a rede —, com 68% de perdas (10,1 GWh/mês).
A boa notícia é que, entre as comunidades com UPPs nas quais a Light modernizou a rede, perdas e inadimplência caíram. Caso de Cabritos, Tabajaras, Chapéu Mangueira, Babilônia e Dona Marta, onde as perdas diminuíram de 51% (2012) para 31%, enquanto a taxa média de adimplência subiu de 62% para 96%. Na Rocinha, onde a concessionária ainda não atuou, as perdas alcançam 66,73% (7,8 GWh/mês). Em comunidades, é cobrada a tarifa social, até 65% menor que a comum.
— Se todos os “gatos” de energia (favela e asfalto) fossem retirados do
sistema da Light, a conta do cliente seria reduzida em 17% — garante
Mario Badiola, gerente de Proteção de Receita da Light.
Quanto à água, a Cedae informa que está em curso um programa de
recadastramento das comunidades com UPPs. No Dona Marta, em Botafogo,
foram recadastrados 1.495 imóveis. Os moradores da parte mais alta
(acima da quinta estação do plano inclinado), no entanto, sequer têm
rede. Os canos brancos externos denunciam o “gato”.
— Temos que puxar a água — revela o barbeiro Sandro Roberto.
O recadastramento está em curso na Rocinha, Alemão, Maré,
Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e Mangueira. A intenção da Cedae é cadastrar
todas as comunidades até 2018. Além disso, em breve a companhia
pretende lançar uma campanha para estimular a regularização.
ANÁLISE: PROFESSOR DEFENDE LEGISLAÇÃO QUE FIXE DIREITOS
Não há vitoriosos. O grau exacerbado de desordem nas favelas gera perdas
tanto para o asfalto como para as comunidades. A avaliação é do
professor de ciências sociais Marcelo Burgos, da PUC-Rio. Ao mesmo tempo
em que a cidade como um todo deixa de arrecadar, diz ele, moradores de
favelas veem seus direitos civis violados:
- Saúde e educação não bastam. É necessária uma legislação que fixe
direitos e deveres básicos para favelas. O direito de vizinhança é
fundamental. A quem recorro se construírem colado na minha janela? Não
adianta implantar rede de esgoto para "x" imóveis se, daqui a dez anos,
eles serão "x" mais "y". As comunidades precisam ainda de gabaritos e de
quem fiscalize as normas.
Burgos também chama a atenção para o custo da formalidade no asfalto:
- Muitos são jogados para as favelas porque não conseguem alugar um
imóvel. É importante reduzir exigências na cidade formal, especialmente
para aluguel. Empresários se alimentam do mercado imobiliário nas
comunidades, enquanto trabalhadores viram vítimas da especulação.
Diretor do Observatório de Favelas, o cientista social Eduardo Alves
observa que, apesar das deficiências e de o abismo em relação ao asfalto
ainda serem enormes, as comunidades recebem hoje mais investimentos que
no passado:
- Mas a informalidade nas favelas só será reduzida com a implantação de
políticas públicas, voltadas principalmente para a sua juventude.
Nenhum comentário:
Postar um comentário