Texto e fotos de Luiz Adriano Seabra
O jovem locutor entrou para o teatro nos idos de 1979. Com colegas do Ceub ensaiou exaustivamente o roteiro da peça Cicatrizes, que havia conquistado o Prêmio Molère, em 1977. Parecia-lhe coisa importante. Falava de política, loucura, hospício, cárcere, vozes de dentro e de fora. E, com certeza, os ensaios e a apresentação em si somariam para a sua formação profissional, dando-lhe interpretações outras e mais cancha.
Embora o seu personagem não atuasse de fato, apenas a voz se faria sentir na alma de um dos atores, o locutor levou a sério a empreitada. E a peça rendeu ótimos comentários de público e crítica tanto na apresentação no Teatro Galpão, à 508 Sul, hoje Espaço Renato Russo da extinta Fundação Cultural do Distrito Federal, como na Sala Martins Penna, do Teatro Nacional de Brasília, em única apresentação.
E a cena incomodava as pessoas já sentadas ou ainda entrando no espaço. Era imperioso sentir já, ali, o posicionamento das pessoas em relação ao que se ouvia falar naqueles tempos bicudos de censura e governos autoritários.
Enquanto a plateia ainda chegava para os seus lugares a peça já estava valendo.
Dois homens de terno preto que pareciam estar à serviço do SNI, Serviço Nacional de Informações, ameaçavam levar preso, de forma truculenta, um jovem da plateia.
E sempre acontecia de alguns jovens se levantarem em defesa do cidadão prestes a ser levado pelos homens de preto. Até que a voz do locutor, justamente a voz que iria costurar a consciência do personagem principal, interferisse para tentar acalmar os ânimos já bem exaltados naquele primeiro ato
Naquele tempo, Brasília contava com 29, 30 anos. E a cidade parecia que ia durar uma vida inteira daquele jeito.
Brasília era limpa, organizada, respeitava os espaços públicos e nada, nem em pensamento, faria supor que 10 anos depois tudo começaria a mudar, e mudar para pior.
Primeiro veio o Sr. Joaquim Roriz, distribuindo lotes, terrenos – envolvido em falcatruas e grilagens – para transformar a cidade de uma vez por todas em um centro de imigrantes sem precedentes. Daí o entorno cresceu muito acima do esperado para sufocar o trânsito, deteriorar hospitais públicos, calçamentos segurança e aquilo que mais nos conquistava, a tranquilidade das noites frias durante todo o ano.
Depois, para assegurar e segurar a tsunami do crescimento desordenado, coisa impensada por Juscelino, Niemeyer e Lucio Costa, começaram a invadir a cidade com puxadinhos de todo tipo: em ponto de ônibus, prédios, calçadas, área verde.
E como numa lata velha colorida de verde cinzento com o azul do céu que, graças a Deus, ainda não ocuparam, Brasília vai se esquecendo até da única obra boa do famigerado político, os jardins do Roriz.
A avenida W.3 Sul está abandonada, a W.3 Norte virou uma pedalada apocalíptica do chamado zoneamento, o Setor Comercial Sul inexiste, as calçadas estão deformadas; soltando munições portuguesas para black blocs, o gramado gritando socorro até em tempos de chuva, alagamentos de todo tipo e galerias acanhadas para suportar tanto lixo.
Ah, uma ideia me ocorreu agora!
Essa cidade vovó deveria exigir uma lei que desse cinco anos de prazo para que os seus prédios também sejam restaurados. Todos eles. Claro, vale para o poder público também…
E que se levantem vozes e pessoas para a truculência do descaso público e privado. Que Brasília não se torne um retratinho desbotado, cheio de cicatrizes, de um Brasil que vem aqui para fazer da capital a casa da mãe Joana, um hospício, uma jaula em si mesma. Vamos nós censurar os maus políticos e até sermos autoritários com eles.
Essa cidade de traçados tão futuros não pode se deixar levar por feridas e porões ainda tão mofados.
Ah, e fodam-se os homens de preto…
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