Seca causa migração e transforma cidade na 'capital das araras' do Brasil
Thiago GuimarãesDa BBC Brasil em Londres
9 setembro 2015
Image copyrightJoao Marcos Rosa
Em Campo Grande, as araras aprenderam a conviver com
trânsito intenso, redes de energia, linhas com cerol, poluição sonora e
do ar
Em meio ao vaivém
intenso de pedestres e veículos, emaranhados de fios elétricos, linhas
com cerol e postes, objetos colorem e fazem barulho no céu de Campo
Grande.
A cidade no centro-oeste do Brasil ganhou o título
informal de "capital das araras", uma homenagem às aves que se adaptaram
de maneira única ao ambiente urbano da capital de Mato Grosso do Sul.
É um fenômeno sem precedentes nessa escala no país, segundo biólogos que estudam as aves na cidade. Image copyrightJoao Marcos Rosa
Durante período de reprodução, de julho a dezembro,
aves cruzam os céus da cidade em busca de ninhos; migração nessa escala é
inédita até em cidades da Amazônia, afirmam pesquisadores
A proximidade do Pantanal – a maior área alagada do
mundo, um mundo de água doce e vida selvagem do tamanho de Portugal –
ajudou. Campo Grande é arborizada e ainda mantém manchas de cerrado,
buritizais e inúmeras árvores frutíferas.
As araras aproveitam um
belo cardápio de espécies exóticas e nativas do cerrado – encontram
comida em pelo menos 14 árvores, como jatobá, ingá, cedro-rosa e
tamarindo.
Indiferentes ao movimento e ao barulho, elas fizeram
morada em diferentes pontos da cidade, num fluxo que começou em 1999,
após uma seca prolongada na região. Image copyrightJoao Marcos Rosa
Aves fazem morada em troncos de árvores mortas e
aproveitam abundância de árvores frutíferas na região, como o buriti
Optam por restos de buritizais, palmeiras secas e
até ninhos artificiais, obra de moradores que começam mais e mais a se
integrar com os bichos.
As araras ficam ainda mais visíveis nessa
época do ano. É período de reprodução, que vai de julho a dezembro, e
casais cruzam os ares em busca de ninhos para procriar.
Em geral,
os psitacídeos – a família das araras, que inclui papagaios e periquitos
– são monogâmicos e formam casais pela vida toda. Image copyrightJoao Marcos Rosa
Casais são vistos com frequência durante época de
reprodução, mais de 200 filhotes nasceram nos últimos cinco anos na
cidade
Curtiu? Siga a BBC Brasil no Facebook
Migração
Uma longa estiagem no ano de 1999 marcou a chegada das araras-canindé e de araras-vermelhas (Ara chloropterus)
a Campo Grande. A seca, somada a desmatamentos e queimadas na zona
rural e municípios do entorno, reduziu de forma brusca a oferta de
alimentos para essas aves.
Na ocasião, o Instituto Arara Azul, que
pesquisa o comportamento dos bichos, monitorou grupos de 27 a 48 araras
que estavam em Terenos, a 32 km de Campo Grande, e poucos dias depois
já circulavam pela capital.
Leia mais: Tucano vítima de maus tratos ganha bico feito em impressora 3D Image copyrightJoao Marcos Rosa
Em Campo Grande, as aves foram de áreas de
buritizais e regiões afastadas até palmeiras no centro da cidade;
biólogos cadastraram 74 ninhos
Segundo a bióloga Neiva Guedes, presidente do
instituto, hoje existem pelo menos 400 araras em Campo Grande, e mais de
200 filhotes já nasceram na cidade desde 2010. Image copyrightJoao Marcos Rosa
Pesquisadora do Instituto Arara Azul em ação de captura de filhotes arara para monitoramento
De 2001 a 2005, Guedes acompanhou, a menos de 150
metros de sua casa, a reprodução de araras em um tronco de buriti.
Observou disputas de casais, nascimento e voo de filhotes. E até
interveio pela manutenção no ninho quando a avenida foi duplicada – o
traçado da via acabou sendo desviado para preservar a árvore.
O
instituto cadastrou 74 ninhos de araras em Campo Grande, dos quais 34
são monitorados. Um deles, por exemplo, fica em uma das esquinas mais
movimentadas da cidade, a da rua Dom Aquino com avenida Duque de Caxias.
E
as pesquisas mostram que, apesar das dificuldades impostas pelo
ambiente urbano, as araras-canindé estão se reproduzindo na cidade com
sucesso.
"Eles conseguem se manter na cidade o ano inteiro. E já
fazem parte do cotidiano, a população se acostumou a ouvi-las todo dia",
afirma Guedes.
Há
moradores que chegam a oferecer abrigo para as aves. O major do Corpo
de Bombeiros Pedro Centurião, por exemplo, durante uma obra na área de
lazer de sua casa, resolveu cortar as folhas de uma palmeira que sujava
muito o quintal.
Foi a senha para as araras começarem a frequentar
o tronco. A família de Centurião providenciou uma estrutura de madeira
no alto da palmeira para facilitar a estadia dos hóspedes. Image copyrightJoao Marcos RosaAraras chamam a atenção pela coloração, conformação
do bico e gritaria; aves se tornaram atração para moradores
Isso foi há cerca de dois meses, e hoje um casal já
choca três ovos no local. "Estamos ansiosos pela chegada dos filhotes",
conta Centurião, de 51 anos.
Ao lado de Peru e Colômbia, o Brasil é
o país mais rico do mundo em aves – são cerca de 1.800 espécies. No
caso dos psitacídeos, uma das famílias de características mais
marcantes, facilmente reconhecível pelo bico, patas e cauda, é o país
mais diverso do planeta, com 82 espécies. Image copyrightJoao Marcos Rosa
As araras-canindés estão entre as aves mais vendidas
no mundo; captura de ovos, filhotes, adultos e coleta de penas são
comuns
Araras-vermelhas e araras-canindé estão entre as
mais comercializadas no planeta. A diversidade de cores, sociabilidade,
capacidade de adaptação e de imitar a voz humana atraem o interesse das
pessoas em todo o mundo. Image copyrightJoao Marcos RosaEntre as aves, os psitacídeos são o grupo que mais sofre com o tráfico de animais
silvestres.
No caso das araras-canindé, que habitam desde o
Panamá até a região central brasileira passando por Guianas, Venezuela,
Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai, não há risco de extinção no
Brasil, mas relatos de retirada de indivíduos da natureza são comuns.
E afinal, o fenômeno das araras na cidade é algo bom ou ruim? Neiva Guedes diz ter pensado muito até concluir que sim. Image copyrightJoao Marcos Rosa
Fios chegam a ser encapados e transformadores de energia são trocados para preservar as aves
"Se temos araras, é porque ainda temos ambiente para
elas. Bom para elas, melhor ainda para nós, que temos uma cidade bem
arborizada, com frutíferas variadas dando suporte à biodiversidade. As
araras são boas indicadoras dessa diversidade. Dão grande valor social a
cidade e transmitem paz, tranquilidade e alegria", afirma.
O fenômeno, diz a bióloga, aponta também para a necessidade de preservação da biodiversidade em áreas urbanas.
Image copyrightInstituto Arara Azul
Arara com filhotes no interior de ninho; pesquisa
mostrou que, apesar da influência do trânsito de veículos, 81% dos
casais tiveram sucesso no voo de aves juvenis
"Até 2030 a população urbana será 46% maior. Com
isso, haverá pressão maior para exploração das áreas naturais, cada vez
mais diminuídas. As áreas urbanas ganharão mais importância, e buscar
equilíbrio entre desenvolvimento e manutenção da paisagem deve ser meta
dos dirigentes públicos e de cada cidadão", diz a pesquisadora.
Image copyrightJoao Marcos RosaImage caption
Escultura na Praça das Araras, em Campo Grande, presta homenagem às aves que se tornaram símbolo da cidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário