Em meio ao vaivém
intenso de pedestres e veículos, emaranhados de fios elétricos, linhas
com cerol e postes, objetos colorem e fazem barulho no céu de Campo
Grande.
É um fenômeno sem precedentes nessa escala no país, segundo biólogos que estudam as aves na cidade.
A proximidade do Pantanal – a maior área alagada do mundo, um mundo de água doce e vida selvagem do tamanho de Portugal – ajudou. Campo Grande é arborizada e ainda mantém manchas de cerrado, buritizais e inúmeras árvores frutíferas.
As araras aproveitam um belo cardápio de espécies exóticas e nativas do cerrado – encontram comida em pelo menos 14 árvores, como jatobá, ingá, cedro-rosa e tamarindo.
Indiferentes ao movimento e ao barulho, elas fizeram morada em diferentes pontos da cidade, num fluxo que começou em 1999, após uma seca prolongada na região.
Optam por restos de buritizais, palmeiras secas e até ninhos artificiais, obra de moradores que começam mais e mais a se integrar com os bichos.
As araras ficam ainda mais visíveis nessa época do ano. É período de reprodução, que vai de julho a dezembro, e casais cruzam os ares em busca de ninhos para procriar.
Em geral, os psitacídeos – a família das araras, que inclui papagaios e periquitos – são monogâmicos e formam casais pela vida toda.
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Migração
Uma longa estiagem no ano de 1999 marcou a chegada das araras-canindé e de araras-vermelhas (Ara chloropterus) a Campo Grande. A seca, somada a desmatamentos e queimadas na zona rural e municípios do entorno, reduziu de forma brusca a oferta de alimentos para essas aves.Na ocasião, o Instituto Arara Azul, que pesquisa o comportamento dos bichos, monitorou grupos de 27 a 48 araras que estavam em Terenos, a 32 km de Campo Grande, e poucos dias depois já circulavam pela capital.
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Segundo a bióloga Neiva Guedes, presidente do instituto, hoje existem pelo menos 400 araras em Campo Grande, e mais de 200 filhotes já nasceram na cidade desde 2010.
De 2001 a 2005, Guedes acompanhou, a menos de 150 metros de sua casa, a reprodução de araras em um tronco de buriti. Observou disputas de casais, nascimento e voo de filhotes. E até interveio pela manutenção no ninho quando a avenida foi duplicada – o traçado da via acabou sendo desviado para preservar a árvore.
O instituto cadastrou 74 ninhos de araras em Campo Grande, dos quais 34 são monitorados. Um deles, por exemplo, fica em uma das esquinas mais movimentadas da cidade, a da rua Dom Aquino com avenida Duque de Caxias.
E as pesquisas mostram que, apesar das dificuldades impostas pelo ambiente urbano, as araras-canindé estão se reproduzindo na cidade com sucesso.
"Eles conseguem se manter na cidade o ano inteiro. E já fazem parte do cotidiano, a população se acostumou a ouvi-las todo dia", afirma Guedes.
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Acolhimento
Há moradores que chegam a oferecer abrigo para as aves. O major do Corpo de Bombeiros Pedro Centurião, por exemplo, durante uma obra na área de lazer de sua casa, resolveu cortar as folhas de uma palmeira que sujava muito o quintal.Foi a senha para as araras começarem a frequentar o tronco. A família de Centurião providenciou uma estrutura de madeira no alto da palmeira para facilitar a estadia dos hóspedes.
Isso foi há cerca de dois meses, e hoje um casal já choca três ovos no local. "Estamos ansiosos pela chegada dos filhotes", conta Centurião, de 51 anos.
Ao lado de Peru e Colômbia, o Brasil é o país mais rico do mundo em aves – são cerca de 1.800 espécies. No caso dos psitacídeos, uma das famílias de características mais marcantes, facilmente reconhecível pelo bico, patas e cauda, é o país mais diverso do planeta, com 82 espécies.
Araras-vermelhas e araras-canindé estão entre as mais comercializadas no planeta. A diversidade de cores, sociabilidade, capacidade de adaptação e de imitar a voz humana atraem o interesse das pessoas em todo o mundo.
No caso das araras-canindé, que habitam desde o Panamá até a região central brasileira passando por Guianas, Venezuela, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai, não há risco de extinção no Brasil, mas relatos de retirada de indivíduos da natureza são comuns.
E afinal, o fenômeno das araras na cidade é algo bom ou ruim? Neiva Guedes diz ter pensado muito até concluir que sim.
"Se temos araras, é porque ainda temos ambiente para elas. Bom para elas, melhor ainda para nós, que temos uma cidade bem arborizada, com frutíferas variadas dando suporte à biodiversidade. As araras são boas indicadoras dessa diversidade. Dão grande valor social a cidade e transmitem paz, tranquilidade e alegria", afirma.
O fenômeno, diz a bióloga, aponta também para a necessidade de preservação da biodiversidade em áreas urbanas.
"Até 2030 a população urbana será 46% maior. Com isso, haverá pressão maior para exploração das áreas naturais, cada vez mais diminuídas. As áreas urbanas ganharão mais importância, e buscar equilíbrio entre desenvolvimento e manutenção da paisagem deve ser meta dos dirigentes públicos e de cada cidadão", diz a pesquisadora.
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