A vida de um animal silvestre é considerada parte da vida do resto da natureza. Que é parte da vida, não se duvida. Que essas vidas dependem do cenário natural para poder seguir existindo, também não se duvida. Mas que sejam apenas peças do cenário, sem qualquer estatuto moral próprio, isso não faz o menor sentido.
O que dizer, então, de alguém que mata um animal residente no meio urbano e também responde à LCA? Um cão ou um gato são objetos cênicos do mundo ambiental urbano? Não são. Do mesmo modo que um animal silvestre não é um objeto cênico do mundo ambiental natural. Os animais são sujeitos-de-suas-vidas (Tom Regan, The Case for Animal Rights), na mesma condição dos humanos, ainda que cada tipo de vida venha sujeitada a peculiaridades ou singularidades específicas, quer dizer, que as demais podem não ter.
Toda vida animada (animal) chega aqui, a este mundo terráqueo, dotada de algo que outros seres vivos, as plantas, por exemplo, que constituem o cenário natural protegido pela Lei dos Crimes Ambientais, não têm: a liberdade e a necessidade inerente a próprio éthos de ir e vir para se auto prover e prover os seus.
Para nascer animal o corpo paga este preço, mesmo que ele não tenha consciência alguma disto: a separação da fonte de nutrientes necessários à manutenção dele, que garantiu sua vida no estado embrionário e fetal: o útero ou o ovo. Um animal se torna indivíduo quando rompe o vínculo com o corpo que lhe dá origem.
Uma árvore obtém do solo, do ar, da luz e da água, todos os nutrientes que formam e permitem o crescimento e maturação de seu organismo. A árvore, para nascer, põe fim à semente que a gerou. O animal, para nascer, não põe fim ao corpo que o gerou, mas tem que ser separado dele.
Um animal precisa ir e vir o dia todo, todos os dias de sua vida, em busca de comida, de água, de um lugar seguro para descansar, de interações prazerosas e preferidas com outros animais, de satisfação de sua curiosidade e de refúgio para seus medos mais primários, sob pena de morrer desnutrido, estressado ou deprimido, e de não realizar o movimento específico do espírito que anima sua espécie de vida. Para realizar plenamente sua existência, o animal precisa aprender com os seus progenitores como se faz isso.
Então, temos aí uma diferença grande entre duas espécies de vida, a animada (movida pelas emoções e pela consciência de si no ambiente natural e social específico), e a não animada, movida pelo processo de auto manutenção sem que o organismo precise movimentar-se no ambiente externo mais amplo.
Esta notícia, dada pelo Olhar Animal, é perfeita para a gente ver o quanto estamos enrolando a justiça para com os animais, ao enquadrá-los como objetos cênicos ou componentes do meio ambiente. É tão absurdo o enquadramento do assassinato de um animal outro que não humano na LCA quanto o seria o assassino de um humano responder por seu ato de acordo com uma Lei dos Crimes Urbanos, caso tal lei existisse.
Um indivíduo animal não é um objeto, compondo qualquer cenário. O cenário, ou o ambiente, dá condições ou os meios para que a vida seja mantida por esse sujeito. Mas o sujeito e seus mantimentos não estão na mesma condição. São distintos.
Considerar animais não humanos, silvestres ou urbanos, como partes do cenário natural apenas confirma o quanto a vida do animal ainda é tida como valiosa apenas por seu valor instrumental, não por seu valor inerente, que independe do quanto ela sirva como peça para fazer funcionar um todo maior.
Quem tira a vida de um animal deve responder por assassinato, sem especismos elitistas ou eletivos: canicídio, gaticídio, equicídio, ovicídio, avicídio, capricídio, bovicídio e assim por diante, analogamente ao que fazemos com um homicídio.
O fato de não termos um nome para tais atos mostra que não temos consciência de que esses atos são moralmente abjetos e devem ser punidos de acordo com a lei positiva que assegura o direito à vida sem discriminar sexo, raça ou espécie.
Está difícil levar a humanidade a reconhecer que os animais são sujeitos de direito, sim. Foram milênios de ocultação desse direito. Era útil, fácil e conveniente para os humanos negarem direitos aos outros animais, reservando apenas para si todos os direitos instituídos. Tornou-se ato fútil destruir a vida de um animal.
Agora é hora de devolvermos aos animais o que jamais deveríamos ter roubado deles: seu direito à vida e ao cenário mais apropriado para que eles cuidem dela, de si e dos seus, como sempre o fizeram, até que aparecessem os humanos para destruir sua autonomia prática e pôr sua vida em risco.
Sônia T. Felipe | ecoanima2014@gmail.com
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