Quarta-feira, 14/03/2018, às 21:35,
'Se o estado não regular, as empresas podem nos destruir', diz executivo da ActionAid
A notícia de que crianças morrem de fome nos
arredores da maior mina de ouro no mundo, em Papua, província da
Indonésia causou um grande impacto, como não podia deixar de ser. Mas o
susto maior é saber que não se trata de um caso único, isolado. E também
não é de hoje que a desigualdade mostra sua face mais cruel quando
expõe a riscos e miséria populações inteiras que são, por outro lado,
obrigadas a dividir seu território com empresas que extraem dele grandes
somas.
Há ainda, para
pôr tintas mais sombrias ao cenário, a questão ambiental. Estamos
assistindo acontecer agora,aqui no Brasil, desastres ambientais em Minas Gerais e em Barcarena para não falar de Mariana,
município mineiro que se tornou conhecido mundialmente depois que foi
praticamente soterrado por lama, resultado de um erro grosseiro numa
produção de minério. Tudo isso causado por empresas. Serão elas, então,
as vilãs da vez? O que aconteceu com o movimento de responsabilidade
social corporativa, tão em evidência no início do século?
Não, as empresas não são as grandes vilãs, me diz Adriano Campolina,coordenador executivo da ActionAid – organização é voltada para promover direitos humanos e tentar acabar com a pobreza no mundo –
em nível internacional. Campolina agora está na África do Sul, atual
sede da ActionAid, de onde conversou comigo via Skipe na manhã de
segunda-feira (12). Ele ressalta, no entanto, que as empresas poderão se
tornar perigosamente destruidoras caso não sejam reguladas pelo Estado.
"Não
sou contra as empresa, elas são fundamentais. Mas se a sociedade não
forçar o governo a exercer seu papel regulador, elas podem nos
destruir".
Segue a entrevista:
Para
quem está sempre ligado aos temas relativos à pobreza e degradação do
meio ambiente no mundo, essa notícia de que na Papua os moradores dormem
sobre ouro em camas de palha não chega a ser novidade. Como você está
sempre atualizado, gostaria de saber: esse tipo de situação, de empresas
explorarem os recursos naturais e deixarem uma miséria em volta, está
estagnada, há mais debates, algum sinal de melhora?
Adriano Campolina
– Trabalhamos com a ActionAid em 45 países e o que posso lhe dizer é
que é uma tendência, onde quer que se olhe. Aqui na África do Sul
fizemos estudos sobre comunidades que têm muito carvão vegetal, e é
impressionante. A primeira coisa que elas perdem é terra
que elas tinham para suas atividades de agricultura ou quais outras,
depois vem a contaminação, a quantidade de poluente que fica pós
industrialização é tremenda. E quando as empresas saem, fica uma terra
arrasada. Já a comunidade fica ainda mais pobre do que antes. No caso
aqui é ainda mais irônico porque na África do Sul o
carvão vegetal é usado para a eletricidade. E a comunidade de onde sai o
carvão que permite eletricidade para o país não tem luz! Isso é
apavorante.
Mas
esse tipo de situação chega a ser debatido em reuniões entre líderes e
empresários, por exemplo nos encontros das Nações Unidas? Há um
incômodo?
Adriano Campolina
– Sim, chega a ser debatido, mas quando a turma se organiza. Aqui tem
uma aliança das comunidades atingidas pelas atividades da mineração,
pessoas que vão para as ruas, se reúnem com ministros e já conseguiram
ganhar na Justiça uma Ordem da Suprema Corte que obriga os ministérios
de recursos minerais a consultá-los sempre que houver um projeto de
mineração, é parte da legislação do setor. No caso da ONU, tem a Comissão de Recursos Humanos e Negócios criada por John Ruggie, que discute seguidamente o tema. O problema é que acaba tendo muita ênfase no lado voluntário.
Como assim?
Adriano Campolina
– Como se as empresas pudessem aderir a um código voluntário de
comportamento. Muitos desses processos internacionais acabam ficando com
foco no voluntário, não obriga as empresas a cumprirem a lei. Esse lado
regulatório está faltando. Mas outra coisa que as pessoas debatem, como
você me perguntou, é sobre o nível de imposto que a sociedade deveria
impor sobre essas atividades, considerando o dano de largo prazo que
elas trazem. A mineração a céu aberto, por exemplo, é muito poluente,
tem um impacto ambiental profundo. E depois que a mina fecha vai demorar séculos até que aquele espaço possa ter outro uso.
O
problema é que a sociedade precisa do minério, embora a gente saiba que
nem sempre os que estão oferecendo seu espaço para minerar é que serão
beneficiados com o produto tirado de suas terras...
Adriano Campolina
- Isso. Mas, vamos colocar assim: como a sociedade, de alguma maneira,
através dos impostos cobrados às empresas, pode garantir algum retorno,
de forma que se possa mitigar os danos e ao mesmo tempo compensar
adequadamente as comunidades? Seja por compensação financeira direta,
seja por realocação... Tem um debate importante aí porque em países como
o nosso, onde se tem um percentual muito grande do PIB que vai para a
atividade privada, principalmente agricultura e mineração, há um risco
porque são atividades muito degradantes do meio ambiente e destruidoras
do tecido social. É preciso, como país, pensar cem anos para a frente:
como taxar a empresa agora para garantir compensação das comunidades e
para garantir que os impactos sejam diminuídos. Outra coisa é a
participação das comunidades no debate sobre o projeto.
Sim,
mas sabemos também que as audiências públicas, muitas vezes, são
absolutamente ineficazes. As pessoas que conseguem se sentir atraídas
para o encontro, sempre reclamam de falta de diálogo e de entendimento.
Adriano Campolina
– Vários países reconhecem o consentimento prévio, mas na hora que
chega lá no nível da comunidade a briga é pesada, tem ameaça de morte,
processos de grilagem de terra que são claros. Tem um hiato entre a
ideia do consentimento prévio informado e a prática das comunidades, que
normalmente são muito pobres e isoladas, que acabam ficando
vulneráveis, à mercê de interesses muitos grandes.
Sobre
taxar as empresas, é claro que seria o mais adequado. Só que aqui, por
exemplo, o que se vê é que os governos agem de outra forma, dão
incentivos, com medo de perderem sua “galinha dos ovos de ouro”. O
próprio prefeito de Mariana, depois da tragédia, comentou que toda a cidade estava muito dependente da mineração.
Adriano Campolina – Pois é, e só se lembra disso quando acontece uma questão grave como essa de Mariana.
A Cidade do Cabo, aí na África do Sul, está vivendo uma seca muito séria, fala-se até no Dia Zero, quando as torneiras estarão secas. As empresas estão participando do debate?
Adriano Campolina -
Teve um debate interessante, que era para onde vai a água: para
agricultura irrigada ou para o pessoal beber? Porque a região do Cabo é
de fortíssima agricultura irrigada de uvas e vinho e de frutas. Produção
que tem um consumo de água tremendo, e enquanto isso, a cidade está sem
água. Recentemente eles prorrogaram o Dia Zero para junho e a razão
disso foi que o governo conseguiu um acordo com os empresários de
agricultura para eles usarem menos água. Mostra a relação direta entre a
atividade econômica e a habilidade de as pessoas beberem água ou não.
O mundo precisa de tanto minério? O mundo precisa de tanta produção do agronegócio?
Adriano Campolina – O mundo dos ricos precisa cada vez mais, mas as comunidades do entorno não recebem qualquer benefício dessas atividades.
E tem outro jeito de fazer para não perdurar essa situação como em Papua ou em tantos outros lugares?
Adriano Campolina –
Existem experiências interessantes de formas de produção econômica mais
sustentáveis. Na agricultura, por exemplo, é possível produzir
alimentos com distribuição melhor. A questão é que há uma super
concentração de poder e dinheiro entre poucas empresas de tamanho
imenso. É tão grande que não se consegue ter uma relação de poder na
sociedade que faça com que
elas, de fato, redistribuam os benefícios daquela exploração. As
empresas acabam sem nenhum xeque de poder, põem o estado para competir
um com outro sobre quem dá mais incentivo, ao invés de se perguntar:
precisamos desse produto? Como fazer para que as pessoas do entorno
dessa produção sejam, de fato, beneficiadas?
Como se constrói sustentabilidade? Esse crescimento enlouquecido em
busca de commodities minerais e agrícolas tem levado a uma exacerbação
da desigualdade de forma assustadora. Todo mundo está falando que
desigualdade é um problema, mas ninguém fala sobre a solução. É
distribuir!
E como tem que ser feita essa distribuição?
Adriano Campolina
- Através de impostos, de salários decentes para os trabalhadores. As
empresas têm uma responsabilidade imensa na solução da desigualdade, mas
estamos contaminados com uma visão de curto prazo que acaba só
beneficiando aqueles que não precisam. Temos 99% sofrendo as consequências para que o 1% que se beneficia continue se beneficiando.
Quando
comecei a estudar o desenvolvimento sustentável, já faz década e meia, a
proposta das empresas era mudar o rumo dessa prosa com programas
sociais. Mas não é isso o que está acontecendo.
Adriano Campolina
– Programas sociais corporativos são bons, mas solução mesmo é que haja
regulação muito forte do setor, com taxação. E isso é através do
estado, é a lei. A empresa faz um programa gastando um milhão de dólares
num projeto e, a mesma
empresa, busca um incentivo fiscal na ordem de bilhões! A perda da
sociedade é bárbara! Não sou contra empresas, elas têm um papel
fundamental.A questão é que se o comportamento delas não for regulado e
se não houver incentivo para que elas distribuam a renda, preservem o
meio ambiente e respeitem o direito das pessoas, a tendência é que elas
não façam isso. E a pior empresa do setor estabelece o padrão para as
outras. Se a sociedade não forçar o governo a exercer seu papel como
regulador, as empresas vão nos destruir.
Como você vê o futuro?
Adriano Campolina -
Eu vejo com preocupação, uma divisão internacional do trabalho cada vez
pior. Os países pobres vão ficar com a indústria suja, com tudo que
polui, e aqueles que estão evoluindo para uma economia mais moderna
acabam tendo um diferencial. Mas, mesmo nos mais ricos, a desigualdade
acontece. A profundidade com que a desigualdade está avançando acaba
pondo em risco o próprio sistema. Porque até para excluir as pessoas tem
que ter um limite. Chega uma hora que não dá! Os níveis de pobreza
estão aumentando e a tendência que preocupa é, por um lado, várias
formas de conflito em torno do acesso aos recursos naturais e, ao mesmo
tempo, vários conflitos armados em torno do acesso aos recursos. Aqui na
África do Sul, o nível de disputas entre os países ricos e a China é
obvio. Isso tudo, num contexto de aquecimento global, gera um nível de
exclusão social tremendo. As pessoas se movem, vão buscar sua
sobrevivência em outros países. Imagina se adiciona a isso um potencial
processo de exclusão pelas mudanças climáticas, em que não se consegue
mais produzir alimento. Para onde elas vão?
Para não ficarmos só nas catástrofes, fale um pouco sobre as alternativas.
Adriano Campolina
- Alguns países conseguiram alternativas de políticas, tanto do
comportamento de empresas quanto para reduzir a desigualdade. O caso
boliviano, por exemplo, a criação da Lei da Mãe Terra dando poder à população indígena que nunca teve controle sobre suas terras. Na Índia eles estabeleceram um programa de emprego rural que
deu certo e agora está sofrendo com falta de verbas, que garante às
pessoas mais pobres da comunidade cem dias de trabalho. O próprio
Brasil, com a experiência do aumento do salário mínimo e do Bolsa
Família que gerou a inclusão. Existem muitas fórmulas, mas o que me
assusta é que não se dá visibilidade a elas.
Crédito da foto: Divulgação
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