quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 

Ao tentar aprovar obra polêmica no Paraná, a francesa Engie profetiza “iminente apagão energético” no estado

Ao tentar aprovar obra polêmica no Paraná, a francesa Engie profetiza "iminente apagão energético" no estado

Para a Engie, que é a maior empresa privada no mercado energético brasileiro, o Paraná corre risco iminente de sofrer um apagão tão dramático quanto o do Amapá. No mês passado, este estado ficou 90% sem energia e a capital, Macapá, passou cinco dias no escuro, dependendo de um rodízio emergencial para a população retomar minimamente suas vidas após protestos contra o governo irromperem pelas ruas. 

O abastecimento no Amapá só foi restabelecido no final de novembro, 22 dias após um incêndio ter desencadeado o desastre que comprometeu três transformadores da mais importante subestação da região. No comunicado institucional que a Engie publicou, no dia 25 de novembro, intitulado “Roraima, Paraná e diversos estados sob a iminência de apagão”, a empresa faz críticas à infraestrutura energética do estado administrado por Ratinho Júnior (PSD).

O braço brasileiro da multinacional Engie, com sede na França e presença em 70 países, nos cinco continentes, compara diretamente o Paraná ao Amapá na manchete. No texto, diz que “no Sul do país, o Paraná também está prestes a enfrentar muitas dificuldades”. E continua: “a carência energética já pôde ser percebida na região ao longo dos últimos anos, principalmente no setor de agronegócio e industrial, que têm sofrido grandes oscilações e prejuízos”. 

Ao tentar aprovar obra polêmica no Paraná, a francesa Engie profetiza "iminente apagão energético" no estado

Texto divulgado no site da Engie

Catástrofe de ocasião

Só que se o apagão que a Engie profetiza ocorrer no Paraná, na mesma proporção do visto no Norte do Brasil, prejudicaria 10 milhões de habitantes – doze vezes mais que os 762 mil atingidos pelo desastre no Amapá. Contudo, na hora de embasar suas suposições sobre o estado, a empresa privada não mostra evidências. Mais que isso, omite que sua preocupação súbita com o estado, onde opera há 20 anos, coincide com a suspensão pela Justiça Federal de um negócio bilionário – o Projeto Gralha Azul* (saiba mais sobre o polêmico projeto nesta outra reportagem)

No comunicado da Engie, o único trecho assinado é atribuído a Márcio Daian Neves, diretor de implantação desse projeto da multinacional no Paraná. E é bem mais acanhado no tom. Em vez de afirmar que o Paraná corre risco iminente de apagão, como ameaça a manchete, ele se limita a dizer que a região de Ponta Grossa enfrenta “defasagem dos sistemas de transmissão atuais”, e que esta circunstância “incorre em problemas de fornecimento para o setor industrial e o agronegócio”.

Mas, então, por quê? O que a Engie ganha com o catastrofismo?

Falando pela Copel

Procurada pela reportagem, a Copel (Companhia Paranaense de Energia) não quis comentar as críticas da empresa privada à infraestrutura energética do Paraná. A companhia, que é responsável pelo abastecimento de 392 dos 399 municípios do estado, disse “não possuir autoridade” para discutir um apagão iminente e recomendou contatar o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) – órgão vinculado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Procurado, o ONS não retornou o contato até o fechamento da reportagem.

Se “quem cala, consente”, a Copel perdeu a oportunidade de eliminar uma fonte de desinformação, pois a empresa pública anunciou, em 2019, um investimento maior que o Projeto Gralha Azul no Paraná. De início, seriam R$ 2,1 bilhões só na iniciativa Paraná Trifásico. Aliás, chamada pelo governo estadual de “o maior programa [do tipo] no Brasil”, uma vez que o objetivo é substituir  25 mil quilômetros de rede monofásica, instalada nos anos 1980 no interior do estado, pela mais avançada, trifásica, até 2025. 

Se a Engie está preocupada com o agronegócio, a Copel poderia acalmá-la. Pois o grande beneficiado pela ação da empresa pública paranaense é esse setor da economia, já que o trifaseamento criaria “redundância no fornecimento”, ou seja, nas palavras da própria companhia, “redes [de energia] que hoje estão próximas, mas não se conversam, passarão a ser interligadas”. “Se acabar a energia em uma ponta, a outra fornece o abastecimento e, em caso de desligamentos, os produtores rurais terão o restabelecimento da energia mais rápido”, completa a Copel.

“O programa vai transformar as cadeias produtivas do leite, da avicultura, piscicultura e suinocultura e, acima de tudo, vai levar uma energia de qualidade, garantir que não tenha queda e dar a tranquilidade para o Paraná crescer nos próximos 30 anos”, garantiu o governador Ratinho Júnior, em outubro de 2019, na cerimônia de lançamento do Paraná Trifásico, na presença da diretoria da Copel, no Palácio Iguaçu.

Na contramão do que diz a Engie sobre o Paraná, na mesma cerimônia a Copel anunciou que, além do programa, mais R$ 2,6 bilhões  seriam investidos no estado, entre 2019 e 2021, na infraestrutura de distribuição. “Estão previstas a construção de 42 novas subestações, mais de 7 mil quilômetros de linhas de distribuição de alta e média tensão e milhares de novos religadores, chaves, reguladores de tensão e transformadores de potência”, foi divulgado na época.

Preocupação súbita

Se há investimentos na infraestrutura energética do Paraná e os órgãos que regulam o setor não se arvoram em alardear o risco de um apagão iminente no estado, qual a razão da Engie investir no anúncio do desastre? Logo agora? A multinacional francesa não chegou ontem aqui, então poderia estar fazendo esse alerta há mais de 20 anos. Ela está desde 1998 no Brasil e no  Paraná. Só que até 2016, antes da campanha de marketing para reposicionamento da marca, a Engie respondia pelo nome de Tractebel Energia.

No Paraná, a Tractebel é a concessionária, até 2028, das usinas de Salto Osório e Salto Santiago. E, recentemente, a empresa sinalizou o desejo de reforçar sua posição no estado, aventando a aquisição do controle acionário da Usina de Foz do Areia, pertencente à Copel. A manifestação de interesse veio depois de o governo federal sinalizar a renovação de concessões desse tipo por mais 30 anos nos casos em que a gestão passar à iniciativa privada.

Detentora de 6,3% da capacidade instalada de geração de energia no Brasil, recentemente a Engie diversificou sua atuação no mercado, ingressando no negócio das linhas de transmissão. Ela tem dois empreendimentos em curso, com os quais vai debutar no setor, que tem um novo leilão marcado para 17 de dezembro deste ano. Um deles consiste em 1.800 km de linhas de transmissão ligando o Tocantins ao Pará, passando por 22 municípios.

O outro projeto da Engie acontece no Paraná e estava parcialmente suspenso pela Justiça Federal desde 5 de outubro, após o Ministério Público Federal (MPF) e o Estadual (MP-PR) ouvirem grupos ambientalistas sobre como o traçado da Engie para as linhas de transmissão implicaria na derrubada de 202 mil árvores, entre as quais muitos exemplares de espécies em extinção como – 14 mil araucárias, 4.313 imbuias e 2.335 de cedros rosa. Só que isto puxou a ponta de um novelo, cuja trama chegou ao licenciamento ambiental de todo o negócio bilionário.

Licenciamento ambiental

Os órgãos públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental aceitaram passivamente que o Projeto Gralha Azul atravesse duas áreas de preservação, a APA da Escarpa Devoniana e as Várzeas do Tibagi, e liberaram as obras, que já estão 63% concluídas. E talvez estivesse ainda mais perto da conclusão se não fosse a intervenção judicial do Observatório Justiça e Conservação (OJC),  do Instituto de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) e da Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica (RMA), que infelizmente, foi derrubada ontem. 

“É muito curiosa [a escolha dos locais de desmatamento, onde subirão as torres que sustentam a linha de transmissão], porque eles [a Engie] não escolheram um traçado próximo à rodovia, ou áreas de cultivo de exóticas como pinus e eucalipto? Provavelmente porque estas indenizações custariam mais aos cofres da Engie. Há alternativas mais racionais de traçados, a UFPR encontrou duas opções menos drásticas para a linha de transmissão”, comenta o ambientalista Giem Guimarães, diretor-executivo do OJC.

A derrubada de 202 mil árvores é a parte visível da disputa judicial, documentada pelo OJC, que reuniu fotos do estrago ambiental que significa instalar novas torres de transmissão – e o Projeto Gralha Azul tem 2.118 delas. A Justiça Federal não paralisou a obra por dó das árvores, mas por entender que essa proposta, que reduz os custos de implantação do projeto, pode ter sido licenciada contornando exigências legais. 

É que o licenciamento ambiental foi fatiado em sete áreas, cada uma com menos de 50 hectares de vegetação nativa. Para os ambientalistas e para os MPs, cuja desconfiança foi acolhida liminarmente pela Justiça Federal, há indícios para suspeitar do procedimento, pois ele desobriga o pronunciamento do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na análise do caso concreto. Sem o órgão federal, as licenças puderam ser expedidas somente pelo Instituto Água e Terra (IAT), do governo estadual. Guardem essa sigla na memória.

Ao invés de licenciar o mega projeto energético na íntegra, o IAT concordou em tratar cada área isoladamente. Então as 728 torres de Ponta Grossa a Ivaiporã e as 295 de União da Vitória a São Mateus do Sul, por exemplo, foram tratadas separadamente. Só que a primeira prevê a supressão de 49,46 hectares de vegetação e a outra, respectivamente, de 48,5 hectares – quando a regra é dispensar o Ibama se o impacto é de 50 hectares ou menos. No total, o Projeto Gralha Azul suprime 218 hectares de vegetação – 4 vezes mais que o mínimo exigido para por o Ibama no licenciamento ambiental.

Reverter, reverter, reverter

“Nós tivemos uma liminar concedida em favor de organizações não governamentais no estado do Paraná, na Justiça Federal do Paraná, com a paralisação parcial da obra do projeto Gralha Azul. Essa liminar tem como base a argumentação de que o Ibama deveria participar do licenciamento da supressão de vegetação, em função do tamanho do projeto, e nós estamos questionando isso, entendemos que o processo foi todo feito de forma legal”, resumiu, do ponto de vista da empresa, o diretor presidente e de relações com os investidores da Engie, Eduardo Sattamini.

O pronunciamento é do último dia 6 de novembro, para os  acionistas da empresa, na videoconferência trimestral de resultados da Engie. “Esperamos em breve cassar essa liminar ou ter uma revisão por parte do juiz federal do estado do Paraná, ou caso não seja possível isso com o agravo do instrumento, a gente conseguir reverter isso no TRF4, em Porto Alegre”, avisou Sattamini, acalmando os presentes.

Responsável pelo Projeto Gralha Azul, Márcio Daian Neves, citado no comunicado catastrofista da Engie, manteve a moral no alto. “Estamos tomando todas as ações para revogar essa liminar, como foi comentado pelo Sattamini, esperamos fazer num curto espaço de tempo, de tal forma que a gente não tenha impactos aí na operação comercial prevista para 2021”, disse, depois de explicar que a suspensão determinada pela Justiça só paralisou a instalação física de quatro linhas de 500 KV. 

“Estamos antecipados”

Num trecho daquele comunicado institucional em que a Engie profetiza um iminente apagão no Paraná, ela diz que a paralisação das obras prejudica em especial os trabalhadores, que perderão sua fonte de renda.

“A suspensão do projeto, além dos riscos energéticos, também coloca em risco milhares de empregos atrelados a ele. Segundo o Sindicato da Construção Civil do Paraná, pelo menos 15 mil trabalhadores atuam direta e indiretamente no projeto e tendem a ser demitidos com embargo das obras gerando impactos sócio-econômicos significativos em tempos de pandemia”, argumenta a empresa.

O trecho acima é do dia 25 de novembro. Só que para os acionistas, alguns dias antes, o recado foi muito diferente: “para evitar os impactos no projeto nós conseguimos realocar todas as equipes para as demais frentes de trabalho, isso significa dizer que nós podemos evoluir e antecipar as demais frentes, e depois retornar para as frentes de 500 KV”. “Hoje nós ainda estamos antecipados em relação ao cronograma contratual”, insistiu Neves.

A íntegra desses pronunciamentos está divulgada no mesmo site da Engie em que o comunicado catastrofista foi publicado. Aliás, a gestão de Neves, à frente do bilionário Projeto Gralha Azul, merece um elogio. No leilão vencido pela multinacional, o prazo para o início da operação comercial é março de 2023. Mas com a gestão das frentes de trabalho ele planeja pôr as linhas de transmissão em operação comercial em setembro de 2021, um ano e meio antes.


*O Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou na quarta-feira (09/12) a liminar que suspendia as obras do Sistema de Transmissão Gralha Azul, da ENGIE Brasil Energia, no Paraná. A liminar da 11ª Vara Federal de Curitiba, agora revogada, foi concedida em ação civil pública apresentada por três organizações não-governamentais.

O Observatório de Justiça e Conservação respeita o trânsito da legalidade e aguarda as investigações, mas continua afirmando que, baseado em informações técnicas e científicas, existem indícios consistentes de graves irregularidades no licenciamento deste empreendimento. Acima de tudo, o OJC acredita ser necessário que os princípios da administração pública sejam observados, bem como a participação da sociedade nos debates a respeito da conservação de um meio ambiente equilibrado, que é um direito constitucional assegurado a todos os cidadãos.


Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Conexão Planeta

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Foto: reprodução Facebook Engie

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