Pecuarista investigado por incêndio no Pantanal vendeu gado para governador do MS
Polícia Federal afirma que focos dos incêndios começaram em quatro fazendas – uma delas de propriedade de Pery Miranda Filho, que chegou a ser detido e teve relações comerciais com Reinaldo Azambuja (PSDB); há suspeita de que fazendeiros incendiaram o bioma para abrir pasto
Entrar no Pantanal sul-mato-grossense, próximo a Corumbá, é encarar
uma vegetação destruída pelo fogo e tomada pelas cinzas. Não há nenhum
sinal de azul no céu, apenas fumaça e fuligem. Ao investigar a origem
desses incêndios, a Polícia Federal chegou a quatro pecuaristas da
região — que teriam colocado fogo em suas fazendas para abrir novos
pastos. Um dos investigados é Pery Miranda Filho, fazendeiro que já
vendeu gado para o governador Reinaldo Azambuja (PSDB), conforme revela
documentação a que a Repórter Brasil teve acesso.
O pecuarista Miranda Filho chegou a ser detido, em 14 de setembro, na
operação da PF que investiga os incêndios, pois foram encontradas armas
e munições em sua casa, mas foi solto no dia seguinte. Durante a ação
policial, batizada de Matáá (“fogo”, no idioma dos Guató, indígenas que
vivem perto das áreas atingidas), foram cumpridos dez mandados de busca e
apreensão. Uma das suspeitas dos policiais é que os pecuaristas tenham
combinado queimadas na região, na linha do que ocorreu com o ‘Dia do Fogo’ na Amazônia no ano passado.
Foi cruzando dados de focos de incêndio do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) com os da Nasa que Polícia Federal chegou à
fazenda Campo Dania, de propriedade de Miranda Filho, onde os focos
iniciais das queimadas foram registrados em 1° de julho. As relações
comerciais entre Miranda Filho e o governador Reinaldo Azambuja, no
entanto, ocorreram a partir de outra propriedade do pecuarista: a Bahia
Rica, também localizada em Corumbá. Foi de lá que, em janeiro de 2018,
saiu o gado negociado com a fazenda Taquarussu, que pertence ao
governador, segundo documentos obtidos pela reportagem.
O advogado de Miranda Filho, Otávio Ferreira Neto, nega que seu
cliente tenha colocado fogo na fazenda Campo Dania. “Esse tipo de
queimada é um método ultrapassado, que não é mais utilizado”, afirmou. O
advogado disse ainda que a propriedade pertencia ao pai de Miranda
Filho e que não há mais criação de gado no local.
O governador Azambuja informou, em nota, que não tem conhecimento
sobre a operação da PF, mas que, “como produtor rural, há muitos anos
mantém relações comerciais com todo o mercado de Mato Grosso do Sul”.
Questionado se pretende suspender negociações com o fazendeiro
investigado até a conclusão do inquérito, ele não respondeu.
Azambuja é um dos maiores pecuaristas do Estado. Na última declaração
de patrimônio entregue ao Tribunal Superior Eleitoral, quando disputou a
reeleição em 2018, ele informou possuir nove imóveis rurais, entre
fazendas e chácaras, com um patrimônio que soma R$ 38,7 milhões.
Em julho, o tucano foi indiciado pela PF
pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de
organização criminosa por supostamente ter recebido R$ 67 milhões em
propinas da JBS em troca de incentivos fiscais, que provocaram um
prejuízo de R$ 209 milhões aos cofres do Estado. O inquérito foi baseado
na delação premiada de executivos do grupo J&F, que afirmaram que
as propinas eram pagas em dinheiro.
Azambuja negou as acusações à época e afirmou à Repórter Brasil que
o inquérito da PF trata de “denúncia antiga, baseada em delações
premiadas sem qualquer credibilidade” e que não há “uma única prova de
que tenha recebido qualquer tipo de vantagem indevida da JBS”. O
governador disse ainda que provará sua inocência na Justiça.
(Confira a resposta na íntegra).
Uma Bélgica já foi perdida
Além da queimada suspeita na fazenda de Miranda Filho, a PF investiga
a possibilidade de incêndio criminoso em outras três fazendas
localizadas em Corumbá, de onde o fogo se alastrou entre 30 de junho e
16 de julho e foi responsável por destruir 25 mil hectares, área maior
que Recife (PE).
Entre os investigados estão Hussein Ghandour Neto, Antônio Carlos
Leite de Barros e Ivanildo da Cunha Miranda. Os três negaram, por meio
de seus advogados, que o fogo tenha se iniciado em suas fazendas de
forma intencional.
A defesa de Cunha Miranda disse que seu cliente “nunca colocou nem
mandou colocar fogo” em suas propriedades e que o fazendeiro “é vítima
dos incêndios”. O advogado de Gandhour Neto declarou que a fazenda alvo
da PF está em nome de seu cliente, mas é administrada pelo pai e o
irmão, mas que a família “desconhece qualquer situação de fogo
intencional dentro da área deles”. Leite de Barros é cardiologista em
Corumbá, além de pecuarista. Segundo o advogado Roberto Lins, seu
cliente não foi responsável pela queimada. “Ele tem amor pela terra.
Recebeu a fazenda como herança e sabe que esse tipo de queimada provoca
prejuízo”, afirmou.
Desde segunda-feira (28), os delegados da Polícia Federal foram
orientados pela Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, a
pararem de conceder entrevistas sobre o andamento da investigação. O
discurso oficial é que os próximos passos dependem do resultado da
perícia nos celulares e notebooks apreendidos.
A Repórter Brasil já revelou
que parte do fogo que devasta o Pantanal no vizinho Mato Grosso também
teve origem em fazendas de pecuaristas que vendem gado para o grupo
Amaggi, do ex-ministro,ex-senador e ex-governador Blairo Maggi, e para o
grupo Bom Futuro, de Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja
do mundo. Esses dois grupos empresariais, por sua vez, são fornecedores
das gigantes multinacionais JBS, Marfrig e Minerva.
Para identificar as cinco fazendas, a Repórter Brasil
usou um levantamento do Instituto Centro da Vida (ICV), com uma
metodologia semelhante à da Polícia Federal, que também cruzou dados do
Inpe e Nasa. O fogo que teve início nessas propriedades rurais voltadas
para pecuária, todas localizadas em Poconé (a 100 km da capital
Cuiabá), foi responsável por destruir 116.783 hectares, área equivalente
à cidade do Rio de Janeiro.
O Pantanal já perdeu 23% da sua área para as queimadas neste ano. A combinação entre o período seco e o uso de fogo por fazendeiros para abrir pastagens provocou 8,6 mil focos de incêndio somente em setembro de 2020 no bioma, segundo o Inpe. A área destruída neste ano é de cerca de 3 milhões de hectares, tamanho equivalente ao da Bélgica.
O cenário visto pela reportagem nas margens da BR-262, entre as
cidades de Miranda e Corumbá, é desolador. Nas áreas alagadas que
restaram do Pantanal, não mais se observam os até então onipresentes
jacarés – apenas um espécime carbonizado pelas chamas. Em meio às cinzas
e brasas, um cervo, atônito, caminha sozinho e sem rumo. Um tuiuiú –
ave-símbolo do Pantanal – arremete o pouso algumas vezes, como se não
encontrasse um lugar em meio à vegetação queimada.
*Colaboraram Ana Magalhães e Diego Junqueira
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