domingo, 23 de fevereiro de 2014

A linguagem dos bebês


A linguagem dos bebês

Interação entre crianças pequenas é diferente daquela delas com pais e mães

A pesquisadora Katia Amorim explica 
que a comunicação nessa fase é carregada 
de significados e elementos culturais

//Por Tory Oliveira
Engana-se quem pensa que o choro é a única forma que os bebês têm de anunciar o que querem antes de aprender a falar. 

Eles são capazes de se comunicar – não só com adultos, mas também com pares da mesma idade – em uma interação que envolve gestos e expressões carregadas de significados e de elementos culturais. 

As conclusões são fruto de pesquisa realizada pela médica Katia de Souza Amorim, especialista em psicologia do desenvolvimento humano da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em de Ribeirão Preto. 

Em seu último estudo, Katia e seus colaboradores acompanharam cerca de 40 crianças de até 13 meses em diferentes contextos: casa, creche e instituição de acolhimento. 

As interações foram gravadas em vídeo e analisadas posteriormente. 

O resultado mostra que os bebês têm uma linguagem carregada de sentidos que variam de acordo com o interlocutor e os estímulos recebidos. 

“Não existem a consciência ou o pensamento, mas intuitivamente os bebês conhecem os gestos. 

Eles de alguma forma diferenciam os parceiros, as crianças entre si e os gestos que eles fazem ou não fazem”, explica. 

Em entrevista por telefone, Katia conta mais sobre as investigações que realiza há duas décadas para entender a comunicação dos bebês e explica como o entendimento deles com um ser “falante” pode influenciar os cuidados nessa fase da vida, que passariam a ser entendidos como uma prática de educação.

 
Carta Fundamental: Desde 1994 a senhora pesquisa a comunicação dos bebês. Como nasceu o interesse pelo tema?

  Katia de Souza Amorim: Eu observava o processo de adaptação dos bebês na creche e a construção de suas relações com os adultos. 

Vimos que as formas como as mães e as educadoras mediavam essa inserção estavam relacionadas às concepções que elas carregavam acerca dos bebês e ao jeito como entendiam que eles deveriam ser cuidados. 

Depois, no doutorado, estudei como as questões históricas e culturais atravessavam os processos de desenvolvimento e as concepções sobre bebês. 

Os gestos que os adultos usam para falar com os pequenos são carregados de significação, e os da criança também. 

Por exemplo, o bebê se relacionava com a educadora de um jeito diferente do que fazia com a mãe. 

Uma das mães pegava o filho pouco no colo, já a educadora pegava muito. 

E o bebê sabia exatamente quem procurar, apesar de a educadora ser uma pessoa nova em sua vida. Quer dizer, ele não tinha um jeito único de se manifestar e conseguia dar vazão a expressões e significações de uma maneira importante. 

Diante de questões como essa, elaborei outros projetos para entender esses processos de comunicação e atribuição de sentido.

CF: Uma das conclusões da pesquisa é que o bebê é capaz de se comunicar antes de aprender a falar. Como a senhora chegou a essa conclusão?

  KA: O senso comum reza que o bebê apenas ri e chora. Contudo, descobrimos com as pesquisas que as interações dos pequenos ocorrem para além da mãe e que os recursos de comunicação usados são variados entre as diferentes pessoas. 

Como não conseguimos saber o que a criança pensa, o que depreendemos da comunicação e da própria intencionalidade reside nos gestos e na expressão. 

Um dos exemplos está na gravação em vídeo da interação entre dois irmãos gêmeos de 2 meses: o irmão toma o brinquedo da mão da irmã. 

Ela quer o objeto de volta e busca retomá-lo de diferentes maneiras, usando dois gestos com mãos e braços. 

No primeiro momento, ela estende a mão com a palma virada para cima e contempla o rosto e a mão dele, como se estivesse pedindo. 

Quando o irmão vira o corpo, ela vira a mão para baixo e tenta então tomar o objeto. Em uma criança dessa idade, não há imitação. 

Até porque na cena os adultos estavam em volta, conversando entre si, sem interagir. 

A menina olha para o irmão com a mão virada para cima, com expressão facial de expectativa. E quando ela não consegue a resposta, vai com a mão para baixo com uma expressão séria e tensa. 

Falar da intenção não quer dizer que a criança tenha consciência de que está pedindo, mas sim que os bebês façam o que alguns autores chamam de comunicação pré-reflexiva. 

Não existe a consciência ou o pensamento, mas intuitivamente ele conhece os gestos e faz o movimento de pegar. Isso é visto em situações muito diferentes. 

Eles de alguma forma diferenciam os parceiros, as crianças entre si e os gestos que eles fazem ou não fazem.

CF: Então o tipo de interação dos bebês é diferente entre pares e adultos?

  KA: Sim. Primeiro porque o bebê tem um tempo de concentração mais curto. 

Os processos interativos entre eles são mais breves e mais fluidos, mas ele pode ser retomado posteriormente em razão de novos encontros. 

Quando o bebê interage com o adulto, há muita interpretação. Se o bebê chora, o adulto interpreta (a causa) e intervém. 

O par de mesma idade não tem essa questão. Um bebê não interpreta o choro ou o comportamento do outro, mas o choro do outro promove comportamentos. 

Há uma cena de um bebê que está chorando no canto da sala e o outro, com 9 meses de idade, senta perto da porta e fica tentando abrir. 

Outro bebê de 13 meses estava no entorno, olha esse bebê que chora, vai até a porta sanfonada e procura abri-la junto com a outra criança. Eles pensaram ou mesmo combinaram? 

Não, mas existe uma capacidade de empatia pelo outro que faz com que esse bebê de 13 meses procure achar soluções, inclusive a de tentar consolar o outro. 

Eles fazem muito mais do que a gente pode imaginar.

CF: E quando começa esse processo de interação do bebê com outros e com os adultos?

  KA: O bebê mais novo que nós acompanhamos ao analisar esse processo de construção de significado foi de 5 meses de idade. São dois bebês deitados, um de 4 e outro de 5 meses. 

É o primeiro dia da creche do mais novo e o de 5 meses, que já estava há algum tempo na creche, fica olhando para o rosto do outro bebê. Ele olha fixamente, mas o de 4 meses observa tudo, menos o outro bebê. 

Assim, quase num suspiro, o de 5 meses bate o pé no colchão e consegue fazer com que o bebê olhe para ele. Ambos cruzam o olhar. 

Nós podemos falar que foi ao acaso, mas o de 4 meses volta a olhar para cima e o de 5 volta a usar esse recurso aparentemente construído ao acaso, ali na relação, para chamar a atenção do outro. 

São quatro vezes repetindo o mesmo recurso de bater o pé. É comunicação no sentido de passar uma ideia? 

Não. Precisamos entender que quando falamos em comunicação, não é de uma perspectiva intelectualizada, com palavras. 

Comunicação com significação trata-se de aferir quanto o seu comportamento transmite alguma coisa que catalisa a atenção e a ação do outro. E constrói-se com isso algum grau de interação e de comunicação com o outro.

CF: O fato de os bebês estarem em um ambiente coletivo, de creche, influi no processo de comunicação?  

  KA: Até há pouco tempo, as pessoas que pesquisavam esse tema trabalhavam com a observação direta do ambiente, sem o recurso da gravação em vídeo. 

Só que a gravação permite voltar às cenas e refinar o olhar para o que seria comunicação. 

Por outro lado, se eu for até a casa dessas crianças com a filmadora, provavelmente verei uma quantidade grande de recursos comunicativos aparecendo na relação do bebê com a mãe. 

Mas o fato de estar em casa com a mãe, situação em que o adulto já interpreta o choro do bebê e tenta resolver, a expressividade encerra-se na ação do adulto. 

Quando se está numa creche onde as crianças podem interagir, em que o colega pega o brinquedo, a resposta do bebê é muito diferente daquela observada com a mãe ou com a educadora. 

Como existe menos previsibilidade na resposta do outro e como os bebês são os parceiros mais frequentes, há uma exigência maior de que esse bebê busque resoluções das questões de forma mais intensa. 

O tipo de interação, sem mediações, exige recursos e maior competência de comunicação e de interação, que fica mais visível naquele ambiente. 

Não que não seja capaz em outros ambientes, mas talvez não seja tão visível e tão acessível como a gente vê no ambiente da creche.

CF: Como um professor que atua na Educação Infantil pode aproveitar os dados teóricos sobre a comunicação e a linguagem dos bebês?

  KA: Uma questão que sempre vem à tona é a de que o professor de Educação Infantil se sente muitas vezes impotente ou não fazendo aquilo que é contratado para fazer. Ele acha que o trabalho do professor é educar no sentido de ter um conteúdo, por exemplo, alfabetizar. 

A concepção ainda é com muito foco no cuidado. E, na verdade, se a gente consegue enxergar essas competências do bebê, conseguimos abandonar a visão de um ser totalmente incompetente para a de um bebê que já é expressivo, já está numa interação permeada por elementos culturais. 

Isso permite que se tenha cuidado com ele, mas inclusive educando-o para as relações com os outros. 

Esse tipo de pesquisa pode ser interessante para fornecer um olhar diferenciado a respeito da própria prática de cuidado, entendendo que ela também é uma prática de educação. 

(Entender que) o bebê já está imerso nos aspectos culturais e depreendendo-os e que o ensinamento não é de um conteúdo formal, mas de elementos culturais da vida. 

A importância é passar a valorizar, por exemplo, os processos interativos de um bebê com o outro.

CF: É possível dar um exemplo disso?

KA: Faz de conta que eu tenho dois bebês e eles estão disputando uma bola. Muitas vezes o educador vem e dá uma bola igual para cada um. Isso é uma coisa muito comum. 

Mas na hora que você dá uma bola para cada um, o que vemos é que ambos perdem interesse pela bola, porque o barato era ver a bola sendo movimentada pelo outro e nesse processo acontecem aprendizados, por exemplo, de como pegar, quando pegar, como respeitar que está com o outro e como se divertir vendo a bola rolar. 

Há um monte de questões que podem ser aprendidas no processo interativo que muitas vezes são interrompidas porque a educadora tem medo que as crianças se machuquem ou se frustrem. 

Ao observar os vídeos, vemos que quando os dois bebês têm uma bola, a graça acaba. 

A prática pode ser modificada no sentido de tomar cuidado, promover uma negociação cuidadosa entre as crianças, mas também de permitir essa negociação, porque ela é bastante proveitosa para o aprendizado e o desenvolvimento dos bebês.

Publicado na edição 55, de fevereiro de 2014

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