João Paulo Cunha ainda acredita que pode escapar da cadeia
Condenado por corrupção, ele – que já ocupou a Presidência da República – viu sua ambição abatida no auge
ALBERTO BOMBIG E ALINE RIBEIRO
31/01/2014 20h58
A decoração do escritório político de João Paulo Cunha
reflete suas devoções, paixões, memórias e aspirações. Há imagens de
São Francisco de Assis, bibelôs do São Paulo Futebol Clube, retratos de
família – e, em quadros devidamente emoldurados, páginas do Diário Oficial do
período em que o deputado petista, então presidente da Câmara, ocupou a
cadeira de presidente da República. Isso ocorreu duas vezes.
Numa
delas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
cumpria uma agenda fora do país e seu vice, José de Alencar, estava
internado com pneumonia. Na outra, ambos haviam viajado para o exterior.
Ocupar a Presidência, ainda que como substituto, foi o ponto mais alto
da carreira política de João Paulo. O mais baixo ele vive agora.
O
Supremo Tribunal Federal decretou sua prisão no dia 6 de janeiro. João
Paulo continua em liberdade até que o presidente do STF, Joaquim Barbosa,
volte de suas férias – isso está previsto para esta segunda-feira, dia 3
de fevereiro. De camiseta polo vermelha, calça jeans e tênis Vans, João
Paulo parecia relaxado na terça-feira passada em seu escritório em
Osasco, um sobrado amarelo de frente para uma praça arborizada.
Na manhã
quente de verão – provavelmente seu último verão em liberdade –, João
Paulo ainda achava que poderia escapar da prisão.
“Acredito nas pessoas, né? O ministro pode aguardar a definição final
da pena e só depois decretar minha prisão”, afirmou. O rosto dele, como
se pode ver pelo retrato ao lado, misturava tensão à calma aparente.
João Paulo foi o primeiro petista a contratar os serviços da SMP&B, a agência de Marcos Valério – para fazer sua campanha à presidência da Câmara dos Deputados, em 2003. Em 2004, quando tentou celeremente a reeleição ao mesmo cargo, ajudou a criar um clima de animosidade no Congresso, decisivo para as denúncias que trouxeram o mensalão à tona.
Entre esses dois momentos, fundamentais para sua derrocada, João Paulo viveu seu auge. E sonhou com glórias ainda maiores. Reeleito presidente da Câmara, seria um possível candidato do PT ao governo do Estado de São Paulo, em 2006. “Certamente teria um espaço grande”, diz. “Tinha condições de crescer bastante.” Tinha mesmo. Poderia ir ainda mais longe numa trajetória de ascensão constante, que começara 25 anos antes.
>> STF rejeita recursos e autoriza prisão imediata de João Paulo Cunha
João Paulo participou da criação do PT em Osasco em 1981. Elegeu-se vereador no ano seguinte, na primeira eleição disputada pelo partido. Tornou-se deputado estadual em 1991. Por cinco vezes, ganhou o posto de deputado federal – nas últimas duas disputas, como o mais votado do PT em São Paulo.
Em 1998, durante seu primeiro mandato como deputado federal, João Paulo sofreu um grave acidente de carro no Piauí. O automóvel caiu numa ribanceira, e João Paulo ficou quase 60 dias em recuperação, engessado do peito à cabeça. Lula acabara de perder a terceira eleição seguida para a Presidência da República.
Abatido pelos últimos acontecimentos, João Paulo pensou em largar a política. Decidiu estudar Direito para abrir um escritório de advocacia. Em 2002, tornou-se líder da bancada em Brasília, e isso o animou novamente. Como líder, trabalhou na campanha do presidente Lula. “Com o Lula eleito, havia a possibilidade de eu me tornar presidente da Câmara”, afirma. “Devia ter parado com tudo, mas enfim... Essas coisas não têm explicação.”
Para chegar à presidência da Câmara, João Paulo contratou a SMP&B, agência de Marcos Valério, no início de 2003. O tesoureiro petista Delúbio Soares e o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) apresentaram Valério e João Paulo. Nascia assim a proximidade entre o PT e Marcos Valério, o principal operador do mensalão.
Foi uma campanha vitoriosa, que custou R$ 150 mil – dinheiro pago pelo próprio PT, segundo João Paulo. Em outubro daquele mesmo ano, a SMP&B ganhou uma licitação e foi contratada como agência de publicidade da Câmara dos Deputados. A agenda de encontros de Valério registrou três encontros dele com João Paulo durante o período em que a licitação da Câmara estava em fase decisiva, uma delas no dia 3 de setembro.
(Em depoimento posterior à Câmara, em 2005, Valério chegou a afirmar que foi João Paulo quem o apresentou ao ex-ministro José Dirceu. João Paulo sempre negou essa afirmação, mas, também em depoimento aos deputados, confirmou ter mantido uma relação muito próxima com Valério.)
>> O cárcere que liberta a República
Em 2004, João Paulo quis se reeleger presidente da Câmara dos Deputados. Ele mirava longe. Permanecer no cargo era para ele uma plataforma de lançamento ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Os nomes tradicionais do PT em São Paulo estavam desgastados, e mais um ano à frente da Câmara daria a João Paulo a visibilidade necessária para uma candidatura.
A emenda permitindo a reeleição no comando do Legislativo fora apresentada ainda em 2003 pelo deputado Benito Lira (PP-AL). Se aprovada, a medida beneficiaria João Paulo e José Sarney (PMDB-AP), então presidente do Senado.
Os dois passaram a trabalhar juntos nos bastidores. O movimento rachou o PMDB, porque Renan Calheiros (AL) era o primeiro na linha sucessória de Sarney e não aceitava esperar mais dois anos. Lula não queria se indispor com a ala controlada por Renan e entregou João Paulo à própria sorte.
Com a emenda derrubada em plenário, João Paulo foi o grande derrotado. Na tentativa de dar uma demonstração de força ao Planalto, pedira votos pessoalmente para o projeto. O episódio terminou com o presidente da Câmara e o PT enfraquecidos, o PMDB dividido e a oposição vitoriosa. Foi também a primeira decepção de João Paulo com Lula.
Foi nesse ambiente de animosidade política que, numa manhã de segunda-feira, 6 de junho de 2005, Roberto Jefferson afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que o governo comprava apoio político. Dias depois, Marcos Valério deixava as sombras para se transformar no pivô financeiro do escândalo. Começava o pesadelo.
As investigações do mensalão colocaram a contratação da SMP&B pela Câmara dos Deputados sob suspeita. Elas revelaram que, no dia 4 de setembro de 2003, a mulher de João Paulo, Márcia Milanesio, fora até uma agência do Banco Rural, envolvido no escândalo, e sacara R$ 50 mil na boca do caixa.
Com a revelação, o mundo despencou para João Paulo no Congresso. “Exatamente no dia seguinte a essa reunião (entre João Paulo e Marcos Valério em setembro), o sr. João Paulo Cunha recebeu R$ 50 mil, em espécie, oriundos de cheque da SMP&B, disponibilizado pela agência do Banco Rural em Brasília.
E, apenas onze dias depois do recebimento desse dinheiro, o presidente da Comissão Especial de Licitação, que havia sido constituída e nomeada pelo acusado, assinou o edital, datado de 15 de setembro de 2003, que resultaria na contratação da SMP&B pela Câmara dos Deputados em 31 de dezembro de 2003”, afirmam os autos da Ação Penal 470. “A alegação de que João Paulo não tinha conhecimento de que os R$ 50 mil por ele recebidos foram repassados pela SMP&B também não pode ser aceita.”
Hoje, nove anos depois, João Paulo disse a ÉPOCA: “A gente precisava de R$ 50 mil para fazer pesquisas em quatro cidades: Jandira, Carapicuíba, Cotia e Osasco. Delúbio tornou viável esses recursos. As pesquisas foram feitas no segundo semestre de 2003. Delúbio disse que estava pedindo para disponibilizar no Banco Rural em Brasília e perguntou em nome de quem deveria enviar.
Respondi que no nome da minha mulher. Ela se identificou, deu identidade, assinou o xerox, pegou o recibo, passou para outro companheiro chamado Gelso, que pegou o dinheiro para pagar os institutos. E as pesquisas foram realizadas. Para você ver como há muita maldade”. O STF não acreditou nessa versão.
Condenado na Ação Penal 470 por corrupção passiva, peculato (desvio de recursos) e lavagem de dinheiro, João Paulo recebeu uma pena de nove anos e quatro meses de prisão em regime fechado, além da obrigação de pagar uma multa de R$ 370 mil. Ainda não sabe se precisará renunciar ao cargo de deputado nem se seu mandato será cassado.
Como a votação para o julgamento do crime específico de lavagem de dinheiro foi apertada no Supremo, os advogados do deputado apresentaram um tipo de recurso conhecido como “embargos infringentes”. Ele terá agora um novo julgamento e sua punição pode ser reduzida em três anos. Se isso ocorrer, migra do regime fechado para o semiaberto. “Estimo que, até abril deste ano, o Supremo analisará o recurso”, diz Alberto Zacharias Toron, advogado do caso.
“O ministro Joaquim Barbosa é um homem cruel”, diz João Paulo. De acordo com petistas, essa mágoa tem explicação. Ao longo dos sete anos em que se desenrolou a ação do mensalão, João Paulo acreditou até o último momento que seria absolvido. Prova disso foi ter se lançado candidato a prefeito de Osasco em 2012, no ano do julgamento, outra clara evidência de sua ambição.
A candidatura contrariava vários setores do PT, convencidos de que João Paulo colocara seu projeto político acima do partido, já que Osasco é uma das cidades mais importantes da Grande São Paulo. Poderia também atrapalhar os planos de Fernando Haddad na vizinha São Paulo. Somente quando foi condenado, em agosto, a dois meses da eleição, João Paulo procurou o então prefeito de Osasco, Emidio de Souza, para comunicar sua desistência.
Segundo seus amigos, esse foi o momento em que João Paulo mais esteve abatido desde a explosão do caso. Segundo disse numa entrevista, pensou até em se suicidar. Nesse momento, à mágoa com os ministros do STF se juntou à mágoa com o ex-presidente Lula. Quatro petistas ouvidos por ÉPOCA afirmaram que João Paulo esperava uma campanha movida por Lula, publicamente, em prol dos réus durante o julgamento. Ele imaginava que a popularidade de Lula pudesse acuar os ministros e pressioná-los pela absolvição. Lula, no entanto, permaneceu calado. Questionado por ÉPOCA, João Paulo nega ter mágoas e diz que Lula atuou internamente a seu favor no PT.
João Paulo nasceu em Caraguatatuba em 1958. Aos 6 anos, mudou-se com a família para um bairro periférico de Osasco. O pai trabalhava como vigia numa metalúrgica, a mãe era empregada doméstica.
Ainda pequeno, vendeu picolé na rua, legumes na feira, engraxou sapatos e etiquetou embalagens de produtos de limpeza numa fabriqueta da patroa da mãe. Aos 14 anos, foi registrado como vendedor de uma loja de esportes. Seu primeiro contato com o universo político se deu na Igreja Católica, refúgio usado pelos jovens naquele período de repressão da ditadura militar para discutir questões políticas.
A despeito de o objetivo inicial ser a espiritualidade, eram os temas sociais que dominavam os assuntos. “Eles tinham vontade de saber como era a questão da luta, perguntavam se eu tinha esperança de que o trabalhador seria um dia valorizado”, diz José Pedro, presidente do diretório do PT de Osasco, naquele tempo uma espécie de mentor de João Paulo na igreja e nos movimentos sociais. A partir daí, João Paulo se enveredou para a oposição sindical, até chegar à fundação do PT.
No primeiro ato de criação do partido em Osasco, em 1981, uma festa no ginásio de esportes com direito a forró, lambada, barraca de cachorro-quente e cerveja, João Paulo falou com Lula pela primeira vez. No ano seguinte, aos 24 anos, foi escolhido para representar o partido como candidato a vereador.
“Ele era o membro do grupo com mais liderança e acabou eleito”, diz Valmir Prascidelli, vice-prefeito de Osasco, contemporâneo de João Paulo na formação do PT. A família não foi contra, mas o pai de João Paulo ficara preocupado com o envolvimento do filho na política. “A gente nunca imaginava que ele chegaria aonde chegou”, diz Maria Aparecida Cunha, irmã mais velha de João Paulo.
“Em sua última semana de liberdade garantida, João Paulo alterna sua rotina entre os cuidados com a saúde (fez uma série de exames da coluna), a divulgação de uma revista produzida para tentar provar sua inocência e a visita de familiares, amigos e até padres e pastores que vão até sua casa prestar algum tipo de conforto espiritual. Dentro do PT, sua influência vem diminuindo. Ele ainda controla cargos no diretório estadual e faz indicações para a Ceagesp, a maior central de abastecimento de alimentos do país.
Não fosse o estouro do escândalo do mensalão em 2005, João Paulo, nome forte no PT, poderia ascender ainda mais em Brasília. Era essa sua vontade. Qual o limite? Dois caminhos se mostravam possíveis para ele após a candidatura ao Bandeirantes, caso vencesse a disputa pelo governo de São Paulo: a Vice-Presidência ou até mesmo a Presidência da República – únicos postos acima da presidência da Câmara.
Sonhos que, hoje, parecem impossíveis. “Minha pretensão é ter paz”, diz João Paulo, diante das relíquias que lembram o tempo em que, pelo menos por alguns dias, foi presidente da República.
Nenhum comentário:
Postar um comentário