segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Desmatamento na Amazônia afeta chuvas em todo o país

terça-feira, 27 de janeiro de 2015


Desmatamento na Amazônia afeta chuvas em todo o país

Ana_Cotta / Flickr

Desmatamento da floresta amazônica causa desequilíbro e afeta regime de chuvas no resto do país
Maria Guimarães - Revista Pesquisa FAPESP


Amazônia é 'bomba de água' para toda a América do Sul e seca que afeta parte do Brasil estaria relacionada a alterações neste bioma; pesquisadores veem risco de que floresta não consiga produzir chuva para suprir as próprias necessidades

A Amazônia não é apenas a maior floresta tropical que restou no mundo. Este sem-fim de verde entrecortado por rios serpenteantes de tamanhos e cores variadas também não se limita a ser a morada de uma incrível diversidade de animais e plantas. A floresta amazônica é também um motor capaz de alterar o sentido dos ventos e uma bomba que suga água do ar sobre o oceano Atlântico e do solo e a faz circular pela América do Sul, causando em regiões distantes as chuvas pelas quais os paulistas hoje anseiam. Mas o funcionamento dessa bomba depende da manutenção da floresta, cuja porção brasileira, até 2013, perdeu 763 mil quilômetros quadrados de sua área original, o equivalente a três estados de São Paulo.

Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não aponta o dedo para culpados. O que importa para ele é reverter esse processo e não apenas zerar o desmatamento, mas recuperar a floresta. No relatório “O futuro climático da Amazônia”, divulgado em outubro de 2014, ele deixa claro que o único motivo para não se tomarem providências imediatas para reduzir o desmatamento é desconhecer o que a ciência sabe. Para ele, o caminho é conscientizar a população. “Agora é um bom momento porque as torneiras estão secando”, afirma.

No relatório, elaborado a partir da análise de cerca de 200 trabalhos científicos, ele mostra que a cada dia a floresta da bacia amazônica transpira 20 bilhões de toneladas de água (20 trilhões de litros). É mais do que os 17 bilhões de toneladas que o rio Amazonas despeja no Atlântico por dia. Esse rio vertical é que alimenta as nuvens e ajuda a alterar a rota dos ventos. Nobre explica que os mapas de ventos sobre o Atlântico mostram que, no hemisfério Sul e a baixas altitudes, o ar se move para noroeste na direção do equador. “Na Amazônia a floresta desvia essa ordem”, diz. “Em parte do ano, os ventos alísios carregados de umidade vêm do hemisfério Norte e convergem para oeste/sudoeste, adentrando a América do Sul.”

Essa circulação viola um paradigma meteorológico que diz que os ventos deveriam soprar das regiões com superfícies mais frias para aquelas com superfícies mais quentes. “Na Amazônia, o ano todo eles vão do quente, o Atlântico equatorial, para o frio, a floresta”, explica.




Uma parceria com os russos Anastasia Makarieva e Victor Gorshkov, do Instituto de Física Nuclear de Petersburgo, tem ajudado a explicar do ponto de vista físico os fenômenos meteorológicos da Amazônia. Em artigo publicado em fevereiro de 2014 no Journal of Hydrometeorology, eles afirmam, com base em análises teóricas confirmadas por observações empíricas, que o desmatamento altera os padrões de pressão e pode causar o declínio dos ventos carregados de umidade que vêm do oceano para o continente.



O grupo analisou os dados de 28 estações meteorológicas em duas áreas do Brasil e viu que os ventos que vêm da floresta amazônica carregam mais água e estão associados a maiores índices de chuvas do que ventos que partem de áreas sem floresta e chegam à mesma estação.

Isso acontece, segundo os pesquisadores, por causa da bomba biótica de umidade, uma teoria proposta pela dupla russa em 2007 para explicar a dinâmica de ventos impulsionada por florestas.

Essa ideia completa a descrição feita pelo climatologista José Antonio Marengo, à época pesquisador do Inpe, de como a Amazônia exporta chuvas para regiões mais meridionais da América do Sul. A teoria da bomba biótica aplica uma física não usual à meteorologia e postula que a condensação da água, favorecida pela transpiração da floresta, reduz a pressão atmosférica que suga do mar para a terra as correntes de ar carregadas de água.




Os fundamentos da influência da condensação sobre os ventos foram apresentados em artigo publicado em 2013 por Anastasia e Gorshkov, em parceria com Nobre e outros colaboradores, na Atmospheric Chemistry and Physics, uma das revistas mais importantes da área. Por meio de uma série de equações, eles mostram que o vapor de água lançado à atmosfera pela transpiração da floresta gera, ao condensar, um fluxo capaz de propelir os ventos a grandes distâncias.


De acordo com Nobre, a nova física da condensação proposta por eles gerou, ainda durante a revisão do artigo, uma controvérsia com meteorologistas, que debateram o assunto furiosamente em blogs científicos com a intenção de derrubar a principal equação do trabalho.


Não conseguiram e o trabalho foi publicado. O pesquisador do Inpe explica a polêmica. “É uma física que atribui à condensação, um fenômeno básico e central do funcionamento atmosférico, um efeito oposto ao que se acreditava”, diz. “Será necessário reescrever os livros didáticos da área.”



Para dar a dimensão da dificuldade de diálogo entre físicos teóricos e meteorologistas, Nobre lembra que a física desenvolve um entendimento dos fenômenos atmosféricos a partir de leis fundamentais da natureza, enquanto a meteorologia o faz, em grande parte, com base na observação de padrões do clima do passado, cuja estatística é absorvida em modelos matemáticos. Tais modelos representam bem as flutuações climáticas observadas, mas apresentam falhas quando há alterações significativas no padrão.

É o caso agora, quando um novo contexto – ocasionado por desmatamento, mudanças globais no clima ou outros fatores – gera fenômenos climáticos inesperados para certas regiões, como chuvas mais torrenciais e secas mais extensas. A teoria física acerta onde extrapolações do passado erram, por isso é preciso, segundo ele, construir novos modelos climatológicos que recoloquem a física no centro dos esforços da meteorologia.



O momento agora é crucial porque o clima amazônico vem mudando. Secas importantes nessa região marcaram os anos de 2005 e 2010. “Antes a Amazônia tinha a estação úmida e a mais úmida, agora há uma estação seca”, diz Nobre. Os danos dessas secas na floresta não foram aniquiladores porque ela consegue se regenerar, mas o acúmulo dos danos aos poucos erode essa capacidade. Um efeito importante que já se observa, previsto há 20 anos por modelos climáticos, é um prolongamento da estação seca, que tem prejudicado a produção agrícola em porções do estado do Mato Grosso. 



A grande preocupação é que se chegue a um ponto de não retorno, em que a floresta já não consiga produzir chuva suficiente para suprir nem a si própria. Trabalhos de modelagem que levam em conta clima e vegetação indicam que esse ponto será atingido quando 40% da área original de floresta for perdida, um número que não é unânime. Segundo o relatório de Nobre, 20% da floresta já foi cortada e outros 20%, alterados a ponto de terem perdido parte de suas propriedades.



Se a teoria da bomba biótica estiver correta, os efeitos desse ponto de não retorno devem ser mais graves do que a savanização proposta pelo climatologista Carlos Nobre, irmão mais velho de Antonio. “Se a floresta perder a capacidade de trazer a umidade do oceano, a chuva na região pode cessar por completo”, diz o Nobre caçula. Sem água para sustentar uma savana, o resultado poderia ser uma desertificação na Amazônia. Se isso ocorrer, o cenário que ele infere para o Sul e o Sudeste do país poderia ser semelhante ao de outras regiões na mesma latitude: tornar-se um deserto.
Antonio Nobre não se arrisca a falar muito sobre São Paulo. “Meu relatório é sobre a Amazônia.”

Mas ele acredita que a seca por aqui não independe do que acontece no Norte. Em sua opinião, foi possível devastar boa parte da mata atlântica sem sentir uma redução nas chuvas porque a Amazônia era capaz de suprir a falta de água na atmosfera local. Mas isso já não parece acontecer mais. Ele aproveita o ensejo para sugerir que não apenas a floresta amazônica, mas também a que acompanhava a costa de quase todo o Brasil precisa ser recuperada imediatamente. Se não for por outro motivo, o esgotamento a que chegaram as represas que alimentam boa parte da população paulista deveria bastar como argumento.

A exportação de água desde a Amazônia para outras regiões do Brasil, sobretudo o Sudeste e o Sul, é uma realidade, por meio do fenômeno conhecido como rios voadores. Um indício dessa linha direta foram as intensas chuvas no sudoeste da Amazônia no início de 2014, praticamente o dobro do volume habitual, ao mesmo tempo que São Paulo passava pelo pior momento de uma seca histórica.

“A chuva ficou presa em Rondônia, no Acre e na Bolívia por causa de um bloqueio atmosférico, algo como uma bolha de ar que impedia a passagem da umidade. Isso criou uma estabilidade atmosférica, inibiu a formação de chuvas e elevou as temperaturas”, conta Marengo, agora pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ele é coautor de um artigo liderado por Jhan Carlo Espinoza, do Instituto Geofísico do Peru, que está em processo de publicação pela Environmental Research Letters e é parte dos resultados do programa Green Ocean (GO) Amazon, que tem apoio da FAPESP.

Não é possível, porém, afirmar o quanto essa relação determina a estiagem paulista. “Ainda não se sabe calcular quanto das chuvas do Sudeste vem da Amazônia nem quanto chega aqui trazido por frentes frias vindas do Sul, pela umidade carregada por brisas marinhas ou pela evaporação local”, diz. Para ele, o desmatamento pode ter um impacto no longo prazo, mas ainda é impossível dizer se ele está relacionado com a seca atual.


 “O Sudeste pode não virar um deserto”, pondera, “mas os extremos climáticos podem se tornar mais intensos”. Estudos usando modelos climáticos criados pelo grupo de Marengo já previam uma redistribuição do total das chuvas, com um volume muito grande em poucos dias e estiagens mais prolongadas, algo que já tem sido observado no Sudeste e no Sul do país nos últimos 50 anos.

Além desse efeito a distância, em escala nacional, a relação entre vegetação e recursos hídricos também se dá numa escala mais local, de acordo com o engenheiro agrônomo Walter de Paula Lima, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador científico do Programa Cooperativo de Monitoramento Ambiental em Microbacias (Promab) do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais.


Em seus estudos sobre o efeito das florestas (ou sua remoção) em microbacias hidrográficas, ele mostrou que a mata ciliar, que acompanha os cursos de água, ajuda a manter a boa saúde de pequenos rios. “O sistema Cantareira, que abastece São Paulo, é formado por milhares de microbacias”, conta. “As que estão mais degradadas não contribuem para o manancial.”

Essa avaliação, porém, carece de dados experimentais concretos. Segundo Lima, para se saber exatamente o efeito das matas ciliares nos mananciais seria necessário estudar uma microbacia experimental em que se possa medir propriedades dos cursos d’água com e sem a proteção de floresta, sem que haja outros fatores envolvidos. Um quadro praticamente inatingível.

Nenhum comentário: