Levantamento inédito feito pelo GLOBO revela que, entre 2005 e 2015, foram instaurados 699 processos por tortura no Rio
Ao passar por um posto da PM na Rocinha, Júlio (nome fictício), de 18
anos, aperta o passo e, com a cabeça, aponta a unidade. Foi ali, numa
tarde de junho de 2013, que o jovem diz ter sido submetido a uma sessão
de espancamento e humilhação por quase seis horas. Júlio conta que, até
hoje, sente o estômago arder devido à cera quente empurrada goela
abaixo, depois de receber choques elétricos e tapas na cara.
No final,
acrescenta, policiais ainda enfiaram sua cabeça num vaso sanitário cheio
de fezes. Nas outras duas vezes em que foi detido por suspeita de
envolvimento com traficantes, os castigos, afirma, se repetiram. Ele
garante que, na mais recente, há cerca de um ano, policiais civis
marcaram a ferro e fogo as iniciais de uma facção criminosa em seu braço
esquerdo.
Dezoito anos após a promulgação da lei 9.455/97, que pune o crime de
tortura, casos como o de Júlio ainda são frequentes. Nem todos, porém,
chegam à Justiça, porque muitas vítimas têm medo de fazer denúncias. E,
quando os casos vão aos tribunais, muitos são julgados como lesão
corporal ou maus-tratos, que têm penas menores.
Levantamento inédito,
feito pelo GLOBO nos arquivos do Tribunal de Justiça do Rio, revela que,
entre 2005 e 2015, foram instaurados 699 processos por tortura, em que
são acusados tanto agentes do Estado como milicianos, traficantes e
cidadãos comuns. Desses, 219 foram julgados até agora, com 197 (90%)
condenações em primeira instância.
Outra pesquisa, coordenada pela ONG Conectas e pelo Núcleo de Estudos
da Violência da USP, mostra que o Rio foi, no país, o estado com o
maior número de decisões em segunda instância envolvendo casos de
tortura, entre 2005 e 2010. Dos 75 casos levantados, apenas 22 envolviam
agentes públicos. Do total, dez foram absolvidos.
- Em direito, existe o que chamamos de cifra oculta, que é a
diferença entre os casos que efetivamente ocorrem e os que existem no
Poder Judiciário - explica o presidente da Comissão de Segurança Pública
da OAB-RJ, Breno Melaragno. - No crime de tortura, existe uma
dificuldade prática de se apurar a ocorrência. No caso de agentes
públicos, eles estão protegidos pela própria autoridade que o cargo lhes
confere. A tortura pelo Estado ainda é grande, principalmente em locais
com situação socioeconômica menos favorecida.
Hediondo, inafiançável e sem direito a anistia, o crime é punido com
pena de até 21 anos e quatro meses de prisão. Depois do que sofreu,
Júlio deixou o morro onde cresceu. Com três passagens pela 2ª Vara da
Infância e da Juventude por associação ao tráfico, ele jura que "sempre é
embuchado", ou seja, acusado injustamente pela polícia. E se lembra,
com detalhes, de cada vez em que foi detido.
- Perguntaram de onde eu era e respondi: Rocinha - diz, sobre quando
foi levado para uma delegacia da Zona Sul. - Aí disseram que eu era de
uma facção. Pegaram um ferro, esquentaram com o isqueiro e me marcaram.
Na outra vez, foram 12 PMs. Chamavam a sala do posto de quartinho da
saudade. Tinha de tudo: chave de fenda, alicate, pedaço de pau e fio
solto, que dava choque.
Na mesma Rocinha onde, há dois anos, o ajudante de pedreiro Amarildo
de Souza desapareceu após uma sessão de tortura, Rodrigo (nome também
fictício), de 18 anos, diz que não consegue esquecer o que passou sob o
poder de PMs. - Cheguei em casa, e eles já estavam na sala, sentados num sofá, com a
minha esposa ao lado. Eles me levaram para fora e me colocaram contra a
parede. Esfregaram a mão com uma luva de couro no meu peito, me
deixando sem ar - conta Rodrigo, que ficou com um marca no peito.
MEDO INIBE AS DENÚNCIAS
Uma pesquisa feita
pela Anistia Internacional em 2014 mostrou que 80% dos brasileiros temem
ser torturados em caso de prisão. O país ficou em primeiro lugar no
vergonhoso ranking, à frente de México, Turquia e Paquistão. - Muitas vezes, a vítima teme retaliação. As pessoas têm medo de
denunciar, principalmente se a tortura é causada por um agente público -
afirma o assessor de Direitos Humanos da Anistia, Alexandre Ciconello.
A tortura também está marcada na pele de Marcos (nome fictício), de
19 anos. Em 2013, enquanto cumpria sua segunda internação numa unidade
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), ele foi acusado
por colegas de alojamento de ter delatado um interno. Marcos conta que
foi espancado do meio-dia às 16h. Nenhum agente teria percebido o que
estava acontecendo. - Foram sete ou oito jovens, e o resto ficava vigiando.
Eles me deram
soco, chinelada, choque, mergulharam minha cabeça na privada.
Não
gritei porque estavam me enforcando. Desmaiei quatro vezes - diz ele,
que teve as iniciais de uma facção criminosa e a palavra "X9"
(informante) marcadas no peito e nas costas com uma lâmina de barbear. [percebam que o próprio depoimento do 'Marcos' comprova que não havia conivência dos agentes do Degase.]
Dois anos depois, Marcos move uma ação contra o estado em que pede
uma cirurgia plástica para remover as cicatrizes. A integridade física
de internos sob a tutela do poder público é responsabilidade dos seus
agentes. Aqueles que estavam de plantão no dia do espancamento de Marcos
poderiam ter sido punidos por omissão, mas, na corregedoria do órgão,
consta apenas uma sindicância para apurar dano ao patrimônio e lesão
corporal contra os próprios funcionários. Seis adolescentes foram
acusados pela tortura, mas absolvidos por falta de provas.
Também não faltam denúncias contra agentes do Degase. Em 2013, três
internas entre 15 e 17 anos relataram a defensores públicos o castigo
habitual no Educandário Santos Dumont, na Ilha do Governador: a
"bailarina".
As jovens contaram que, algemadas a grades acima de suas
cabeças, eram obrigadas a ficar nas pontas dos pés enquanto apanhavam.
Uma delas foi levada à delegacia para registrar o caso, mas omitiu o
detalhe cruel ao depor.[é
comum que qualquer criminoso quanto vai depor acusa os responsáveis
pela sua custódia. As internas agiram da forma padrão, tanto que não
houve provas e a que diz ter ficado no escuro entre lacraias e baratas
não apresentou nenhuma lesão.]
Segundo anotações da Defensoria Pública, as internas teriam batido
nas grades do alojamento para pedir aos agentes que socorressem uma
delas, que passava mal. Como estava de noite, os funcionários teriam se
irritado com o barulho e decidiram puni-las. Uma das adolescentes relata
ter ficado das 20h às 3h na posição da "bailarina" num cômodo escuro,
infestado por baratas e lacraias.
EM BANGU 10, ESPANCAMENTOS SERIAM DIÁRIOS
As
violações de direitos humanos em prisões e unidades do Degase são
monitoradas desde 2011 pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à
Tortura. O órgão, ligado à Alerj, identificou indícios de tortura em
quase todas as 50 visitas que fez em 2014. O caso mais crítico é o de
Bangu 10, onde, segundo presos, há espancamentos diários. - Pessoas privadas da liberdade estão em situação mais vulnerável.
Elas falam muitas coisas, mas ninguém quer ir além. A tortura está
institucionalizada e banalizada no sistema prisional - afirma a
coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do
Estado, Roberta Fraenkel.
[não
pode ser olvidado que o Complexo de Bangu é o maior do Rio e guarda
milhares de bandidos - condenados ou aguardando julgamento - e nesses
locais é onde se concentra o maior número de 'inocentes' e 'vítimas da
polícia'.
Nem em um seminário tem tanta gente boa quando em locais como o Complexo Penitenciário de Bangu.]
Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), das 12
sindicâncias abertas para investigar tortura entre 2012 e 2014, só três
estão em curso - as demais foram arquivadas. A Seap e as polícias
Militar e Civil informaram que suas corregedorias investigam todos os
casos de que tomam conhecimento.
Nos últimos cinco anos, a PM abriu 15
procedimentos, envolvendo 91 policiais, inclusive os 25 que respondem
pelo desaparecimento de Amarildo. Desde 2010, 18 PMs já foram expulsos
por causa da prática de tortura. Já o Degase afirmou que qualquer
denúncia "é prontamente apurada", com abertura de sindicância pela
corregedoria.
[o Amarildo foi assassinado por traficantes - muito provavelmente delatou algum ou tentou dar um banho e dançou.
A Polícia sabe disso, até o Beltrame, mas o politicamente correto exige que a culpa seja jogada sobre a polícia.
Quanto
mais desmoralizada a policia ficar melhor para os governantes. É bem
mais simpático à população ser levada a acreditar que um dos seus foi
assassinado por policiais e os autores serão punidos do que receber
provas que a vítima tentou enganar traficantes e se danou.]
Fonte: O Globo
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