Bandidos & Letrados
“Bandidos & Letrados” foi
publicado no Jornal do Brasil em 26 de dezembro de 1994. Pouco mais de
20 anos se passaram e o texto continua essencial para o entendimento da
criminalidade brasileira. Os últimos casos absurdos de menores estuprando uma menina no banheiro da escola e de menores esfaqueando pessoas no Rio de Janeiro nos fazem pensar sobre o abismo em que o Brasil se encontra.
Bandidos & LetradosAmigos sugerem-me que escreva alguma coisa sobre o caso do banqueiro-cineasta Moreira Salles, que se notabilizou menos como diretor de filmes do que como protetor do traficante Marcinho VP. Seria bom escrever, sim. Na verdade, já escrevi. Escrevi com cinco anos de antecedência, e o fiz não por ser dotado de especiais virtudes proféticas, mas por viver num país acachapantemente previsível.
Sim, onde as pessoas não pensam, elas agem por reflexos condicionados, e com um pouquinho de observação o mais sonso aprendiz de Pavlov já fica sabendo tudo o que vão pensar, dizer, fazer e padecer até o último dia de suas vidas, se é que isso é vida. “Bandidos & Letrados” foi publicado no Jornal do Brasil em 26 de dezembro de 1994 (depois reproduzido em O Imbecil Coletivo, Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997).
O sr. Moreira Salles e Marcinho VP já estavam lá, sem os seus nomes, é certo, mas descritos com todos os detalhes da programação cibernética que molda os seus destinos padronizados. Na verdade, nunca me senti tão pouco profeta como ao constatar agora, pela milésima vez, que Aquilo Del Nisso. Aquilo sempre dá nisso.
É um miserável e repetitivo samsara. Terei de escrever, agora, sobre aonde vai dar a gestão do sr. Luís Eduardo Soares no cargo de guru policial, sobre aonde vai dar o seu plano de armar os habitantes dos morros (alegadamente para que “se policiem a si mesmos”) após ter desarmado os habitantes do resto da cidade? Ora! Vou exercitar meus dons proféticos onde pelo menos haja alguma surpresa. O Brasil não precisa de profetas. Precisa apenas de cidadãos capazes de admitir o peso do óbvio antes de ser esmagados por ele. Leiam e verão. –O. de C.
Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo o mundo conhece mas que jamais é mencionada, porque se tornou tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?
De Capitães da Areia até a novela Guerra sem Fim,
passando pelas obras de Amando Fontes, Marques Rebelo, João Antônio,
Lêdo Ivo, pelo teatro de Nelson Rodrigues e Chico Buarque, pelos filmes
de Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Rogério
Sganzerla e não-sei-mais-quantos, a palavra-de-ordem é uma só, repetida
em coro de geração em geração: ladrões e assassinos são essencialmente
bons ou pelo menos neutros, a polícia e as classes superiores a que ela
serve são essencialmente más (1).
Não conheço um único bom livro
brasileiro no qual a polícia tenha razão, no qual se exaltem as virtudes
da classe média ordeira e pacata, no qual ladrões e assassinos sejam
apresentados como homens piores do que os outros, sob qualquer aspecto
que seja. Mesmo um artista superior como Graciliano Ramos não fugiu ao
lugar-comum: Luís da Silva, emAngústia, o mais patológico e feio
dos criminosos da nossa literatura, acaba sendo mais simpático do que
sua vítima, o gordo, satisfeito e rico Julião Tavares — culpado do crime
de ser gordo, satisfeito e rico.
Na perspectiva de Graciliano, o único
erro de Luís da Silva é seu isolamento, é agir por conta própria num
acesso impotente de desespero pequeno-burguês: se ele tivesse enforcado
todos os burgueses em vez de um só, seria um herói. O homicídio, em si, é
justo: mau foi cometê-lo em pequena escala.
Humanizar a imagem do delinqüente,
deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o
cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e
cumpridor dos seus deveres — que neste caso aparece como conformista
desprezível e virtual traidor da classe —, eis o mandamento que uma
parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que
um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá
discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo “científico”.
À luz da “ética” daí resultante, não
existe mal no mundo senão a “moral conservadora”. Que é um assalto, um
estupro, um homicídio, perto da maldade satânica que se oculta no
coração de um pai de família que, educando seus filhos no respeito à lei
e à ordem, ajuda a manter o status quo? O banditismo é em suma,
nessa cultura, ou o reflexo passivo e inocente de uma sociedade injusta,
ou a expressão ativa de uma revolta popular fundamentalmente justa.
Pouco importa que o homicídio e o assalto sejam atos intencionais, que a
manutenção da ordem injusta não esteja nem de longe nos cálculos do pai
de família e só resulte como somatória indesejada de milhões de ações e
omissões automatizadas da massa anônima. A conexão universalmente
admitida entre intenção e culpa está revogada entre nós por um atavismo
marxista erigido em lei: pelo critério “ético” da nossa
intelectualidade, um homem é menos culpado pelos seus atos pessoais que
pelos da classe a que pertence (2).
Isso falseia toda a escala de
valores no julgamento dos crimes. Quando um habitante da favela comete
um crime de morte, deve ser tratado com clemência, porque pertence à
classe dos inocentes. Quando um diretor de empresa sonega impostos, deve
ser punido com rigor, porque pertence à classe culpada. Os mesmos que
pedem cadeia para deputados corruptos fazem campanha pela libertação do
chefe do Comando Vermelho. Os mesmos que sempre se opuseram
vigorosamente à pena de morte para autores de homicídios citam como
exemplar a lei chinesa que manda fuzilar os corruptos, e repreendem o
deputado Amaral Netto, um apologista da pena de morte para os
assassinos, por ser contrário à mesma penalidade para os crimes de
“colarinho branco”.
O Congresso, ocupado em castigar vulgares
estelionatários de gabinete, mostra uma soberana indiferença ante o
banditismo armado. Assim nossa opinião pública passa por uma reeducação,
que terminará por persuadi-la de que desviar dinheiro do Estado é mais
grave do que atentar contra a vida humana — princípio que, consagrado no
Código Penal soviético, punia o homicídio com dez anos de cadeia, e com
pena de morte os crimes contra a administração: dize-me quem imitas e
eu te direi quem és (3).
Se levada mais fundo ainda, essa
“revolução cultural” acabará por perverter todo o senso moral da
população, instaurando a crença de que o dever de ser bom e justo
incumbe primeira e essencialmente à sociedade, e só secundariamente aos indivíduos.
Muitos intelectuais brasileiros tomam como um dogma infalível esse
preceito monstruoso, que resulta em abolir todos os deveres da
consciência moral individual até o dia em que seja finalmente instaurada
sobre a Terra a “sociedade justa” — um ideal que, se não fosse utópico e
fantasista em si, seria ao menos inviabilizado pela prática do mesmo
preceito, tornando os homens cada vez mais injustos e maus quanto mais
apostassem na futura sociedade justa e boa (4).
Um dos maiores
pensadores éticos do nosso século, o teólogo protestante Reinhold
Niebuhr, mostrou que, ao longo da História, o padrão moral das
sociedades — e principalmente dos Estados — foi sempre muito inferior ao
dos indivíduos concretos. Uma sociedade, qualquer sociedade, pode
permitir-se atos que num indivíduo seriam considerados imorais ou
criminosos. Por isto mesmo, a essência do esforço moral, segundo
Niebuhr, consiste em tentar ser justo numa sociedade injusta (5).
Nossos intelectuais inverteram essa fórmula, dissolvendo todo o senso
de responsabilidade pessoal na poção mágica da “responsabilidade
social”. Alguns consideram mesmo que isto é muito cristão, esquecendo
que Cristo, se pensasse como eles, adiaria a cura dos leprosos, a
multiplicação dos pães e o sacrifício do Calvário para depois do advento
da “sociedade justa”.
É absolutamente impossível que a
disseminação de tantas idéias falsas não crie uma atmosfera propícia a
fomentar o banditismo e a legitimar a omissão das autoridades. O
governante eleito por um partido de esquerda, por exemplo, não tem como
deixar de ficar paralisado por uma dupla lealdade, de um lado à ordem
pública que professou defender, de outro à causa da revolução com a qual
seu coração se comprometeu desde a juventude, e para a qual a desordem é
uma condição imprescindível.
A omissão quase cúmplice de um Brizola ou
de um Nilo Batista — homens que não têm vocação para tomar parte ativa
na produção cultural, mas que têm instrução bastante para não escapar da
influência da cultura produzida — não é senão o reflexo de um conjunto
de valores, ou contravalores, que a nossa classe letrada consagrou como
leis, e que vêm moldando as cabeças dos brasileiros há muitas décadas.
Se o apoio a medidas de força contra o crime vem sempre das camadas mais
baixas, não é só porque são elas as primeiras vítimas dos criminosos,
mas porque elas estão fora do raio de influência da cultura letrada. Da
classe média para cima, a aquisição de cultura superior é identificada
com a adesão aos preconceitos consagrados da intelligentzia nacional, entre os quais o ódio à polícia e a simpatia pelo banditismo.
Seria plausível supor que esses
preconceitos surgiram como reação à ditadura militar. Mas, na verdade,
são anteriores. A imagem do crime na nossa cultura compõe-se em última
análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja origem primeira
está na instrução transmitida pelo Cominternem 24 de abril de
1933 ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, para que
procurasse assumir a liderança de quadrilhas de bandidos, imprimindo um
caráter de “luta de classes” ao seu conflito com a lei (6).
A instrução foi atendida com presteza
pela intelectualidade comunista, que produziu para esse propósito uma
infinidade de livros, artigos, teses e discursos. Os escritores
comunistas não eram muitos, mas eram os mais ativos: tomando de assalto
os órgãos de representação dos intelectuais e artistas (7), elevaram sua
voz acima de todas as outras e, logo, suas idéias prevaleceram ao ponto
de ocupar todo o espaço mental do público letrado.
Hoje vemos como foi
profunda a marca deixada pela propaganda comunista na consciência dos
nossos intelectuais: nenhum deles abre a boca sobre o problema da
criminalidade carioca, que não seja para repetir os velhos
lugares-comuns sobre a miséria, sobre os ricos malvados, e para lançar
na “elite” a culpa por todos os assaltos, homicídios e estupros
cometidos pelos habitantes das favelas.
Ninguém ousa por em dúvida a veracidade
das premissas em que se assentam tais raciocínios — o que prova o quanto
elas fizeram a cabeça da nossa intelectualidade, o quanto esta, sem
mesmo saber a origem de suas idéias, continua repetindo e obedecendo,
por mero automatismo, por mera preguiça mental, os chavões que o Comintern mandou espalhar na década de 30.
De nada adianta a experiência universal
ensinar-nos que a conexão entre miséria e criminalidade é tênue e
incerta; que há milhares de causas para o crime, que mesmo a
prosperidade de um wellfare State não elimina; que entre essas
causas está a anomia, a ausência de regras morais explícitas e comuns a
toda a sociedade; que uma cultura de “subversão de todos os valores” e a
glamurização do banditismo pela elite letrada ajudam a remover os
últimos escrúpulos que ainda detêm milhares de jovens prestes a saltar
no abismo da criminalidade.
Contrariando as lições da História, da
ciência e do bom senso, nossos intelectuais continuam presos à lenda que
faz do criminoso o cobrador de uma dívida social. Alguns crêem mesmo
nela, com uma espécie de masoquismo patético, resíduo de uma
sentimentalidade doentia inoculada pelo discurso comunista nas almas
frágeis dos “burgueses progressistas”: o escritor Antônio Callado, vendo
sua casa arrombada, levados seus quadros preciosos, repetia para si,
entre inerme e atônito, a sentença de Proudhon: “A propriedade é um
roubo”.
Deveria recitar, isto sim, o poema de Heine, em que um homem que
dorme é atormentado em sonhos por uma figura que, ameaçando-o com uma
arma, lhe diz: “Eu sou a ação dos teus pensamentos” (8).
Infelizmente, os pensamentos dos
intelectuais não voltam só contra seus autores os seus efeitos
materiais. Erigida em crença comum, a lenda do “Cobrador” — título de um
conto aliás memorável de Rubem Fonseca — produz devastadoras
conseqüências reais sobre toda a população.
Ela transforma o
delinqüente, de acusado, em acusador. Seguro de si, fortalecido em sua
auto-estima pelas lisonjas da intelligentzia, o assassino então
já não aponta contra nós apenas o cano de uma arma, mas o dedo da
justiça; de uma estranha justiça, que lança sobre a vítima as culpas
pelos erros de uma entidade abstrata — “o sistema”, “a sociedade
injusta” —, ao mesmo tempo que isenta o criminoso de quase toda a
responsabilidade por seus atos pessoais. Perseguida de um lado pelas
gangues de bandidos, acuada de outro pelo discurso dos letrados, a
população cai no mais abjeto desfibramento moral e já não ousa expressar
sua revolta.
Qual uma mulher estuprada, envergonha-se de seus
sofrimento e absorve em si as culpas de seu agressor. Ela pode ainda
exigir providências da autoridade, mas o faz numa voz débil e sem
convicção — e cerca seu pedido de tantas precauções, que a autoridade,
após ouvi-la, mais temerá agir do que omitir-se. Afinal, é menos
arriscado politicamente desagradar uma multidão de vítimas que gemem em
segredo do que um punhado de intelectuais que vociferam em público.
Os intelectuais, neste país, são os
primeiros a denunciar a imoralidade, os primeiros a subir ao palanque
para discursar em nome da “ética”. Mas a ética consiste basicamente em
cada um responsabilizar-se por seus próprios atos. E nunca vi um
intelectual brasileiro, muito menos um de esquerda, fazer um exame de
consciência e perguntar-se: “Será que nós tambémnão temos colaborado para a tragédia carioca?”
Não, nenhum deles sente a menor dor na
consciência ao ver que sessenta anos de apologia literária do crime de
repente se materializaram nas ruas, que as imagens adquiriram vida, que
as palavras viraram atos, que os personagens saltaram do palco para a
realidade e estão roubando, matando, estuprando com a boa consciência de
serem “heróis populares”, de estarem “lutando contra a injustiça” com
as técnicas de combate que aprenderam na Ilha Grande.
Os intelectuais
literalmente não sentem ter colaborado em nada para esse
resultado. Não o sentem, porque décadas de falsa consciência alimentada
pela retórica marxista os imunizaram contra quaisquer protestos da
consciência moral. Eles possuem a arte dialética de sufocar a voz
interior mediante argumentos de oportunidade histórica. Ademais,
detestam o sentimento de culpa — que supõem ter sido inventado pela
Igreja Católica para manter as massas sob rédea curta.
Não desejando,
portanto, assumir suas próprias culpas, exorcizam-nas projetando-as
sobre os outros, e tornam-se, por uma sintomatologia histérica bem
conhecida, acusadores públicos, porta-vozes de um moralismo ressentido e
vingativo. Imbuídos da convicção dogmática de que a culpa é sempre dos
outros, eles estão puros de coração e prontos para o cumprimento do
dever. Qual dever? O único que conhecem, aquele que constitui, no seu
entender, a missão precípua do intelectual: denunciar.
Denunciar os
outros, naturalmente. E aquele que denuncia, estando, por isto mesmo, ao
lado das “forças progressistas”, fica automaticamente isento de prestar
satisfações à “moral abstrata” da burguesia, a qual, sem nada
compreender da dialética histórica, continua a proclamar que há atos
intrinsecamente maus, independentemente das condições sociais e
políticas: “moral hipócrita”, ante a qual —pfui! — o intelectual franze o nariz com a infinita superioridade de quem conhece a teleologia da história e já superou — ou melhor, aufhebt jetzt — na dialética do devir o falso conflito entre o bem e o mal…
Mas a colaboração desses senhores
dialéticos para o crescimento da criminalidade no Rio foi bem mais longe
do que a simples preparação psicológica por meio da literatura, do
teatro e do cinema: foram exemplares da sua espécie que, no presídio da
Ilha Grande, ensinaram aos futuros chefes do Comando Vermelho a
estratégia e as táticas de guerrilha que o transformaram numa
organização paramilitar, capaz de representar ameaça para a segurança
nacional.
Pouco importa que, ao fazerem isso, os militantes presos
tivessem em vista a futura integração dos bandidos na estratégia
revolucionária, ou que, agindo às tontas, simplesmente desejassem uma
vingança suicida contra a ditadura que os derrotara: o que importa é
que, ensinando guerrilha aos bandidos, agiram de maneira coerente com os
ensinamentos de Marcuse e Hobsbawn — então muito influentes nas nossas
esquerdas —, os quais, até mesmo contrariando o velho Marx, exaltavam o
potencial revolucionário do Lumpenproletariat.
Nenhum desses servidores da História
sente o menor remorso, a menor perturbação da consciência, ao ver que
suas lições foram aprendidas, que suas teorias viraram prática, que sua
ciência da revolução armou o braço que hoje aterroriza com assaltos e
homicídios a população carioca. Não: eles nada fizeram senão acelerar a
dialética histórica — e não existe mal senão em opor-se à História.
Com a
consciência mais limpa deste mundo, eles continuam a culpar os outros: o
capitalismo, a política econômica do governo, a polícia, e a verberar
como “reacionários” e “fascistas” os cidadãos, ricos e pobres, que
querem ver os assassinos e traficantes na cadeia.
Mas os intelectuais da esquerda não se
limitaram a criar o pano de fundo cultural propício e a elevar pelos
ensinamentos técnicos o nível de periculosidade do banditismo; eles
deram um passo além, e colheram os frutos políticos do longo namoro com a
delinqüência: o apoio dos bicheiros — o que é o mesmo que dizer: dos
traficantes — foi a principal base de sustentação popular sobre a qual
se ergueu no Rio o império do brizolismo, a ala mais tradicional e
populista da esquerda brasileira.
Sob a égide do brizolismo, as relações entre intelectualidade esquerdista e banditismo transformaram-se num descaradoaffaire amoroso, com a ABI dando respaldo à promoção do livro Um contra Mil,
em que o quadrilheiro William Lima da Silva, o “Professor”, líder do
Comando Vermelho, faz a apologia do crime como reação legítima contra a
“sociedade injusta”.
Um pouco mais tarde, quando a
criminalidade organizada já estava bem crescida a ponto de requerer uma
intervenção do governo federal, o que se verificou foi que a esquerda
não se limitara a colaborar com os bandidos, mas se ocupara também de
debilitar seus perseguidores; que a CUT e o PT, infiltrando-se na
Polícia Federal, haviam tornado esta organização mais ameaçadora para o
governo federal do que para traficantes e quadrilheiros (9).
E finalmente, quando o governo federal,
vencendo resistências prodigiosas, finalmente se decide a agir e incumbe
o Exército de dirigir a repressão ao banditismo no Rio, a
intelectualidade de esquerda, como não poderia deixar de ser, inicia uma
campanha surda de desmoralização do comando militar das operações, seja
com advertências alarmistas quanto à possibilidade de “abusos” contra
os moradores das favelas, seja com toda sorte de gracejos e especulações
sobre as fragilidades da estratégia adotada, seja com argumentações
pseudocientíficas sobre a inconveniência do remédio adotado, dando a
entender que os riscos de uma intervenção militar são infinitamente
maiores que o da anarquia sangrenta instalada no Rio.
Tudo isto prepara o
terreno para uma investida maior, em que entidades autonomeadas
representantes da “sociedade civil” — as mesmas que promoveram a
elevação dos chefes do Comando Vermelho ao estatuto de “lideranças
populares” — se unirão para pedir a retirada das Forças Armadas e a
devolução dos morros a seus eternos governantes, lá entronizados pelas
graças da deusa História (10).
Resumindo, pela ordem cronológica: a esquerda, primeiro, criou uma atmosfera de idealização do banditismo; segundo, ensinou aos criminosos as técnicas e a estratégia da guerrilha urbana; terceiro, defendeu abertamente o poder das quadrilhas, propondo sua legitimação como “lideranças populares”; quarto, enfraqueceu a Polícia Federal como órgão repressivo, fortalecendo-a, ao mesmo tempo, como instrumento de agitação; quinto,
procurou boicotar psicologicamente a operação repressiva montada pelas
Forças Armadas, tentando atrair para ela a antipatia popular.
Não é
humanamente concebível que tudo isso seja apenas uma sucessão de
coincidências fortuitas. Se a continuidade perfeitamente lógica das
iniciativas da esquerda em favor do banditismo não reflete a unidade de
uma estratégia consciente, ela expressa ao menos a unanimidade de um
estado de espírito, a fortíssima coesão de um nó de preconceitos contra a
ordem pública e a favor da delinqüência.
Para a nossa esquerda,
decididamente, assassinos, ladrões, traficantes e estupradores estão
alinhados com as “forças progressistas” e destinados a ser redimidos
pela História pela sua colaboração à causa do socialismo. Quanto a seus
perseguidores, identificam-se claramente com as “forças reacionárias” e
irão direto para a lata de lixo da História. No que diz respeito às
vítimas, enfim, pode-se lamentá-las, mas, como dizia tio Vladimir, quê
fazer?
Não se pode fritar uma omelette sem quebrar os ovos…
Para completar, é mais que sabido que
artistas e intelectuais são um dos mais ricos mercados consumidores de
tóxicos e que não desejam perder seus fornecedores: quando defendem a
descriminalização dos tóxicos, advogam em causa própria. Mas eles não
são apenas consumidores: são propagandistas.
Quem tem um pouco de
memória há de lembrar que neste país a moda das drogas, na década de 60,
não começou nas classes baixas, mas nas universidades, nos grupos de
teatro, nos círculos de psicólogos, rodeada do prestígio de um vício
elegante e iluminador. Foi graças a esse embelezamento artificial
empreendido pela intelligentzia que o consumo de drogas deixou de
ser um hábito restrito a pequenos círculos de delinqüentes para se
alastrar como metástases de um câncer por toda a sociedade: Si monumentum requires, circumspicii.
É de espantar que nessas condições o
banditismo crescesse como cresceu? É de espantar que, enquanto a
população maciçamente clama por uma intervenção da autoridade e aplaude
agora a chegada dos fuzileiros aos morros, a intelectualidade procure
depreciar a atuação do Exército e não se preocupe senão com a
salvaguarda dos direitos civis dos eventuais suspeitos a serem detidos,
como se a eliminação do banditismo armado não valesse o risco de alguns
abusos esporádicos?
O que seria de espantar é que os estudos
pretensamente científicos sobre as causas do banditismo jamais
assinalem entre elas a cumplicidade dos intelectuais, como se os fatores
econômicos agissem por si e como se a produção cultural não exercesse
sobre a ordem ou desordem social a menor influência, mesmo quando essa
cumplicidade passa das palavras à ação e se torna um respaldo político
ostensivo para a ação dos quadrilheiros. Seria de espantar, digo, se não se soubesse quem são os autores de tais estudos e as entidades que os financiam.
Há décadas nossa intelligentzia
vive de ficções que alimentam seus ódios e rancores e a impedem de
enxergar a realidade. Ao mesmo tempo, ela queixa-se de seu isolamento e
sonha com a utopia de um amplo auditório popular. Mas é a incultura do
nosso povo que o protege da contaminação da burrice intelectualizada.
“Incultura” é um modo de falar: será incultura, de fato, privar-se de
consumir falsos valores e slogansmentirosos?
Não: mas quando
houver neste país uma intelectualidade à altura de sua missão, ela será
ouvida e compreendida. Por enquanto, se queremos ver o nosso Rio livre
do flagelo do banditismo, a primeira coisa a fazer é não dar ouvidos
àqueles que, por terem colaborado ativamente para a disseminação desse
mal, por mostrarem em seguida uma total incapacidade de arrepender-se de
seu erro, e finalmente por terem o descaramento de ainda pretender
posar de conselheiros e salvadores, perderam qualquer vestígio de
autoridade e puseram à mostra a sua lamentável feiúra moral.
OLAVO DE CARVALHO
Texto disponível no site do professor Olavo de Carvalho, que contém todas as notas.
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