ÉPOCA obteve contratos assinados entre o ex-presidente e a
empresa. No papel, dinheiro para “palestras”. Na prática, dinheiro para
alavancar os negócios da empreiteira no exterior – A reportagem é dos
jornalistas THIAGO BRONZATTO, COM ANA CLARA COSTA E ALANA RIZZO.
No final da manhã de quinta-feira, 15 de outubro, o ex-presidenteLuiz Inácio Lula da Silva estava bem-humorado. Por iniciativa própria, prestava um depoimento reservado ao Ministério Público Federal, em Brasília, para explicar sua atuação ao lado da empreiteira Odebrecht.
Em vez de ir ao prédio da instituição, Lula foi ouvido em uma casa no
Lago Sul, de forma discreta. Foi seu único pedido ao procurador, para
escapar ao assédio de jornalistas.
Ao seu estilo sedutor, Lula fez
piadas com o procurador da República Ivan Cláudio Marx, ao dizer que o
Corinthians, seu time, será campeão brasileiro. Na hora de falar sério,
disse que não fez lobby, mas sim palestras no exterior com a missão de explicar a receita brasileira de sucesso em países da África e da América Latina. Procurou defender-se na investigação, revelada por ÉPOCA em maio, que apura se ele praticou tráfico de influência internacional em favor da empreiteira Odebrecht.
Lula disse que não é lobista, que recebeu “convites de muitas empresas e
países para ser consultor”, mas não aceitou porque “não nasceu para
isso”.
Num termo de declaração de quatro páginas obtido por ÉPOCA, ele
sustenta que todos os eventos para os quais foi contratado estão
contabilizados em sua empresa L.I.L.S. – um acrônimo de seu nome. Foi
por meio dela que Lula ficoumilionáriodesde que deixou o Palácio do Planalto, em 2011.
Lula
com Alexandrino Alencar, da Odebrecht (de barba, atrás), no Peru.
Alexandrino era o responsável pelas palestras de Lula no exterior e
viajava com ele (Foto: reprodução)
ÉPOCA obteve cópia doscontratos privados, notas fiscais edescrições das relaçõesentre
o ex-presidente e sua principal contratante. Nomeado projeto “Rumo ao
Caribe”, as viagens de Lula bancadas pela Odebrecht inauguraram um
padrão de relacionamento do ex-presidente, poucos meses após deixar o
Planalto, com a empreiteira-chave da Lava Jato. Ao longo dos últimos quatro anos, a L.I.L.S. foi acionada para que Lula desse 47 palestras no exterior, muitas a convite de instituições. Sua maior cliente é, de longe, a Odebrecht.
A construtora que lidera a lista das patrocinadoras de Lula pagou quase R$ 4 milhões para o ex-presidente fazer dez palestras. Além disso, bancou os custos das viagens para países em que possui obras financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
como Angola e Venezuela. Esses gastos de R$ 3 milhões, ao câmbio da
época, incluem transporte e hospedagem em hotéis “5 estrelas ou
superior”, com dormitório com cama king size, sofás, frutas, pães,
queijos, frios, castanhas, água, refrigerantes normais e do tipo “zero”
e, em alguns casos, fora do contrato, bebidas alcoólicas. As
contratantes eram responsáveis por fretar aeronaves particulares.
Ter
Lula como palestrante custava caro. Mas, na maioria das vezes, valia
muito a pena.
O “Palestrante” Lula (grafado desse jeito pela própria empresa em
seus papéis internos) passou a ser mobilizado para atuar em locais onde a
Odebrecht enfrentava pepinos em seus contratos. Em 1º de maio de 2011,
Lula se comprometeu, por R$ 330 mil, a desembarcar na Venezuela no
início de junho para falar sobre os “Avanços alcançados até agora pelo
Brasil”.
A descrição das atividades que constam da cláusula 1.1 do
contrato dizia que o “Palestrante” não participaria de qualquer outro
evento além daqueles descritos “exaustivamente” no anexo 1.
O tal anexo,
no entanto, possui duas linhas que mencionam apenas que o ex-presidente
ficaria hospedado no Hotel Marriott de Caracas. Quando superposto aos
documentos doInstituto Lula sobre o mesmo evento, vê-se que Lula se encontrou com o empresário Emílio Odebrecht, pai de Marcelo Odebrecht, hoje preso em Curitiba, e com o então presidente venezuelano, Hugo Chávez, morto em 2013. Era um momento de tensão entre o governo venezuelano e a empreiteira, que cobrava uma dívida de US$ 1,2 bilhão.
Telegramas sigilosos do Itamaraty sugerem que Lula e
Chávez trataram sobre a dívida. A Odebrecht construía, desde 2009, a
linha II do Metrô de Los Teques e a linha 5 do Metrô de Caracas. Fruto
de uma negociação entre Lula e Chávez, o projeto foi irrigado com US$
747 milhões (R$ 1,2 bilhão, em valores da época) em empréstimos do
BNDES.
A pressão de Lula surtiu efeito. Quatro dias após a visita do
ex-presidente a Caracas, Chávez se encontrou com a presidente Dilma em
Brasília. Naquele momento, a dívida com a Odebrecht já estava acertada.
As duas obras são investigadas pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União.
A principal suspeita, conforme revelou ÉPOCA em maio,
é que os recursos tenham sido utilizados de forma irregular e de
maneira antecipada sem o avanço do projeto – o dinheiro chegou, mas a
obra não andou.
Em seu depoimento ao Ministério Público, Lula disse que não é lobista e “não nasceu” para ser consultor
Em alguns casos, as viagens de Lula eram sucedidas por concessões de empréstimos do BNDES para obras de infraestrutura no país.Angolaé
um exemplo disso. Desde 2011, a Odebrecht foi a que mais recebeu
financiamentos do BNDES no país africano, que está no topo da lista de
recursos destinados pelo banco para exportação.
Entre abril de 2011 e
abril de 2014, foram liberados US$ 3,1 bilhões dos cofres do BNDES para a
Odebrecht. Nos dias 30 de junho e 1o de julho de 2011, Lula foi
contratado pela Odebrecht para dar uma palestra na Assembleia Nacional
em Luanda, capital da Angola, sobre “O desenvolvimento do Brasil –
modelo possível para a África”. Em seguida, Lula se reuniu por 40
minutos com o presidente do país, José Eduardo dos Santos. Após a
conversa, Lula se encontrou com Emílio Odebrecht e com diretores das
empreiteiras Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez.
Lula
aterrissou em São Paulo no dia 2 de julho, à 0h30. No dia 28 de julho de
2011, o BNDES liberou um empréstimo de US$ 281 milhões (R$ 455 milhões,
em valores da época), tão aguardado pela Odebrecht, para a construção
de 3 mil unidades habitacionais e desenvolvimento de infraestrutura para
20 mil residências em Angola.
No dia 6 de maio de 2014, Lula e Emílio Odebrecht voltaram a se
encontrar em Angola. O ex-presidente viajou, numa aeronave cedida pelo
governo angolano, de Luanda para a província de Malanje, onde visitou a
usina de açúcar e etanol Biocom, sociedade entre a Odebrecht Angola e a
Sonangol.
Em depoimento de sua delação premiada, o lobista Fernando Soares, o Baiano, disse que se associou ao empresário José Carlos Bumlai, amigo de Lula,
para viabilizar a palestra do ex-presidente em Angola. Baiano atendia a
um pedido de um general angolano, interessado no negócio. Lula estava a
todo momento acompanhado por Emílio Odebrecht, pela ex-ministra do
Desenvolvimento Social Márcia Lopes e pelo ex-deputado federal
Sigmaringa Seixas, além de autoridades angolanas. Na manhã do dia
seguinte, o ex-presidente teve uma reunião de cerca de uma hora com o
presidente de Angola, José Eduardo dos Santos.
Nesse encontro,
discutiram, entre outros assuntos, a linha de crédito do BNDES para a
construção da hidrelétrica de Laúca, segundo telegramas do Itamaraty. Em
dezembro do ano passado, sete meses após a visita de Lula, o ministro
de finanças de Angola, Armando Manuel, assinou o acordo de financiamento
com o BNDES. Em maio deste ano, o presidente do banco, Luciano
Coutinho, deu o último aval para a liberação de um empréstimo que pode
chegar a US$ 500 milhões (R$ 1,5 bilhão).
Questionado pelo Ministério
Público, Lula disse que “nada foi referido sobre o financiamento do
BNDES para a construção da hidrelétrica de Laúca e que o presidente José
Eduardo nunca tratou desses temas”, embora documentos oficiais do
Itamaraty mostrem uma versão diferente. “Não passa de uma ilação, porque
o comunicante (do Itamaraty) não teria participado da reunião”, disse Lula.
Lula
com Hugo Chávez em Caracas, em 2011, e trechos de seus contratos com a
Odebrecht (abaixo). Após uma palestra de Lula, o governo venezuelano
pagou uma dívida com a Odebrecht (Foto: Jorge Silva/Reuters)
Em suas viagens pela América Latina e pela África, Lula era
acompanhado de perto pelo diretor de relações institucionais da
Odebrecht, Alexandrino Alencar, apontado como o lobista da construtora na Operação Lava Jato.
Após quatro meses preso, o executivo foi libertado na sexta-feira por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal,
Teori Zavascki, após quatro meses preso em Curitiba, no Paraná. O
contrato original, que selou a parceria da Odebrecht com Lula, leva a
assinatura de Alexandrino e de Paulo Okamotto, braço direito do ex-
presidente. Lula e Alexandrino se conhecem desde os tempos de Lula no
Planalto. A proximidade entre eles era tão grande que se cumprimentavam
com um beijo no rosto. Essa intimidade se intensificou após 2011, quando
Lula passou a defender, ao lado de Alexandrino, os interesses da
Odebrecht no exterior.
Um relatório de perícia do MPF sobre os
movimentos migratórios de Lula e o ex-funcionário da Odebrecht aponta
que os dois companheiros compartilharam ao menos cinco voos juntos nos
últimos quatro anos, de acordo com dados extraídos do sistema de tráfego
internacional da Polícia Federal.
Nesta semana passada, no depoimento
ao Ministério Público, Lula manteve uma distância olímpica do amigo ao
dizer que “Alexandrino era representante da Odebrecht, não sabendo
precisar o cargo; que só tinha relação profissional com Alexandrino”.
Um dos destinos da dupla foi uma caravana para Cuba e República Dominicana entre
28 de janeiro e 3 de fevereiro de 2013. Lula recebeu R$ 373 mil pelas
palestras. Naquela ocasião, Lula visitou o Porto de Mariel, parceria
entre a Odebrecht e o governo cubano. Ao todo, a obra recebeu US$ 832
milhões do BNDES com um prazo para pagamento de 25 anos – e com uma
parte das garantias atreladas à produção de fumo na ilha.
Quatro meses
após a passagem de Lula por Cuba, o banco estatal brasileiro liberou a
quinta parcela do financiamento do projeto, de US$ 229,9 milhões (R$
482,7 milhões), que estava represada devido ao atraso nos pagamentos e à
falta de garantias para a operação. Em 31 de janeiro, Lula desembarcou
na República Dominicana, onde se encontrou com o presidente Danilo
Medina.
E lá foi o líder petista visitar, novamente, outro canteiro de
obras da Odebrecht. Seis meses depois, a Odebrecht conseguiu mais US$
114 milhões (R$ 228 milhões) do BNDES para desenvolver o corredor Viário
Norte-Sul no país.
Procurada, a Odebrecht afirma por meio de nota que mantém “uma relação institucional e transparente com o ex-presidente Lula.
O
ex-presidente foi convidado pela empresa para fazer palestras para
empresários, investidores e líderes políticos sobre as potencialidades
do Brasil e de suas empresas, exatamente o que têm feito presidentes e
ex-presidentes de outros países, como Estados Unidos, França e Espanha”.
A Odebrecht nega que Lula tenha feito lobbyem
seu favor junto a governos estrangeiros. O depoimento de Lula pode ter
sido agradável, mas o Ministério Público Federal no Distrito Federal
estuda formar uma força-tarefa de procuradores para investigar as
suspeitas de tráfico de influência. Pediu até o compartilhamento de
provas da Operação Lava Jato que mencionem o ex-presidente, a Odebrecht e
o BNDES.
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