A Enciclica Laudato Si’, o Papa na Onu e a Ecologia Profunda, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Publicado em outubro 14, 2015 por Redação
“É triste pensar que a natureza fala e que a humanidade não a ouve”Victor Hugo
“É preciso afirmar a existência dum verdadeiro ‘direito do ambiente’(…) cada uma das criaturas, especialmente seres vivos,possui em si mesma um valor de existência, de vida,de beleza e de interdependência com outras criaturas”Papa Francisco
[EcoDebate]
O ano de 2015 é fundamental para a definição da agenda global para o
segundo quindênio (2015-2030) do século XXI. O corrente ano marca o
septuagésimo aniversário da ONU e três grandes eventos foram construídos
para redefinir a agenda pós-2015: a) Conferência de Addis Abeba/Etiópia
para reforma do sistema financeiro e apoio ao desenvolvimento; b)
Cúpula para aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável –
ODS; c) Conferência (COP-21) para adotar um acordo global para conter o
aquecimento global.
Com
o objetivo de incidir na agenda global, o Papa Francisco lançou a
“Carta encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum”, no dia 18
de junho de 2015. A encíclica é um chamado à ação e veio em hora
tempestiva e oportuna, pois trata dos grandes desafios da humanidade e
da natureza, englobados nos temas da pobreza e da exclusão econômica,
desenvolvimento sustentável e degradação do meio ambiente, mudanças
climáticas e aquecimento global, devendo contribuir para o engajamento
dos cristãos, e demais cidadãos do mundo, na defesa do “cuidado da casa
comum”. Sem dúvida é uma grande contribuição à justiça ambiental.
Uma
das novidades mais destacadas da encíclica Laudato Sí refere-se à
Ecologia Integral, conceito que coroa a ideia de que tudo está
interligado no mundo.
A ecologia integral reconhece que a humanidade
enfrenta uma crise estrutural em múltiplas dimensões: um grande
contingente de pessoas vivendo na pobreza, disparidades extremas de
renda, o aumento da competição por recursos (incluindo energia, terra e
água), ecossistemas severamente degradados, Estados-nação falidos e
mudanças climáticas cada vez mais fora de controle. É a primeira vez que
a Santa Sé estabelece uma relação tão estreita e interligada entre as
condições econômicas, a justiça social e a ecológica.
O
Papa condenou os gastos militares, fez uma defesa da paz e disse:
“Guerras nunca mais”. Esta é uma questão fundamental, pois segundo o
Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) os conflitos
armados se intensificaram (a Síria é o exemplo mais notório) e o cálculo
aponta para um total de gastos militares no mundo, em 2014, de US$
1,776 trilhão, cifra que representa 2,3% do PIB mundial ou 245 dólares
por pessoa. Somente a América do Norte gastou 627 bilhões de dólares em
2014. O gasto só não foi maior porque o governo Obama, às voltas com a
necessidade de um ajuste fiscal diante da enorme dívida pública, reduziu
os gastos em relação à 2013. Porém, Se estes recursos de guerra fossem
direcionados para a segurança alimentar seria possível erradicar a fome
no mundo, como quer os ODS.
Reforçando
a perspectiva da Ecologia Integral, o Papa tem falado sobre o direito
das populações excluídas e os direitos de cidadania – os 3 Ts: “Teto,
Terra e Trabalho”. Falou na defesa dos ecossistemas e no combate ao
aquecimento global. No discurso do dia 25 de setembro na sede da ONU, na
abertura da Cúpula dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o
Papa disse sobre os desafios futuros:
“Mas,
hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao
mesmo tempo, amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau
exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e
homens excluídos são dois setores intimamente unidos entre si, que as
relações políticas e econômicas preponderantes transformaram em partes
frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os
seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à
exclusão”.
No
artigo que escrevi para a Revista Horizonte, intitulado: “A encíclica
Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia profunda” (Alves,
2015), comentei que, embora a ideia de ecologia integral seja um avanço
no tratamento articulado e conjunto das questões econômicas, sociais e
ambientais, ela não é propriamente uma novidade, embora tenha o mérito
de abrir o diálogo com a Ética Ecocêntrica e os princípios da Ecologia
Profunda.
Há alguns grandes nomes do passado que deram enorme
contribuição aos estudos da natureza e da sociedade, tais como Henry
David Thoreau (1817-1862), Aldo Leopold (1887-1948), Arne Naess (1973),
etc. A ecologia profunda considera que a natureza tem valor intrínseco,
com igualdade de oportunidades entre as diferentes espécies. Como disse
Fritjof Capra (2006):
“A
ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ela vê
os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte
de todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de
‘uso’, à natureza. A ecologia profunda não separa seres humanos – ou
qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo, não
como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que
estão fundamentalmente interconectados e interdependentes. A ecologia
profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe
os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida” (p. 16).
A
diferença fundamental entre a Ecologia Integral e a Ecologia Profunda é
que a primeira tende a considerar apenas o ser humano como detentor de
direitos, enquanto a Ecologia Profunda considera que o meio ambiente é
sujeito de direito e que, no longo prazo não há direitos humanos
duradouros sem direitos da natureza”.
Na encíclica Laudato Si’ o Papa
criticou o antropocentrismo, mas também criticou o biocentrismo.
Porém,
em apenas 3 meses, o Papa Francisco deu um passo à frente. No discurso
feito na Cúpula dos ODS ele assumiu uma postura mais próxima da Ecologia
Profunda, pois embora tenha reconhecido que o ser humano é portador de
uma “dignidade especial”, falou também em “Direito do Ambiente” e afirmou com todas as letras que todas as criaturas vivas e a natureza “possui em si mesma um valor de existência”. O discurso do Papa na ONU aproxima a Ecologia Integral da Ecologia Profunda, como pode ser visto neste trecho:
“Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente»,
por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos
parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio
ambiente comporta limites éticos que a ação humana deve reconhecer e
respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que]
manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico»
(Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção
deste ambiente.
Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e
biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente
ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio
ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada
uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um
valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras
criaturas.
Nós cristãos, com as outras religiões
monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do
Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o
bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar
dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as
crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81)”. (Papa Francisco na Onu, 25/09/2015).
Como
afirmei no artigo da Revista Horizonte: “A Carta Encíclica do Papa pode
ser vista, antes de tudo, como uma mensagem de compaixão, amor e defesa
dos pobres e do meio ambiente. Como um documento aberto ao diálogo,
faz-se necessário que os diversos setores da sociedade (acadêmicos,
sociedade civil, políticos, religiosos, etc.) participem das discussões
sobre a agenda do desenvolvimento sustentável e as mudanças climáticas.
Certamente, as questões de gênero e os princípios da ecologia profunda,
resumidos neste artigo, poderão contribuir no esforço do “cuidado da
casa comum”, em harmonia com o espírito ecológico de São Francisco de
Assis e na busca de uma ‘solidariedade universal’”.
O
discurso do Papa Francisco na ONU reafirmou o conteúdo da Encíclica
Laudato Si’ e foi além mostrando que os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) devem reafirmar os direitos humanos e evitar o vício
do consumismo e a “cultura do descarte”. Mas sem deixar de reconhecer “O direito do ambiente”
e que, independentemente da racionalidade instrumental da humanidade, a
vida na Terra, em toda a sua maravilhosa biodiversidade: “possui em si mesma um valor de existência”.
Referências:
Alves,
JED. “A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia
profunda”, Belo Horizonte, Revista Horizonte, Puc-MG, vol. 13, no. 39,
Jul./Set. 2015
Papa Francisco. Discurso na ONU na Cúpula dos ODS, Nova Iorque, 25 de setembro de 2015
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, 14/10/2015
"A Enciclica Laudato Si’, o Papa na Onu e a Ecologia Profunda, artigo de José Eustáquio Diniz Alves," in Portal EcoDebate, 14/10/2015, http://www.ecodebate.com.br/2015/10/14/a-enciclica-laudato-si-o-papa-na-onu-e-a-ecologia-profunda-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.
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