Para o sociólogo italiano Domenico De Masi, "o Brasil não é o melhor dos
mundos possíveis, mas é o melhor dos mundos existentes".
De Masi será sabatinado no dia 19 em São Paulo
"Depois de copiar o modelo europeu por 450 anos e o modelo americano por 50, agora que ambos estão em crise e ainda não há um novo para substituí-lo, chegou a hora de o Brasil propor um modelo para o mundo", diz De Masi.
De Masi desembarca no país para participar da primeira edição do "Refletir Brasil - Diálogo com a Brasilidade", em Paraty, de 20 a 22 de março. O evento reunirá intelectuais e lideranças em mesas temáticas sobre cultura, educação, economia, criatividade e sustentabilidade.
Professor da universidade romana de La Sapienza, De Masi, hoje aos 75 anos, se tornou internacionalmente conhecido em 2000, com o lançamento de "O Ócio Criativo".
Na obra, o autor defende a redução das jornadas de trabalho e a flexibilização do tempo livre, em um contexto mais adequado à globalização e à sociedade pós-industrial.
Desde então, tem se dedicado à análise da organização da cultura de trabalho criativo na vida contemporânea e a estudos comparativos sobre a herança de diferentes modelos de vida no mundo --do indiano, chinês ou japonês, ao muçulmano, judaico, católico ou protestante.
Leia abaixo trechos da entrevista concedida à Folha.
O Brasil ainda hoje é menos conhecido e valorizado do que merece. O Brasil é quase tão grande como a China, mas é uma democracia. O Brasil é quase três vezes maior que a Índia, tem quase o mesmo número de etnias e de religiões, mas vive em paz interna e em paz com os países limítrofes. O Brasil é quatro vezes maior que a zona do Euro, mas tem um único governo e fala uma única língua. O Brasil é o país onde há mais católicos, mas onde a população vive da forma mais pagã. O Brasil é o único país no mundo onde a cultura ainda mantém características de solidariedade, sensualidade, alegria e receptividade.
DESAFIOS
A força de um país não está apenas no seu crescimento econômico, mas principalmente na sua capacidade de distribuir igualmente a riqueza, o trabalho, o poder, o saber, as oportunidades e as proteções. Os desafios aqui são o analfabetismo, a violência e a desigualdade. É realizar esta redistribuição mais igualitariamente em comparação a outros países e manter a melhor relação entre economia e felicidade.
ITÁLIA
A Itália, depois de ter durante dois mil anos elaborado, praticado e oferecido um modelo clássico, renascentista, barroco, agora está cansada e não consegue projetar o futuro. A decadência é autodestrutiva. Depois de ter tentado se suicidar com Mussolini, agora a Itália vivencia um suicídio cômico com Berlusconi e Grillo.
EUROPA
Não acredito de modo nenhum que a Europa --e principalmente o pensamento europeu-- tenham perdido importância no cenário intelectual e, muito menos, econômico. A zona do Euro tem uma renda média per capita de US$ 36.600 [o Brasil é de US$ 10.700]. Na Europa há os países escandinavos com os melhores "welfare" [bem-estar social] do mundo; tem Luxemburgo, Suíça e Alemanha, com os maiores PIBs per capita; a Itália e a Alemanha com maior esperança média de vida.
A Europa é o continente mais escolarizado e com melhores pesquisas científicas. A zona do euro está em primeiro lugar no comércio internacional, no rendimento de serviços, nas reservas auríferas e financeiras, tem um quarto de todo o comércio internacional.
Dos dez países no mundo com o índice mais alto de democracia, sete são europeus; daqueles com maior criatividade econômica, cinco são europeus; com o mais alto índice de capacidade tecnológica, oito são europeus; com mais turistas estrangeiros, cinco são europeus; com a maior extensão de banda larga, sete são europeus; com os museus mais frequentados, seis são europeus.
Na Europa cada país tem seu clima, seu modelo de vida, sua cultura. Mas a moeda é única, os cidadãos e as mercadorias podem viajar livremente de um país ao outro. Tudo justifica a hipótese de que em 2020 a Europa dos 27 será o maior bloco econômico do mundo, com a melhor qualidade de vida.
FUTURO
Daqui a dez anos a população mundial será um bilhão maior do que a de hoje. Um cidadão em cada três terá mais de 60 anos. Informática, engenharia genética e nanotecnologias serão os setores tecnológicos mais importantes. Poderemos levar no bolso todas as músicas, os filmes, os livros, a arte e a cultura do mundo. O PIB per capita no mundo será de US$ 15.000 --contra os atuais US$ 8.000.
Tele-aprenderemos, tele-trabalharemos, tele-amaremos e tele-divertiremo-nos. O trabalho ocupará apenas um décimo de toda a vida dos trabalhadores. As mulheres estarão no centro do sistema social. O mundo será mais rico, mas continuará desigual. A estética dos objetos e a cortesia nos serviços interessarão mais do que sua evidente perfeição técnica. A homologação global prevalecerá sobre a identidade local.
EXEMPLOS
Há iniciativas empresariais e governamentais atuais na América Latina que considero exemplares e dialogam com o futuro. Como o projeto Abreu na Venezuela (de educação e formação musical da população), as escolas primárias para crianças pobres em Foz de Iguaçu e a Escola Bolshoi de dança em Joinville.
TEORIA...
Hoje, a força de trabalho é composta apenas por um terço de operários, outro terço de trabalhadores intelectuais em funções executivas (bancário, recepcionista etc.) e um último terço de funcionários com atividades criativas (jornalista, profissional liberal, cientista etc.).
Se o trabalho for repetitivo, cansativo, chato, de subordinação, reduz-se a uma escravidão, a uma tortura, a um castigo bíblico. Nesse caso, a única defesa consiste em trabalhar o menos possível, pelo menor número de anos possível.
Mas se, em vez disso, for uma atividade intelectual e criativa --que corresponde à nossa vocação e ao nosso profissionalismo--, então ocupa toda nossa inteligência e satisfaz nossas necessidades de auto-realização. Nesse caso confunde-se o trabalho com o estudo e com o lazer, transformando o trabalho em ócio criativo.
Na vida pós-industrial, organizada para produzir principalmente ideias, não existe trabalho e não existe horário. Existe apenas ócio criativo, que dura 24 horas, mesmo quando se dorme e se produz ideias sonhando.
...E PRÁTICA
As empresas ainda não se deram conta deste novo momento global. A oferta de trabalho diminui e a procura por trabalho cresce, mas as empresas não reduzem a carga horária. Poderíamos trabalhar todos e pouco, mas alguns trabalham dez horas por dia enquanto seus filhos estão desempregados.
As tecnologias da informação possibilitam o teletrabalho, mas todos continuam a trabalhar nas empresas. A produção de ideias precisa de autonomia e de liberdade, mas as empresas tornam-se cada vez mais burocráticas. As distâncias culturais entre os chefes e os funcionários diminuem, mas as das faixas salariais aumentam. As empresas pregam colaboração, mas estimulam competitividade.
De Masi será sabatinado no dia 19 em São Paulo
"Depois de copiar o modelo europeu por 450 anos e o modelo americano por 50, agora que ambos estão em crise e ainda não há um novo para substituí-lo, chegou a hora de o Brasil propor um modelo para o mundo", diz De Masi.
De Masi desembarca no país para participar da primeira edição do "Refletir Brasil - Diálogo com a Brasilidade", em Paraty, de 20 a 22 de março. O evento reunirá intelectuais e lideranças em mesas temáticas sobre cultura, educação, economia, criatividade e sustentabilidade.
Ormuzd Alves - 22.out.99/Folhapress | ||
O sociólogo italiano Domenico De Masi, durante entrevista em São Paulo |
Professor da universidade romana de La Sapienza, De Masi, hoje aos 75 anos, se tornou internacionalmente conhecido em 2000, com o lançamento de "O Ócio Criativo".
Na obra, o autor defende a redução das jornadas de trabalho e a flexibilização do tempo livre, em um contexto mais adequado à globalização e à sociedade pós-industrial.
Desde então, tem se dedicado à análise da organização da cultura de trabalho criativo na vida contemporânea e a estudos comparativos sobre a herança de diferentes modelos de vida no mundo --do indiano, chinês ou japonês, ao muçulmano, judaico, católico ou protestante.
Leia abaixo trechos da entrevista concedida à Folha.
*
BRASIL
O Brasil ainda hoje é menos conhecido e valorizado do que merece. O Brasil é quase tão grande como a China, mas é uma democracia. O Brasil é quase três vezes maior que a Índia, tem quase o mesmo número de etnias e de religiões, mas vive em paz interna e em paz com os países limítrofes. O Brasil é quatro vezes maior que a zona do Euro, mas tem um único governo e fala uma única língua. O Brasil é o país onde há mais católicos, mas onde a população vive da forma mais pagã. O Brasil é o único país no mundo onde a cultura ainda mantém características de solidariedade, sensualidade, alegria e receptividade.
DESAFIOS
A força de um país não está apenas no seu crescimento econômico, mas principalmente na sua capacidade de distribuir igualmente a riqueza, o trabalho, o poder, o saber, as oportunidades e as proteções. Os desafios aqui são o analfabetismo, a violência e a desigualdade. É realizar esta redistribuição mais igualitariamente em comparação a outros países e manter a melhor relação entre economia e felicidade.
ITÁLIA
A Itália, depois de ter durante dois mil anos elaborado, praticado e oferecido um modelo clássico, renascentista, barroco, agora está cansada e não consegue projetar o futuro. A decadência é autodestrutiva. Depois de ter tentado se suicidar com Mussolini, agora a Itália vivencia um suicídio cômico com Berlusconi e Grillo.
EUROPA
Não acredito de modo nenhum que a Europa --e principalmente o pensamento europeu-- tenham perdido importância no cenário intelectual e, muito menos, econômico. A zona do Euro tem uma renda média per capita de US$ 36.600 [o Brasil é de US$ 10.700]. Na Europa há os países escandinavos com os melhores "welfare" [bem-estar social] do mundo; tem Luxemburgo, Suíça e Alemanha, com os maiores PIBs per capita; a Itália e a Alemanha com maior esperança média de vida.
A Europa é o continente mais escolarizado e com melhores pesquisas científicas. A zona do euro está em primeiro lugar no comércio internacional, no rendimento de serviços, nas reservas auríferas e financeiras, tem um quarto de todo o comércio internacional.
Dos dez países no mundo com o índice mais alto de democracia, sete são europeus; daqueles com maior criatividade econômica, cinco são europeus; com o mais alto índice de capacidade tecnológica, oito são europeus; com mais turistas estrangeiros, cinco são europeus; com a maior extensão de banda larga, sete são europeus; com os museus mais frequentados, seis são europeus.
Na Europa cada país tem seu clima, seu modelo de vida, sua cultura. Mas a moeda é única, os cidadãos e as mercadorias podem viajar livremente de um país ao outro. Tudo justifica a hipótese de que em 2020 a Europa dos 27 será o maior bloco econômico do mundo, com a melhor qualidade de vida.
FUTURO
Daqui a dez anos a população mundial será um bilhão maior do que a de hoje. Um cidadão em cada três terá mais de 60 anos. Informática, engenharia genética e nanotecnologias serão os setores tecnológicos mais importantes. Poderemos levar no bolso todas as músicas, os filmes, os livros, a arte e a cultura do mundo. O PIB per capita no mundo será de US$ 15.000 --contra os atuais US$ 8.000.
Tele-aprenderemos, tele-trabalharemos, tele-amaremos e tele-divertiremo-nos. O trabalho ocupará apenas um décimo de toda a vida dos trabalhadores. As mulheres estarão no centro do sistema social. O mundo será mais rico, mas continuará desigual. A estética dos objetos e a cortesia nos serviços interessarão mais do que sua evidente perfeição técnica. A homologação global prevalecerá sobre a identidade local.
EXEMPLOS
Há iniciativas empresariais e governamentais atuais na América Latina que considero exemplares e dialogam com o futuro. Como o projeto Abreu na Venezuela (de educação e formação musical da população), as escolas primárias para crianças pobres em Foz de Iguaçu e a Escola Bolshoi de dança em Joinville.
TEORIA...
Hoje, a força de trabalho é composta apenas por um terço de operários, outro terço de trabalhadores intelectuais em funções executivas (bancário, recepcionista etc.) e um último terço de funcionários com atividades criativas (jornalista, profissional liberal, cientista etc.).
Se o trabalho for repetitivo, cansativo, chato, de subordinação, reduz-se a uma escravidão, a uma tortura, a um castigo bíblico. Nesse caso, a única defesa consiste em trabalhar o menos possível, pelo menor número de anos possível.
Mas se, em vez disso, for uma atividade intelectual e criativa --que corresponde à nossa vocação e ao nosso profissionalismo--, então ocupa toda nossa inteligência e satisfaz nossas necessidades de auto-realização. Nesse caso confunde-se o trabalho com o estudo e com o lazer, transformando o trabalho em ócio criativo.
Na vida pós-industrial, organizada para produzir principalmente ideias, não existe trabalho e não existe horário. Existe apenas ócio criativo, que dura 24 horas, mesmo quando se dorme e se produz ideias sonhando.
...E PRÁTICA
As empresas ainda não se deram conta deste novo momento global. A oferta de trabalho diminui e a procura por trabalho cresce, mas as empresas não reduzem a carga horária. Poderíamos trabalhar todos e pouco, mas alguns trabalham dez horas por dia enquanto seus filhos estão desempregados.
As tecnologias da informação possibilitam o teletrabalho, mas todos continuam a trabalhar nas empresas. A produção de ideias precisa de autonomia e de liberdade, mas as empresas tornam-se cada vez mais burocráticas. As distâncias culturais entre os chefes e os funcionários diminuem, mas as das faixas salariais aumentam. As empresas pregam colaboração, mas estimulam competitividade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário