segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A perversão da democracia


Lula e Rui Falcão saíram na defesa do manifesto dos advogados, comprometidos em boa parte com os envolvidos na corrupção

A perversão da democracia começa pelo (mau) uso da linguagem política. Conceitos são esvaziados do seu significado, palavras são ideologicamente utilizadas, e os discursos afastam-se de qualquer relação com a verdade. Pior do que isto, ritos e procedimentos democráticos são de tal forma deturpados, que terminam por servir à própria subversão da democracia.
O caso mais extremo, tão admirado por certos setores da esquerda brasileira, é o da Venezuela, com seu “experimento” de “socialismo do século XXI”. Na verdade, trata-se de uma mera repetição do comunismo do século XX, tendo como único elemento diferenciador o fato de se dizer democrático quando, na verdade, não respeita regras democráticas ou, melhor ditas, republicanas.
 
O Judiciário é totalmente dominado, até recentemente o Legislativo era completamente controlado, os meios de comunicação são severamente reprimidos e cooptados por empresários laranjas do governo, a Petrobras deles é usada para objetivos nitidamente políticos, milícias aterrorizam a população e assim por diante. Na fachada, a “democracia” lá seguiria vigorando, pelo menos no dizer do atual governo brasileiro, que tem uma relação de cumplicidade com os bolivarianos. A ideologia tomou completamente o lugar da diplomacia.
 
Em certo sentido, dá para entender. O cerne da questão reside no que eles entendem por democracia. A verdade, certamente, não é a sua preocupação. Bons exemplos têm aparecido nos últimos dias e semanas. Todos eles mostram processos de perversão da democracia, como se a corrupção partidária patrocinada pelo PT e partidos aliados sobre o Estado brasileiro encontrasse aqui uma sustentação.
 
Mais do que isto, tal forma de utilização da linguagem política poderia prenunciar um processo de subversão mesma da democracia. Não estamos evidentemente lá, mas há graus de uma evolução que devem ser seguidos atentamente, quando mais não seja na defesa mesma da democracia. O ex-presidente Lula e o presidente do PT saíram em uníssono na defesa do manifesto dos advogados, comprometidos em boa parte com os envolvidos na corrupção do Estado. São os ricos “companheiros” que se aliaram neste assalto ao patrimônio público. Que advogados defendam os seus clientes, nada mais normal. Agora, que o façam dizendo defender o “estado democrático de direito” é simplesmente hilário. Nenhuma pessoa de bom senso poderia compartilhar tal disparate.
 
Acontece que parte destes advogados não consegue entregar aos seus clientes o que tinha prometido, a saber, a impunidade. Assim era no passado. Acostumaram-se tanto com esta situação, enriqueceram com isto, que chegaram a considerar que a exceção era a regra, ou seja, a impunidade seria a regra mesma de uma sociedade democrática. Estão, portanto, perplexos diante de uma nova situação, em que instituições republicanas como o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal estão cumprindo rigorosamente com suas funções institucionais. Tornam-se, agora, alvos, como se a responsabilização dos criminosos, empresários, agentes, executivos ou políticos, não devesse ser a regra. A perversão é total. Os defensores do estado de direito tornam-se, nesta visão deturpada, os algozes da democracia.
 
Na verdade, o ex-presidente Lula e o presidente Rui Falcão parecem estar advogando em causa própria. Não faltou nem mesmo a defesa dos seus dirigentes presos e processados. Até hoje os condenados pelo mensalão são considerados “guerreiros do povo” brasileiro e defendidos enquanto tais. Há maior desrespeito ao “estado democrático de direito”, neste claro desprezo ao Supremo Tribunal Federal e ao seu longo processo de julgamento do mensalão?
 
Ambos chegaram a afirmar que o Brasil viveria em um “estado de exceção”, que substituiria o “estado democrático de direito”. O presidente do PT chegou a dizer que o processo atual corresponderia ao pior período do regime militar, em que não vigorava o habeas corpus. Qual é a noção de regra que orienta tais declarações? Tudo sinaliza para a defesa do status quo de aparelhamento petista do Estado brasileiro, com a privatização partidária da própria Petrobras, hoje uma ruína de si mesma.  [o próprio Rui Falcão considera assaltar a Petrobras e outras fontes de recursos públicos uma 'atividade partidária'; por isso, o repúdio da organização criminosa que preside ao senador Delcídio Amaral, líder do governo petista da Dilma,  que cometeu o grave erro de roubar para ele mesmo, não repartindo com o PT.]
 
Para eles, valeria a exceção, a ausência de regras democráticas, pois, no entender deles, só o feito por eles, nos malfeitos que os caracterizam, poderia ser considerado democrático. Identificam, na melhor tradição comunista, o partido com o Estado. Do mesmo tipo é o discurso governamental e petista de que o processo de impeachment seria um “golpe” contra a democracia. Desconsideram a própria Constituição, da qual este instituto faz parte. Pior ainda, o Supremo ainda recentemente afirmou a sua plena validade, embora tenha alterado alguns dos seus ritos.
 
Ora, tratar do impeachment como golpe nada mais é do que um desrespeito ao “estado democrático de direito”. Aliás, no passado, o PT defendeu este instituto no impeachment do ex-presidente Collor e advogou, mesmo, pelo impeachment do ex-presidente Fernando Henrique. Lá valia, agora não!
 
Embora o Fórum Social Mundial, que está ocorrendo em Porto Alegre, tenha perdido o seu glamour de antanho, ele não deixa de ser um termômetro do que pensa o PT e os movimentos sociais que orbitam em seu entorno. Ora, a marcha inaugural e os discursos de representantes do governo caracterizaram-se pela “denúncia do golpe”. Note-se a sincronia entre essas declarações, as declarações de Lula, o manifesto dos advogados e o pronunciamento do presidente do PT. A sua menor preocupação é a defesa do “estado democrático do direito”. Estão, na verdade, pregando a “exceção”, a eliminação das regras republicanas!
 
Fonte: O Globo - Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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