terça-feira, 14 de agosto de 2018

Folha de S. Paulo – Uma fornalha chamada Terra

Clóvis Rossi

Os ponteiros do relógio da catedral de Utrecht, na região central da Holanda, pararam de rodar na sexta-feira (3) exatamente às 11h23.

Motivo: o infernal calor que assola neste verão uma parcela significativa do hemisfério Norte danificou os metais no interior do relógio, instalado em 1857 (a catedral é bem mais antiga, data de 1382).

Esse pequeno detalhe serve como ilustração para o risco de que parte importante do que o engenho humano construiu até o século 20 corre o risco de parar de funcionar (ou de morrer de uma vez) neste século 21. Causa: a mudança climática.

Ou, como prefere o jornal The New York Times: “Para muitos cientistas, este é o ano em que eles começaram a viver a mudança climática, em vez de apenas estudá-la”.

O caso do relógio de Utrecht é o menos danoso exemplo de como a mudança climática já está em ação. É verdade que a catedral é o símbolo da cidade e o fato de o seu relógio parar deve ter machucado o amor-próprio dos locais.

Mas há danos bem mais substanciais, a começar pelos incêndios em vários países, inclusive o maior da história na Califórnia.

Menos presentes na mídia, no entanto, há dados que demonstram que o aquecimento global já não é apenas tema de estudos e teses acadêmicas, mas uma realidade a golpear o cotidiano. Alguns deles:

Na Coreia do Sul, o Ministério da Agricultura informa que o calor recorde provocou a morte de cerca de 4,53 milhões de galinhas, patos, porcos, vacas e outros animais de fazenda, aumento de 56,5% sobre a mesma época de 2017 (a temperatura chegou a 40°C no país na semana passada).

Na Suíça, uma tonelada de peixes mortos foi retirada dos rios. A elevada temperatura reduziu o nível de oxigênio na água, tornando difícil a sobrevivência dos peixes.

Na Bélgica, a seguradora Mondial Assistance contabilizou 63 mil pedidos de socorro mecânico por parte de motoristas com carros em pane.

Um terço das chamadas foi provocado pelos efeitos do calor (superaquecimento do motor, por exemplo). Houve picos de 20 pedidos por minuto.

Ainda na Bélgica, uma organização europeia de indústrias transformadoras de frutas e legumes relata que a devastação provocada pelo calor infernal criou “a situação mais séria vivida pelos produtores e transformadores de legumes nos últimos 40 anos”.

Cabe lembrar que 2018 caminha para ser o ano recordista em calor, batendo os registros dos dois anos anteriores, que também haviam sido infernalmente quentes.

Tanto calor que Michele Blom, funcionária do ministério holandês de Infraestrutura, reza por “dois ou três meses do típico tempo holandês”, com chuvas constantes, para compensar meses de seca.

São apenas alguns exemplos de que “o acordo de Paris [sobre as mudanças climáticas] para conter o aquecimento 2ºC acima dos níveis pré-industriais pode não ser suficiente para deixar o clima do planeta em uma temperatura estável”.

É o que diz estudo que acaba de ser divulgado por cientistas da Academia Nacional de Ciências do Reino Unido, conforme revelado na última terça-feira (7) pelo jornal londrino The Guardian.

O documento do grupo de cientistas britânicos diz mais: “O efeito dominó em cascata de gelo que derrete, mares que aquecem, correntes [marítimas] que mudam e florestas que morrem pode empurrar a Terra para um estado de estufa, além do qual os esforços humanos para reduzir emissões serão crescentemente fúteis”.

Mais do que “estufa”, o planeta Terra caminha para se transformar em uma infernal fornalha.

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