É sempre o dinheiro que inviabiliza o negócio, nunca o
risco humano ou o ambiental’
28/01/2019 10h47 Atualizado há 19 horas
Está difícil parar de pensar sobre a nova tragédia que se
abateu sobre uma região tão rica no solo, agora tão devastada. Fico imaginando
a dor das pessoas ao perceberem o momento em que ficaram imóveis, a falta de
ar. Quase adivinho o espanto dos bichos, muitos deixados para trás pelas
famílias que, por pouco, não conseguem se salvar a si próprias. Plantações sob
lama, uma terra arrasada, um rio que não se salvará, o medo que a sujeira
invada o Velho Chico.
E me pergunto: em nome de quê? Do desenvolvimento, claro.
O melhor a fazer é buscar parcerias para refletir e tentar
sair do básico, do senso comum. Não há nenhuma dúvida que a Vale é culpada, que
não aprendeu nada com a lição de Mariana, e que sofre da mesma doença que
costuma acometer grandes empresas em países pobres: a arrogância. Não fosse
assim, teria ouvido com atenção
o alerta dado por especialistas do Ibama e de moradores com relação à falta
de segurança da barragem. Não fosse assim, já teria resolvido as pendências
deixadas para trás com outras vítimas que causou
em Mariana, três anos atrás. Tudo isto já sabemos. O que quero é ampliar
pensamento, imaginar um jeito de a gente não ter mais que conviver com isso.
Ciro Torres — Foto: Arquivo Pessoal
Convido Ciro Torres, professor da IAG da PUC-Rio,
ex-coordenador do Ibase, que durante muito tempo coordenou o processo dos
balanços sociais das empresas na ONG do Betinho e atuou em diferentes Estudos
de Impacto Ambiental em diversas cidades de Minas Gerais e Espírito Santo.
Ainda no Ibase, Ciro foi a Barcarena com a ONG norueguesa Ajuda das Igrejas da
Noruega, em 2009, para avaliar a situação da cidade por causa da denúncia de
que enormes tanques com rejeitos tóxicos da Alunorte (na época, a mineradora
Vale tinha 57% de participação na empresa) estavam a ponto de vazar.
Fizemos a
reportagem no “Razão Social”, suplemento que atualizava o tema e que editei por
nove anos no jornal “O Globo”. Ciro prosseguiu trabalhando no tema. E, desde
então, tenho hábito de costurar pensamentos sobre a (in)sustentabilidade de
nossa era com ele.
Não poderia ser diferente agora. Prontamente Ciro aceitou
meu convite, conversamos pelo telefone durante quase uma hora. O que aconteceu
em Mariana, em Brumadinho e em Barcarena, segundo Ciro, tem como base a nossa
raiz de exportação de natureza. “Quando se ouve dizer que exportamos 300
milhões de toneladas de minério, é preciso entender que isso significa que
foram gerados 300 milhões de toneladas de rejeitos!” Como administrar isso? Só
tendo uma gestão responsável, que não dê mais atenção ao lucro do que às pessoas.
A entrevista, na íntegra, está abaixo:
Estou me lembrando da reportagem que fiz com você sobre
aquele tanque de rejeitos tóxicos que estava para se romper em Barcarena, isso
foi em 2009. Em
2018 se constatou uma contaminação na cidade. Depois teve Mariana...
Pode-se dizer que há um histórico de negligência com esse tipo de situação no
país?
Ciro Torres – No fundo estamos falando da nossa raiz de
exportação de natureza. Um país que tem riqueza natural numa quantidade imensa
e uma lógica totalmente antissustentável.
Como é que funciona esta lógica antissustentável?
Ciro Torres - É uma lógica onde a riqueza humana, social,
ambiental, ecológica não entra nos cálculos. Só o que conta é o volume de
toneladas que é exportado. Mas é preciso entender que quando se está falando em
exportar 300 milhões de toneladas de minério por ano, estamos falando também na
criação de 300 milhões de rejeitos por ano que ficam na região onde aconteceu a
mineração. Com o passar do tempo, é uma situação totalmente insustentável. No
Pará temos a Alunorte, a Albrás, a Norsk Hydro, todas geram muita riqueza
econômica, financeira, mas a região é de muita pobreza, miséria, violência,
grilagem de terra, solo contaminado. A mesma coisa acontece em Minas. Há
autores que chamam a isso de “A maldição da riqueza”. A base dessa nossa
economia, que junta loucura de aumento de produção, aumento de consumo.
O rejeito é como se fosse nosso lixo? É como se fosse um
garimpo?
Ciro Torres - Mal comparando é sim, como se fosse um
garimpo. O garimpeiro tira uma pepita e o que sobra é lama. Na indústria,
faz-se um processo eletrolítico e sobra a lama vermelha, no caso do alumínio.
Ela não pode ser usada em outra coisa porque é tóxica.
Durante muito tempo se
guardava isso em bacias, tentando secar uma parte, aumentando as paredes dessas
barragens. Imagina isso na região amazônica, um temporal subtropical, lá vai a
lama e contamina tudo! E isso aconteceu várias vezes. Teve um caso parecido no
leste europeu há anos. No caso do minério de ferro é parecido, você tira o
minério de ferro junto com a terra, então vai jateando aquela terra para tirar
só o que interessa.
Dependendo do processo, pode ser 1 tonelada de minério para
1,5 tonelada de rejeitos. Tem que pensar que o recorde de exportação de minério
de ferro também será recorde de acúmulo de rejeito. É uma operação complexa.
Você sempre trabalhou na mediação, conversando com
empresários, mostrando os riscos de operações desta natureza. Onde está o nó?
Onde é que eles não conseguem chegar para evitar uma tragédia socioambiental?
Ciro Torres – O cerne disso aí é uma lógica ultrapassada mas
que estamos no meio dela: um desenvolvimento relacionado ao crescimento
econômico. Independe de governos, todos querem aumentar as exportações. Para
usar uma frase que está na moda, não tem viés ideológico, estão todos
irmanados. Porque a China pressiona, os Estados Unidos pressionam. E as
empresas funcionam assim.
Trabalhei muito tempo nesse diálogo entre empresas e
sociedade, mostrando os riscos. Os gerentes entendem bem. O gargalo está quando
se chega aos conselhos e à alta direção. Aí é que entra a lógica econômico financeira,
ainda com o curto prazo se sobrepondo a todo o resto.
É o famoso ‘business as usual’ que opera totalmente, né?
Ciro Torres – O cálculo dos conselheiros e CEOs é sempre de
curto, no máximo médio prazo. E quando se apresenta relatórios técnicos sobre
flora, fauna, as pessoas, as comunidades, os riscos, eles põem em segundo
plano. Dizem que vai inviabilizar o negócio. É sempre o dinheiro que
inviabiliza o negócio, nunca o risco humano ou o risco ambiental. Aí é que está
o entrave da história. Precisa criar uma nova geração de altos executivos, de
conselheiros, de investidores, que percebam isso de maneira diferente.
Provavelmente a Vale recebeu um relatório de alguma empresa séria mostrando que
a barragem tinha risco, aconteceu lá na Samarco. Os conselheiros agradecem,
pagam o relatório, e botam na gaveta. Eu já trabalhei em estudos de análise
ambiental assim: a gente faz um trabalho seríssimo, apresenta para o conselho
da empresa, eles escutam, agradecem e pedem para a gente se retirar porque eles
vão decidir depois. A decisão não nos cabe. Isso é angustiante!
E o debate nas redes sociais, depois da tragédia, começa a
ser sobre a necessidade de a Vale parar de operar no Brasil. Mas isso vai
deixar muito desemprego e acaba criando uma distorsão. As próprias vítimas
pensam duas vezes. O que é melhor?
Ciro Torres – Esta é a pergunta que acaba o jogo, né? Se
alguém der uma solução simples, está querendo te enganar. Demonizar a Vale por
si só é bom para fazer campanha. Ela é uma empresa que está dentro dessa
lógica, como todas as outras. A dificuldade está no fato de estarmos falando de
sustentabilidade, porque o fator econômico financeiro não é menos importante.
Está faltando dar a mesma importância ao fator humano, social, ao fator
ambiental e ecológico. Uma das soluções seria discutir como se pode criar uma
outra lógica de uso de materiais. A lógica atual não se desliga no botão de um
dia para a noite, é um processo. Porque não é desligar a Petrobras, a Vale, que
tudo vai melhorar. A China está lá pedindo: me mandem mais minério, mais soja,
mais frango. Tem que pensar numa outra mudança. Ao mesmo tempo que se levou 50
anos para montar essas barragens, essa lógica de produção, talvez seja preciso
demorar mais 50 anos para desmontar isso.
Como seria?
Ciro Torres - Criando um processo de transição para uma nova
lógica sobre o que é riqueza. Riqueza é somente ouro, minério, é somente
dinheiro? Como reconstruir isso? Não é só destruir. Vamos fazer uma campanha
pra acabar com a Vale? A Prefeitura, os parlamentares, vão ser contra e eu não
posso dizer que eles estão errados. É muito cômodo para mim, sentado aqui no
meu escritório, no meu apartamento, vilanizar dessa forma. É preciso trocar uma
lógica pela outra, e isto, vou falar de novo, é um processo. O Brasil minera
para o mundo, a bacia de rejeito de minério é pra o mundo. Nas várias regiões
do Brasil o que se faz é exportar natureza. A gente exporta água. Se a gente
manda minério de ferro, a gente deixou aqui água contaminada de refeito de
minério. Outros países não vão precisar contaminar sua água porque nós já
fizemos isso aqui. A primeira questão que se pensa é que a gente tem que mudar
essa nossa forma de agregar valor às coisas. Uma nova lógica que fosse
acertando as coisas não pela quantidade, mas pela qualidade e por uma nova
riqueza local. São formas muito boas mas o que se percebe é que, na lógica
global, acabam se tornando marginais economicamente.
Em vez de pensar nesse desenvolvimento local, o que se vê é
uma produção louca que viaja oceanos afora, né?
Ciro Torres – Sim! O que se vê é uma quantidade de navios
levando coisas para os outros países. É por isso que a barragem explode. Eu
diria que é quase impossível fazer gestão de risco com uma quantidade de
rejeitos que aumenta do dia para a noite!
Amelia Gonzalez
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