Jornal Opção
Uma ilha ambiental em meio à metrópole está no Campus 2 da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). É lá o local onde o cientista Altair Sales Barbosa idealizou e realizou uma obra que se tornou ponto turístico da capital: o Memorial do Cerrado, eleito em 2008 o local mais bonito de Goiânia e um dos projetos do Instituto do Trópico Subúmido (ITS), dirigido pelo ele.
Como professor e pesquisador, Barbosa tem graduação em Antropologia pela Universidade Católica do Chile e doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pelo Museu Nacional de História Natural, em Washington (EUA). Mais do que isso, tem vivência do conhecimento que conduz.
É justamente pela força da ciência que ele dá a notícia que não queria: na prática o Cerrado já está extinto como bioma, o que propicia também o desaparecimento de importantes reservatórios de água, que abastecem outras áreas, o que já vem ocorrendo — a crise de abastecimento em São Paulo foi só o início do problema.
“Memorial do Cerrado” é uma expressão pomposa. Mas, tendo em vista o que vivemos hoje, é algo quase que tristemente profético. O Cerrado está mesmo em vias de extinção?
Dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é o mais antigo. Os primeiros sinais de vida, principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o Cerrado. Portanto, vivemos aqui no local onde houve as formas de ambiente mais antigas da história recente do planeta, principalmente se levarmos em consideração as formações vegetais.
No mínimo, o Cerrado começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40 milhões de anos. É um tipo de ambiente em que vários elementos vivem intimamente interligados uns aos outros.
A vegetação depende do solo, que é oligotrófico, com nível muito baixo de nutrientes, e o solo depende de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma – o fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado. É um ambiente que já chegou a seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez degradado, não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade.
Por que o sr. é tão taxativo?
Uma comunidade vegetal é medida não por um determinado tipo de planta ou outro, mas, sim, por comunidades e populações de plantas. E já não se encontram mais populações de plantas nativas do Cerrado. Podemos encontrar uma ou outra espécie isolada, mas encontrar essas populações é algo praticamente impossível.
Outra questão: o solo do Cerrado foi degradado por meio da ocupação intensiva. Retiraram a gramínea nativa para a implantação de espécies exóticas, vindas da África e da Austrália. A introdução dessas gramíneas, para o pastoreio, modificou radicalmente a estrutura do solo.
Isso significa que naquele solo, já modificado, a maioria das plantas não conseguirá brotar mais. É uma área fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo.
É possível tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar na terra.
Onde há pastagens e cultivo, então, o Cerrado está inviabilizado para sempre, é isso?
Onde houve modificação do solo a vegetação do Cerrado não brota mais. O solo do Cerrado é carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o ambiente original, em termos de vegetação e de solo.
O mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida pela vegetação nativa do Cerrado.
Essa vegetação tem plantas que ficam com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços no subsolo. Isso evidencia um sistema de raízes extremamente complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano, que são os aquíferos.
Quando se retira a vegetação nativa dos chapadões, trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida tem uma raiz extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos lençóis vai diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.
As plantas do cerrado são de crescimento muito lento. Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, os buritis que vemos hoje estavam nascendo. Eles demoram 500 anos para ter de 25 a 30 metros. Também por isso, o dano ao bioma é irreversível
Qual é a consequência imediata desse quadro?
Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado.
Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer.
Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais – grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.
(entrevista enviada por Wilson Baptista Junior)
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