Em defesa do touro, da vaca e de outros animais, artigo de Millos Augusto Stringuini
Publicado em abril 28, 2015 por Redação
Tourada. Foto: Esquerda.net
EM DEFESA DO TOURO, DA VACA E DE OUTROS ANIMAIS
Millos Augusto Stringuini, Dr.Sc1
Introdução.
O que destrói o planeta Terra é a psique humana.
Em artigos anteriores, a Metáfora da Salvação e Erigindo Templos à
Vida, foi demonstrado que o instinto primitivo de morte, residente na
mente humana, gera as diversas formas de Culto à Morte.
Esses cultos,
através de seus elementos físicos e processos simbólicos, são
responsáveis pela indução de uma série muito ampla de comportamentos
humanos destrutivos do meio ambiente e de descaso com as demais
espécies.
Por onde se anda no planeta é possível encontrar gravados símbolos humanos reverenciais para com a morte.
O atual biocídio vegetal e animal (redução da biodiversidade) provocado
pelos humanos, é um fato sem precedentes na história do planeta. Suas
origens estão no Culto à Morte, o qual inibe psicologicamente os humanos
para o reconhecimento pleno do esplendor da vida.
Sem sombra de dúvida, é o inconsciente humano, através de seus
mecanismos metafóricos de pensamento, que destrói desenfreadamente a
vida no planeta Terra.
Para demonstrar essa realidade psicológica, esse artigo apresenta uma
evidência real do comportamento realizado pelos humanos, originado nos
cultos à morte e sua relação destrutiva para com a vida.
O texto apresenta uma abordagem dos aspectos psicanalíticos constatados
em uma visita a uma Plaza de Toros, os quais estão relacionados com o
culto à morte e maus-tratos com os animais.
Um templo consagrado à morte e ao sadismo.
No dia 15 de março de 2015, em viagem de férias pela Espanha, o autor
esteve na cidade de Sevilha, onde uma das principais atrações turísticas
é a famosa “Plaza de Toros de Sevilla – Real Maestranza de Caballería de Sevilla”.
Os dados históricos da Praça de Sevilha estão disponíveis na Internet e
aqui não são apresentados, visto não ser o objeto desse trabalho.
A visita ao local é realizada sob supervisão de uma guia turística que
apresenta a arena, seus dados físicos e históricos, terminando por uma
visita ao museu da praça de touros.
Em dias de tourada, cerca de 12.000 espectadores observam as ações de
um ou mais toureiros, grupos de picadores e bandarilheiros e pessoal de
apoio.
O objetivo único do encontro é ver um ou mais touros sacrificados com
requintada crueldade pelo toureiro e seus acompanhantes. Esse objetivo é
disfarçado sobre uma pretensa “arte” chamada de tauromaquia.
Um ritual
de morte, no qual os touros que dele participam não conhecem as regras,
estando sozinhos contra um grupo de humanos.
Em síntese, o touro é entronizado na arena sendo de imediato atacado
por “bandarilheiros” que espetam nas proximidades da coluna
cervical/dorsal do animal pequenas lanças com ponta de aço ou similar
com uma bandeirola na ponta, fato que leva o animal a sofrer um processo
de sangramento que o debilita fisiologicamente, mas produz
irritabilidade.
(Como alguém tem coragem de fazer isso em outro ser vivo!!Que sofre, sente dor como a gente?!!)
Após certo tempo e sofrimento, um grupo de pessoas
montadas a cavalo – picadores – fere o animal com lanças até a entrada
do toureiro, visando deixar o animal irritado.
Nesse processo, cavalos são envolvidos, os quais, segundo o relato da
guia turística, antigamente não tinham proteção física corpórea e eram
mortos por chifradas dos touros. Atualmente, são usadas capas de
proteção para evitar a morte dos cavalos.
A entrada do toureiro na arena acontece quando o touro está
fisiologicamente enfraquecido pela perda de sangue, mas amplamente
irritado pela dor e estresse.
O toureiro para demonstrar sua “maestria em tornar o animal subserviente aos seus comandos”
dribla o touro com capa vermelha até o estresse máximo do animal
(ajoelha-se perante o toureiro) quando aí é morto por um golpe de
espada.
Observando do ponto de vista etológico, o toureiro e seu grupo de apoio
realizam procedimentos de abordagem ao touro de forma muito similar aos
cães selvagens e chacais.
Nos canídeos selvagens, um ou dois se
posicionam pela frente com movimentos de ataque, fuga ou desvio. Outros
atacam pelas costas ou laterais, fora do campo visual principal da
presa.
De forma teatralizada, a tourada também é uma variação do comportamento
atávico existente nas caçadas em bando dos índios montados em cavalos
selvagens atacando as manadas de búfalos no oeste americano. Os primatas
hominídeos caçam em bandos, pois sozinhos seriam presas fáceis de
predadores mais aptos.
A existência da tourada nos dias atuais comprova que os processos
civilizatórios históricos não produziram transformações inconscientes
nesse sentido. Os humanos continuam a agir através de processos
atávicos, ou seja, por comportamentos animais. Entretanto,
psicologicamente, sempre negam sua condição animal.
Considerações psicanalíticas.
A tourada é um ritual de culto à morte, onde existem duas expectativas
(desejos) inconscientes/conscientes dos atores ativos e passivos. A
primeira é a morte do touro. A segunda é a morte do toureiro.
Em ambas
expectativas, os espectadores (passivos) sadicamente almejam por um
epílogo de morte; ou morre o touro ou morre o toureiro. Alguém irá
morrer na arena.
O desejo sádico da plateia é ver a morte de frente. O sadismo emerge
catártico em intervalos de liberação dos padrões morais, tornando menor a
culpa dos espectadores por seus desejos e prazeres ligados a morte dos
outros. Os cultos reverenciais à morte, relativizam temporariamente os
efeitos das interdições psicológicas geradas pelas normas morais e
éticas; “não matarás” e “primum non nocere2”, atenuando as culpas.
Opressão.
O
homem sente-se tentado a satisfazer a sua necessidade de agressão a
expensas do próximo, a explorar o trabalho de outrem sem contrapartidas,
a utiliza-lo sexualmente sem o seu consentimento, a apropriar-se dos
bens dele, a humilha-lo, a infligir-lhe sofrimentos, a martirizá-lo e a
matá-lo. Homo homini lúpus: quem teria a coragem, perante todos os
ensinamentos da vida e da história, de contestar este adágio? FREUD, S. A
Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)3.
Se os homens assim agem contra os de mesma espécie, para com as demais formas de vida muito pouco se pode esperar.
Em relação ao toureiro (ativo), inegavelmente, trata-se de uma
personalidade narcisista, a qual para compensar sua desvalia emocional
inconsciente, necessita de reconhecimento e poder advindo da plateia e
da sociedade contígua. Um exibicionista para remediar sua pequenez
interior.
Para sentir-se pessoal e socialmente válido, aceita realizar uma
disponibilidade psíquica e fática, por meio do uso de uma estrutura
mental psicopática, na qual, deliberadamente e sem culpa, se torna um
perverso matador contumaz de touros com o beneplácito da sociedade.
A ambivalência exibicionista do herói assassino.
Por outro lado, a psicologia ensina que os narcisistas patológicos
possuem ancoramento inconsciente nas fases, anal (2-3 anos) e fálica
(4-5 anos) segundo os estágios do desenvolvimento psicossexual
determinados por Freud.
A conduta narcisista (exibicionista) do toureiro é profundamente
influenciada por sua infantossexualidade ancorada na fase anal, sendo a
espada o símbolo fálico.
Esse comportamento psicopatológico do toureiro, tem suas origens na
pulsão de morte primitiva do inconsciente humano. Tudo socialmente
aceito para servir às necessidades coletivas e projetivas de expiação
temporária das culpas morais e éticas.
A teatralização da matança sem culpa moral, muito provavelmente tem
origem na Roma antiga, quando os gladiadores lutavam com leões e outros
animais em ambiente cercado (Coliseu e similares). Nessas arenas o
processo de maus-tratos aos animais começou a sofrer transformação
cultural, passando para a condição socialmente aceita de “arte
esportiva” e divertimento do povo.
Pão e circo, no qual a mortífera agressividade humana é realizada sem culpas e aceita como socialmente adequada.
A tourada continua repetindo essa pretensa “arte”. Isso prova que
chegamos ao século XXI e não ocorreu evolução significativa no
comportamento humano em relação a esses cultos de morte.
Uma fé estranha.
Na praça de touros existe uma capela católica. Igualmente, na cidade de
Sevilha existe uma Catedral dedicada à Nossa Senhora da Macarena, a
qual é dita como padroeira dos toureiros.
Segundo a guia turística, os toureiros antes de entrar na arena
realizam suas orações nessa capela, pedindo proteção a Deus e às santas.
Trata-se de ritual religioso muito estranho, pois não é possível
entender como uma entidade santificada faria distinção protetora entre
um humano e um animal.
Segundo os rituais de fé, salvo raras exceções, os santos são entes
dotados de bondade infinita e combatentes do mal. Somente os demônios
praticam e protegem o mal.
Por que iriam os santos abdicarem de sua bondade, para colocá-la ao
serviço de um matador contumaz de animais, ou seja, alguém que mata por
narcisismo, em nome do sadismo coletivo?
Somente é possível entender essa situação quando se reconhece que a fé é
um constructo, para a qual, somente os humanos possuem “alma e seu
sopro divino” (anima). Esse mesmo comportamento discriminatório foi
usado para os escravos, dos quais era dito que não possuíam alma. A alma
é algo que somente aparecia para os brancos e, vias de regra, ricos,
poderosos, mas tementes a Deus.
Lógica similar encontra-se nos rituais religiosos com sacrifício de
animais, ou seja, as entidades santificadas dos humanos, excetuando-se
São Francisco de Assis, protetor dos animais, desconsideram o valor da
vida de plantas e animais. O que não é humano não possui valia para a
fé.
Analisando o “matador”, do ponto de vista psicanalítico, se vê que o
mesmo procura proteção na fé por ter medo do animal, antevendo que esse
poderá lhe ocasionar a morte. Se tem medo, porque insiste em dar vazão
ao seu narcisismo e busca de notoriedade social através desses atos?
A resposta a essa pergunta está no fato de que o culto à morte é
praticado pelo toureiro de forma real e imaginária em interconectividade
e interatividade. Ele se sente poderoso; heroico e busca o poder a
qualquer risco. Uma luta psíquica constante contra sua secreta desvalia
emocional.
As mães são sempre culpadas.
Existe nesse templo à morte um museu, onde diversas cabeças de touros
estão taxidermizadas, fotos, vestimentas de toureiros e outros
acessórios estão expostos.
Uma das cabeças taxidermizadas é de uma vaca. A guia apresenta aos
visitantes essa cabeça como se fosse uma grande curiosidade. Por que
está exposta uma cabeça de vaca, se os toureiros só executam touros?
Em verdade ninguém consegue distinguir o sexo desse animal somente
olhando a cabeça taxidermizada. Se a guia não falar sobre o assunto essa
cabeça passaria despercebida pelos visitantes.
Ocorre que o famoso toureiro Manolete foi morto por um touro de nome
Islero, ou seja, filho da vaca Islera. A cabeça exposta é da vaca
Islera. Ela foi morta por ter “cometido o erro” de gerar um touro feroz que matou um toureiro muito amado pelo povo. A morte de Manolete tinha que ser vingada!
Quando um touro mata um toureiro, nesse jogo de morte com cartas
marcadas, os humanos se vingam na mãe do touro e a matam também.
A justificativa para matar a vaca é de uma ignorância científica única.
Reside na alegação de que a ferocidade de um touro se transmite
geneticamente e, assim, matando a vaca não haverá procriação de outros
touros tão ferozes. Desconsideram a participação genética do sêmen do
touro que fecundou a vaca. Pensamento ignorante, sexista e machista
aplicado aos animais.
Questionada a guia turística de que esse comportamento era eticamente
similar a sacrificar a mãe dos assassinos humanos, a mesma respondeu que
era diferente, pois, afinal, estamos tratando de animais. Para ela,
animais não tem valor existencial.
Nas sociedades humanas, as mães são sempre socialmente acusadas pelos atos negativos dos filhos.
Paradoxalmente, existe um movimento na Europa que atinge a Espanha no sentido de “desescravatura” dos animais de circo, ou seja, os circos são interpelados legalmente para abandonarem o uso de animais em seus espetáculos.
Trata-se de ato social baseado no fato de que os Direitos dos
Animais estão estabelecidos
desde 1978 através da Declaração Universal dos Direitos dos Animais,
aprovada pela organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e
Cultura (UNESCO) e pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Na Declaração Universal dos Direitos do Animais está escrito:
– Artigo 2º: “todo o animal tem o direito de ser respeitado”.
– Artigo 10º alíneas a) e b): “Nenhum animal deve ser explorado para entretenimento do homem.” e “As exibições de animais e os espetáculos que se sirvam de animais, são incompatíveis com a dignidade do animal.”,
– Artigos 11º e 13º: “todo o ato que implique a morte de um animal, sem necessidade, é um biocídio, ou seja, um crime contra a vida.”
Surgem os questionamentos: O que é então uma tourada? Espetáculo ou Culto à Morte? É o touro um animal escravo ou não?
Conclusões.
Inegavelmente uma tourada é uma das múltiplas formas encontradas pelos humanos de realizar o Culto à Morte.
Nesse culto, a ambivalência perversa da psique humana se apresenta de
forma explícita e os espectadores anseiam e desejam ver a morte.
A maestria do toureiro é somente um disfarce ritualístico para a
plateia poder realizar o desejo perverso de ver o touro, o toureiro ou
outro integrante desse ritual morto. Quanto mais sanguinolento e
perverso for o ritual, maior satisfação psíquica recôndita terão os
espectadores.
Por sua vez, o toureiro, psicanaliticamente, nada mais é do que um
pobre tipo que não soube encontrar caminhos melhores para realização
pessoal na vida. Sua baixa estima o vetora para a busca de afeto no seio
de uma plateia que agressivamente clama por perversidade contra um
desprotegido animal.
Por último, as infelizes vacas serão sempre as culpadas por terem
gerado touros que lutam bravamente por sua sobrevivência e vencem seus
algozes. Culpar as vacas é hipocritamente ignorar que os humanos,
historicamente, realizam melhoramento genético de touros Miura para
incrementar a ferocidade desses animais.
Uma vingança criada pela
ambivalência do binômio psíquico – prazer culpa – originaria na
perversidade surgida do relaxamento das interdições morais.
Restam
as perguntas: Por que a humanidade ainda hoje prefere o Culto à Morte
em detrimento ao Culto à Vida? Ignorância ou Insanidade?
Biólogo, Doutor em Ciências do Meio Ambiente; Conselheiro Coordenador da CMA – Comissão de Meio ambiente do CRBio – 03.
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