terça-feira, 17 de julho de 2018
Pesquisadora da USP monta mapa da contaminação por agrotóxico no Brasil
Essa matéria foi publicada originalmente no site “De olho nos
Ruralistas”, em 2016. Achamos importante relembrar porque o debate sobre
a flexibilização das regras para venda e uso de agrotóxicos está na
pauta da sociedade e do Congresso
Os mapas produzidos por Larissa Mies Bombardi são chocantes. Quando você
acha que já chegou ao fundo do poço, a professora de Geografia Agrária
da USP passa para o mapa seguinte. E, acredite, o que era ruim fica
pior. Mortes por intoxicação, mortes por suicídio, outras intoxicações
causadas pelos agrotóxicos no Brasil. A pesquisadora reuniu os dados
sobre os venenos agrícolas em uma sequência cartográfica que dá dimensão
complexa a um problema pouco debatido no país.
Ver os mapas, porém, não é enxergar o todo: o Brasil tem um antigo
problema de subnotificação de intoxicação por agrotóxicos. Muitas
pessoas não chegam a procurar o Sistema Único de Saúde (SUS); muitos
profissionais ignoram os sintomas provocados pelos venenos, que muitas
vezes se confundem com doenças corriqueiras. Nos cálculos de quem atua
na área, se tivemos 25 mil pessoas atingidas entre 2007 e 2014,
multiplica-se o número por 50 e chega-se mais próximo da realidade: 1,25
milhão de casos em sete anos.
Além disso, Larissa leva em conta os registros do Ministério da Saúde
para enfermidades agudas, ou seja, aquelas direta e imediatamente
conectadas aos agrotóxicos. As doenças crônicas, aquelas provocadas por
anos e anos de exposição aos venenos, entre as quais o câncer, ficam de
fora dos cálculos. “Esses dados mostram apenas a ponta do iceberg”, diz
ela.
Ainda assim, são chocantes. O Brasil é campeão mundial no uso de
agrotóxicos, posto roubado dos Estados Unidos na década passada e ao
qual seguimos aferrados com unhas e dentes. A cada brasileiro cabe uma
média de 5,2 litros de venenos por ano, o equivalente a duas garrafas e
meia de refrigerante, ou a 14 latas de cerveja.
Em breve, todo o material reunido por Larissa será público. O livro
Geografia sobre o uso de agrotóxicos no Brasil é uma espécie de atlas
sobre o tema, com previsão de lançamento para o segundo semestre. Será
um desenvolvimento do Pequeno Ensaio Cartográfico Sobre o Uso de
Agrotóxicos no Brasil, já lançado este ano, com dados atualizados e mais
detalhados. No período abrangido pela pesquisa, 2007-2014, foram 1.186
mortes diretamente relacionadas aos venenos. Ou uma a cada dois dias e
meio:
“Isso é inaceitável. Num pacto de civilidade, que já era hora de termos,
como a gente fala com tanta tranquilidade em avanço de agronegócio, de
permitir pulverização aérea, se é diante desse quadro que a gente está
vivendo?”, indaga a professora ao programa De Olho nos Ruralistas.
O papel do agronegócio
Larissa fala de agronegócio porque é exatamente esse modelo o principal
responsável pelas pulverizações. Os mapas mostram que a concentração dos
casos de intoxicação coincide com as regiões onde estão as principais
culturas do agronegócio no Brasil, como a soja, o milho e a cana de
açúcar no Centro-Oeste, Sul e Sudeste. No Nordeste, por exemplo, a
fruticultura. A divisão por Unidades da Federação e até por municípios
comprovam com exatidão essa conexão.
A pesquisadora compara a relação dos brasileiros com agrotóxicos à
maneira como os moradores dos Estados Unidos lidam com as armas:
aceitamos correr um risco enorme. Quando se olha para um dos mapas,
salta à vista a proporção entre suicídio e agrotóxicos. Em parte,
explica Larissa, isso se deve ao fato de que estes casos são
inescapavelmente registrados pelos órgãos públicos, ao passo que outros
tipos de ocorrências escapam com mais facilidade. Mas, ainda assim, não é
possível desconsiderar a maneira como distúrbios neurológicos são
criados pelo uso intensivo dos chamados “defensivos agrícolas”, termo
que a indústria utiliza para tentar atenuar os efeitos negativos das
substâncias.
Soja, milho e cana, nesta ordem, comandam as aplicações.
Uma relação exposta no mapa, que mostra um grande cinturão de
intoxicações no centro-sul do país. São Paulo e Paraná aparecem em
destaque em qualquer dos mapas, mas a professora adverte que não se pode
desconsiderar a subnotificação no Mato Grosso, celeiro do agronegócio
no século 21.
O veneno está na cidade
A conversa com o De Olho nos Ruralistas – durante gravação do piloto de
um programa de TV pela internet – se deu em meio a algumas
circunstâncias pouco alvissareiras para quem atua na área. Há alguns
dias, a Rede Globo tem veiculado em um de seus espaços mais nobres, o
intervalo do Jornal Nacional, uma campanha em favor do “agro”. Os vídeos
institucionais têm um tom raríssimo na emissora da família Marinho, com
defesa rasgada dos produtores rurais de grande porte.
“Querem substituir a ideia do latifúndio como atraso”, resume Larissa.
Ela recorda que, além do tema dos agrotóxicos, o agronegócio é o
responsável por trabalho escravo e desmatamento. E questiona a
transformação do setor agroexportador em modelo de nação. “A alternativa
que almejaríamos seria a construção de uma outra sociedade em que esse
tipo de insumo não fosse utilizado. Almejamos uma agricultura
agroecológica com base em uma ampla reforma agrária que revolucione essa
forma de estar na sociedade.”
No mesmo dia da entrevista, o Diário Oficial da União trouxe a sanção,
pelo presidente provisório, Michel Temer, da Lei 13.301. Em meio a uma
série de iniciativas de combate à dengue e à zika, a legislação traz a
autorização para que se realize pulverização aérea de venenos em
cidades, sob o pretexto de combate ao mosquito Aedes aegypti. A medida
recebeu parecer contrário do Departamento de Vigilância em Saúde
Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, posição que foi
ignorada por Temer.
Larissa considera que a medida representa um grande retrocesso e
demonstra preocupação pelo fato de a realidade exposta em seus mapas ser
elevada a potências ainda desconhecidas quando se transfere um problema
rural para as cidades. “O agrotóxico se dispersa pelo ar, vai
contaminar o solo, vai contaminar a água. O agrotóxico não desaparece.
Ao contrário, ele permanece.” Em outras palavras: o veneno voa e
mergulha. Alastra-se. E tem longa duração. (Por João Peres/ Do De Olho
nos Ruralistas)
Fonte: Envolverde
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